Em 1831 foi adotada a Lei Feijó. Esse diploma legal declarava livres os africanos desembarcados em portos brasileiros a partir daquele ano. A providência buscava oferecer uma resposta à pressão britânica que proibiu o tráfico de escravos em suas colônias desde 1807. “Mas o sentimento geral era de que a lei não seria cumprida, fazendo circular pela Corte, inclusive na Câmara dos Deputados, o comentário de que o Regente Feijó fizera uma lei só ‘para inglês ver’” (fonte: wikipedia.org).
Essa expressão (“para inglês ver”) retrata uma infinidade de arranjos, institucionais ou não, observados no Brasil para dar uma aparente, só aparente, demonstração de força, competência, sensibilidade social, respeito à opinião pública ou qualquer outra característica que se pretende ressaltar.
A “PEC anti-STF”, na forma da Proposta de Emenda Constitucional n. 8/2021, é o último bom exemplo de providência “para inglês ver”. Atende aos desejos insensatos de segmentos lobotomizados da sociedade e ajuda na disputa pelo comando do Senado. Alimenta, ademais, um (falso) discurso midiático em torno de uma suposta crise entre os Poderes da República.
Existem algumas indagações fundamentais. A tal PEC reduz as competências ou a força institucional do Supremo Tribunal Federal? Fragiliza a independência da Corte? Afeta negativamente as prerrogativas funcionais dos integrantes do STF?
A resposta para todas as perguntas postas é negativa. Então, impõe-se indagar o que muda(rá) com a aprovação da “PEC anti-STF”? O que causa tanta repercussão nos meios de comunicação, em falas de parlamentares e mesmo nos pronunciamentos dos membros do STF?
Em linhas gerais, a PEC n. 8/2021 define: a) a proibição de decisão monocrática que suspenda a eficácia de lei; b) a proibição de decisão monocrática que suspenda ato do presidente da República, do presidente do Senado Federal, do presidente da Câmara dos Deputados ou do presidente do Congresso Nacional; c) o prazo para julgar e concluir ações do controle concentrado que tenham liminar deferida (6 meses) e, caso extrapolado o prazo, inclusão automática em pauta, com preferência sobre todos os demais, sob pena de perda de eficácia da decisão cautelar e d) a necessidade de maioria absoluta para decisão que: d.1) suspenda a tramitação de proposição legislativa por violação ao devido processo legislativo; d.2) afete, em caráter geral, políticas públicas e d.3) crie despesas a qualquer Poder.
Essas definições aperfeiçoam pontualmente o funcionamento do Supremo Tribunal Federal. Em texto datado de 21 de dezembro de 2016, com o título “Ativismo judicial: entre a necessidade e o excesso”, ponderei: “Outro campo sujeito ao exercício indevido do ‘ativismo judicial’ consiste na adoção de decisões monocráticas que perturbam gravemente o cenário político-institucional quando: a) desconsideram (ou modificam) a jurisprudência reiterada do tribunal; b) interferem diretamente no processo legislativo em andamento ou c) introduzem no debate político um posicionamento particular do magistrado autor da manifestação (personagem com profundo deficit de legitimidade democrática, no sentido tradicional de representar votos que sustentam a atuação no cenário político)./Observa-se, portanto, a necessidade de aperfeiçoamentos no exercício da jurisdição, sobretudo do Supremo Tribunal Federal, na seara do ‘ativismo judicial’. Esses ajustes não podem, nem devem, buscar o enfraquecimento do Poder Judiciário, a volta aos paradigmas do passado (corretamente superados) ou mesmo afetar a independência dos magistrados. São adequações, normalmente procedimentais, privilegiando decisões colegiadas, voltadas para eliminar espaços para perturbações institucionais graves e atuações não republicanas”.
A fala do Ministro Roberto Barroso, presidente do STF, confirma que não estamos diante de nada especialmente significativo. “Para Barroso, o STF se ‘ressentiu’ um pouco da providência do Senado, porque no mesmo ano em que o Supremo foi atacado fisicamente, em 8/1, a Casa propôs alterações no funcionamento da Corte./O ministro acrescentou que, na verdade, não houve um problema de conteúdo da PEC, porque considerou que a própria Corte já havia resolvido essas questões – do prazo para pedido de vista e da necessidade de cautelares colegiadas” (fonte: migalhas.com.br).
A “PEC anti-STF” sintomaticamente não trata de temas absolutamente relevantes e fundamentais para o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito. Nenhuma palavra foi dita acerca da competência para escolha de integrantes do Supremo, concentrada de forma exclusiva e deletéria na pessoa do Presidente da República. Nenhuma vírgula acerca da fixação de mandatos para os membros do STF. Nenhuma menção sobre um necessário código de conduta atualizado e espartano para os ministros do Tribunal.
A imprensa noticiou que as mudanças operadas pela “PEC anti-STF” foram cuidadosamente acertadas entre o Senado e o STF. “Na antevéspera da votação, ministros do STF conversaram com senadores. Alguns ajustes no texto foram feitos e foi mantido o direito de magistrados revogarem atos do presidente da República por decisão individual. Foi assim que o Supremo barrou tentativa do ex-presidente Jair Bolsonaro de boicotar o isolamento social durante a pandemia” (fonte: estadao.com.br).
O jornalista Márcio Chaer, no dia 27 de novembro de 2023, afirmou com todas as letras: “Apresentada ao público como disputa de poder entre o Senado e o Supremo Tribunal Federal, a Proposta de Emenda Constitucional 8/2021, em sua versão mais recente, tem, na verdade, outras motivações de diferentes protagonistas./O movimento de Rodrigo Pacheco teve dois gatilhos. O primeiro é a política local mineira, onde o senador vem despencando há tempos. O outro é a remota sucessão no comando do Senado. Pacheco e seu colega Davi Alcolumbre conseguiram, com a PEC, atrair o bloco bolsonarista para sua esfera” (fonte: conjur.com.br).
Uma cuidadosa análise do cenário de relações entre os Poderes da República mostra uma certa e indesejável “interdependência” (não mencionei “independência”). A forma de escolha (indicação e sabatina) dos ministros do STF não é a mais republicana. A forma de julgamento criminal (ou ausência de julgamento) de membros do Congresso Nacional pelo STF não é a mais republicana. A forma de controle (ou ausência de controle) dos membros do STF pelo Senado Federal não é a mais republicana.
A crucial intervenção popular (consciente, organizada e mobilizada) é o termo que falta na equação do exercício do poder político pelas cúpulas confortavelmente instaladas na capital federal. Uma boa dose de controle social, infelizmente deficitária no Brasil dos dias atuais, inverteria a lógica presente nas estranhas relações, interações e composições observadas entre os principais atores da política institucional brasileira.
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