O Senado Federal está discutindo uma proposta de emenda à Constituição – a PEC 65/2023 (leia o texto aqui), do senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO) – para conferir “autonomia orçamentária e financeira” ao Banco Central do Brasil (BC).
A ideia (que tem todos os componentes de um filme de terror) é transformar o banco em “empresa pública”, que só prestará contas ao Congresso, cujos atuais servidores permaneceriam como estatutários (com estabilidade), mas poderiam ser enquadrados em outras carreiras ou optar por integrar o quadro da “empresa” como celetistas, enquanto os futuros já seriam regidos pela CLT. O “novo” Banco Central teria as mesmas funções que o atual, mas uma lei complementar disporia sobre praticamente tudo (objetivos, estrutura, organização, pessoal) e em especial sobre a “autonomia” ampliada, e especialmente sobre o “relacionamento financeiro” com o Tesouro.
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A intenção subjacente é, de fato, acabar com qualquer vinculação do BC com o Poder Executivo, mas, além disso, permitir que seus diretores e “empregados” sejam remunerados em padrões muito mais elevados. Mas, para isso, ele seria transformado em uma “empresa pública” com poder de polícia, o que é relativamente inédito, que, mesmo não tendo receitas próprias oriundas de exploração de atividade econômica, poderia fixar remunerações acima do teto do serviço público, e sem passar pelo Legislativo.
Agora, ainda enquanto a matéria está sob exame da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania do Senado, cogita-se encontrar outros caminhos, para manter a natureza jurídica autárquica do Banco, mas conferindo-lhe, de forma “criativa”, por lei complementar, autonomia financeira.
Nesse cenário, despesas que, atualmente, integram o orçamento fiscal (e são sujeitas ao teto de gastos da Lei Complementar 200/23) seriam contabilizadas no “orçamento monetário” do banco, que é, atualmente, na forma da Lei nº 4.595/64, onde estão estimadas apenas as necessidades de moeda e crédito que lhe cabe gerir como autoridade monetária.
Assim, por meio dessa “pedalada”, o BC sairia do orçamento fiscal e passaria a ter uma autonomia sem precedentes, na gestão de suas despesas de pessoal, custeio e investimento, como se o orçamento monetário fosse o meio capaz de assegurar o seu custeio. O orçamento do banco seria apreciado pelo Conselho Monetário Nacional (um conselho que é formado por apenas 3 membros, um deles o presidente do BC), e enviado ao Senado para ser aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE). Uma lei complementar fixaria – fora das regras da Lei de Responsabilidade Fiscal – um “limite” para as despesas com pessoal, autorizando o banco a fixar a remuneração de seus servidores e criar novas vantagens, sem sujeição às regras fixadas pela Lei de Diretrizes Orçamentárias e sem passar pelo Legislativo ou pelo Orçamento Fiscal. E novos servidores poderiam ser contratados pela CLT, sem estabilidade, nos termos que a lei complementar vier a definir.
As despesas do Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro), administrado pelo BC, criado em 1973 para cobrir os prejuízos dos bancos com operações de crédito rural inadimplidas em razão da ocorrência de fenômenos naturais, pragas e doenças que atinjam bens, rebanhos e plantações e indenizar recursos próprios utilizados pelo produtor rural em custeio rural, quando ocorrerem perdas em virtude daqueles eventos, e que é custeado pelos próprios produtores rurais e receitas de aplicações de seus recursos, e por recursos do Orçamento da União alocados ao programa, passariam a ser, também, contabilizadas no “orçamento monetário”.
Em 2022, segundo as demonstrações financeiras publicadas pelo Banco Central, o Proagro pagou indenizações de R$ 6,3 bilhões. Desse total, R$ 4,986 bilhões foram custeados pela União, e o BC teve receitas com taxa de administração de R$ 6,95 milhões. Em 2024, a LOA prevê para o custeio de Subsídios, Subvenções e Proagro, um total de R$ 22,194 bilhões, dos quais R$ 3,863 estão identificados como “Indenizações e Restituições relativas ao Programa de Garantia da Atividade Agropecuária – PROAGRO”, à conta de Encargos Financeiros da União, custeados por recursos do Tesouro.
A coleção de “gambiarras” embutida nessa proposta de solução para um “imbróglio” causado pela atuação do presidente do BC ao buscar apoio em senadores de oposição ao governo para fazer transitar uma PEC que foi rejeitada pelos próprios servidores do banco é impressionante.
A proposta de embutir o Proagro em um hipotético orçamento monetário gerenciado pelo Banco Central lembra a antiga Conta Movimento do Banco do Brasil. Seus proponentes sonham uma blindagem mágica do seguro agrícola.
