Há cerca de três anos atrás, um conjunto de proposições punitivistas relacionadas ao campo da segurança pública foi apresentado ao Congresso Nacional com o nome de impacto de Pacote Anticrime. Durante a tramitação legislativa, uma emenda na típica forma de jabuti colocou tudo de ponta-cabeça, instituindo o chamado sistema de juiz de garantias.
Em matéria de competência legislativa, todos nós sabemos que matéria processual tem sempre âmbito nacional, o que assume proporções gravíssimas sempre que pensamos o caráter continental de nosso território, apesar de nossos abissais contrastes regionais culturais, inócuos do ponto de vista jurídico-legal.
O Supremo Tribunal Federal debruça-se sobre a constitucionalidade desta implantação em 30 dias a partir de ações diretas de inconstitucionalidade, sendo que tal sistema de garantias existe amplamente consolidado na França, Itália, Alemanha e em muitos outros países do mundo. Ao longo de intensos debates em que se manifestaram diversas organizações, nos últimos dias, o assunto foi exaustivamente discutido por amigos da causa habilitados processualmente.
A questão foi obviamente lançada no ordenamento brasileiro como reação aos episódios relacionados à Operação Lava Jato, onde o atual presidente foi preso, impedido de disputar eleições e anos depois suas condenações foram anuladas, seus direitos políticos restituídos e ele, eleito pela terceira vez presidente da República.
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Os defensores do garantismo insistem na necessidade da implantação do sistema como algo óbvio, afirmando que muitos outros países vizinhos já funcionam desta forma. Mas é importante ressaltar que cada caso é um caso e cada país tem sua realidade, assim como a história do respectivo constitucionalismo precisa ser respeitada.
No que nos diz respeito, como bem enaltecido pelo ministro relator, Luiz Fux, em 1988, ao ser elaborada a Constituição nenhuma linha sobre o sistema foi grafada na Carta. Se houvesse a intenção de implantação do juiz de garantias no Brasil, certamente em 1988, quando este sistema já era mais que consolidado internacionalmente, ele receberia lastro e respaldo constitucional. Mas não recebeu.
Do que estamos falando, na prática? De um sistema em que há a figura de um magistrado responsável pela fase policial do procedimento e posteriormente, necessariamente, quando o procedimento se judicializa, um distinto magistrado será o responsável por presidir a instrução para que os atos já praticados não contaminem a jurisdição de mérito da causa.
Observando-se teoricamente sob a perspectiva do princípio do devido processo legal, pensando-se na lógica da paridade de armas e nas premissas éticas do processo penal, pode fazer sentido. Mas vivemos dentro de uma realidade pragmática que não pode ser desconsiderada, que foi repetidamente enaltecida nos últimos dias no STF. Não podemos fugir a esta dura e inafastável realidade: dois terços das comarcas do país possuem um único magistrado.
Na cidade de São Paulo existe um sistema em funcionamento que lembra em grande medida o juiz de garantias. O DIPO (Departamento de Inquéritos Policiais), com seus 13 magistrados exclusivamente dedicados à análise às questões trazidas na fase policial, representa exceção, como o que ocorre em outras capitais.
Há, no entanto, comarcas diversas extensas, ligadas entre si por barco, muitas sequer providas por um juiz, o que evidencia que estamos diante de desafio de gigantesca complexidade. Para implantar o juiz de garantias, é imprescindível um longo processo de planejamento escalonado de reestruturação do sistema processual penal no Brasil.
São necessários recursos materiais, é necessário longo processo de treinamento de pessoal, cursos de capacitação para que o sistema se adapte a esta nova rotina. Não é uma questão que se restringe à lei. Metade da população sequer tem acesso a esgoto, 33 milhões padecem com a fome, a desigualdade social é gritante.
Alguns dirão: existe falta acesso à justiça, há desrespeito à dignidade humana, aos Direitos Humanos. Vamos começar a corrigir, mas não semeando nulidades. Pois a implantação açodada deste sistema servirá única e exclusivamente para embasar pedidos de soltura e requerimentos de anulação de processos, o que é absolutamente inadmissível.
O caminho do meio, defendido pelo Instituto Não Aceito Corrupção, amicus curiae, a meu ver é incumbir o Conselho Nacional de Justiça, dentro daquilo que se pensou em 2004, de funcionar como um agente gestor e de monitoramento de um plano estratégico de implantação em dez anos do novo sistema, com cronograma de trabalhos, metas, implantação progressiva e acompanhamento do processo mediante relatórios.
Precisamos construir uma solução condizente à nossa realidade, buscando interpretar a regra aprovada pelo Congresso Nacional, dentro do universo do pragmático da razoabilidade, simplesmente porque a implantação do Juiz de Garantias em trinta dias não seria factível e implicaria em semear nulidades, algo absolutamente inconcebível.
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