Essa “solução”, ademais, converte o Banco Central em um desestabilizador da unicidade orçamentária, abrindo espaço para que todos os que tivessem poder para mobilizar suas bancadas o fizessem, cada grupo de interesses com suas razões próprias, fortalecendo o viés corporativista das demandas por “autonomia” de outros segmentos que já tramitam no Legislativo. Os impactos fiscais do contrabando de gastos governamentais para o orçamento monetário são incalculáveis.
Por sua vez, a ideia de que os futuros servidores possam ser contratados sob regime de emprego, além de fragilizar a própria gestão pública, é duplamente inconstitucional. Primeiro, porque ainda vigora o “caput” do art. 39 que o próprio STF, em 1996, determinou que fosse aplicado ao BC; segundo, porque seus servidores exercem atividades exclusivas de Estado, incompatíveis com o regime de emprego público à luz do art. 247 da Constituição. Nenhuma lei complementar poderia ignorar isso, e uma PEC, em o fazendo, vulneraria princípio básico da organização administrativa do Estado brasileiro.
Além da fragilidade jurídica, e da insegurança que traz em relação aos atuais servidores do banco, essa medida teria custos embutidos que são impensáveis, e totalmente desorganizadores de tudo o que se tem feito para dar alguma racionalidade às despesas com servidores no âmbito da União.
A ruptura com o princípio de que vantagens remuneratórias e reajustes somente podem ser concedidos por lei, contida no art. 37, X, seria letra morta. Se não vale para os servidores de uma autarquia, ou de uma “pseudo-empresa”, por que valeria para quaisquer outras corporações, entre as tantas estratégicas, com capacidades técnicas relevantes, e indispensáveis ao Estado, e que reivindicam melhores salários?
Aprovada essa solução mágica, se os funcionários de órgãos reguladores como das 12 agências reguladoras (Aneel, Anatel, Anvisa…), e diversos outros órgãos reguladores, como CVM, Susep, Ibama etc. reivindicarem o mesmo tratamento com base no precedente do Banco Central, Legislativo e Executivo dificilmente terão dificilmente poderão resistir a pleitos semelhantes.
Além da desorganização resultante, os riscos fiscais serão enormes porque uma série de folhas de pagamento irão aumentar significativamente – e com a pretensão, imediata, de que todos sejam “liberados” do teto de remunerações que, com tanto custo, foi estabelecido no art. 37, XI da Constituição, mas que, além de sofrer burlas eventuais (ou nem tanto), ainda hoje carece de regulamentação.
Pior ainda é a ideia de que tudo que diga respeito a essa “superentidade” poderia ser resolvido em “petit comité”, sem sujeição às leis de responsabilidade fiscal e de diretrizes orçamentárias, a própria lei orçamentária, à revelia do Congresso e dos órgãos centrais do próprio Executivo, a quem cabe assegurar a coerência das políticas de pessoal, mesmo no caso de órgãos dotados de algum grau de autonomia.
Para defender a PEC 65, em sua forma original, o argumento dos senadores proponentes é simples: uma PEC pode tudo. Mas não é bem assim: para além do seu próprio conteúdo, há que se examinar a sua razoabilidade e sustentabilidade. Já é mais do que duvidosa a via eleita: uma PEC para contornar a reserva de iniciativa do Presidente da República em temas relativos a servidores. Mas a PEC e quaisquer alternativas a ela, ou sua aceitação pelo Executivo, são uma rendição a interesses indefensáveis.
A importância do Banco Central para o país e para a economia não está em debate. O que está em debate é, mais uma vez, como uma instituição, a pretexto de buscar autonomia e valorização do seu quadro funcional, busca, na verdade, privilégios ou mesmo soluções que, se podem em alguma medida contribuir para resolver seus problemas imediatos (mas que são comuns a diversas outras), tem um caráter profundamente desorganizador do Estado brasileiro.
E, ademais, além de não ter receitas próprias para bancar essas medidas, dependendo profundamente do Tesouro para cobrir os prejuízos financeiros de suas atividades, não há nada que, a priori, diferencie o Banco Central de tantos outros órgãos e entidades que convivem, diuturnamente, com as dificuldades de um país que enfrenta déficit fiscal e busca, com enorme sacrifício para todos, alcançar metas de equilíbrio e cumprir regras rígidas de controle de gastos.
A “gambiarra”, assim, pode custar muito mais caro do que alguns bilhões que seriam, de imediato, colocados sob uma gestão “autônoma” do Banco Central. Pode custar a própria fragilização do já comprometido sistema que a Constituição de 1988 erigiu para evitar o descalabro administrativo que sempre foi a regra no país e que estudiosos não se cansam de apontar como ainda resiliente.
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