A não ser que todos aqueles que acompanham de perto os meandros do Poder Judiciário estejam redondamente enganados, o ex-presidente Jair Bolsonaro sairá do final do julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) impedido de disputar eleições pelos próximos oito anos. A essa altura, o máximo que Bolsonaro poderá obter é a ajuda de um ou outro ministro que peça vistas do processo adiando por mais um tempo o final da decisão.
Pode-se argumentar sobre o julgamento. Podem ser questionadas filigranas jurídicas da decisão. Pode-se pôr em dúvida se era lícito ou não adicionar a tal “minuta do golpe” entre as provas do processo. O que, porém, ninguém pode discordar é que Bolsonaro passou os quatro anos do seu mandato num flerte intenso com a ilegalidade. A cada momento, ele parecia querer testar os limites da sua autoridade. Como um menino levado, que precisasse ouvir o “não” dos demais poderes para só então recuar.
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O professor Piero Leirner, da Universidade Federal de São Carlos, um especialista na utilização política de táticas militares, considera que era uma estratégia pensada. A adaptação do uso de “cabeças de ponte” na política. “Cabeça de ponte” é quando se avança uma tropa para dentro do território do inimigo. Se o inimigo cede, mantém-se ali a tropa, ocupando um novo espaço à frente, de onde, então, se vai avançar. Se o inimigo reage, recua-se a tropa. O governo Bolsonaro foi todo tempo caracterizado por esse avança e recua. O ponto mais notório foi a história daquele Sete de Setembro, quando ele desafiou o Supremo Tribunal Federal (STF) em um discurso na avenida Paulista e depois recuou, a partir daquela carta ditada pelo ex-presidente Michel Temer.
Assim, a discussão que irá permear até o fim do julgamento do TSE é essa constatação do óbvio. E ninguém foi melhor na constatação do óbvio que o Conselheiro Acácio, célebre personagem de “O Primo Basílio”, romance de Eça de Queirós. E, como bem dizia o Conselheiro Acácio: “As consequências vêm depois”.
Mesmo alguns aliados de Bolsonaro têm dificuldades para compreender algumas das suas atitudes durante o governo. No PL, partido ao qual o ex-presidente se filiou para tentar a reeleição, a grande maioria avalia que Bolsonaro teria tido uma enorme chance de vencer no ano passado não fosse o seu comportamento durante a pandemia de covid-19. Se Bolsonaro não tivesse negado a óbvia existência da doença, que somente no Brasil matou mais de 700 mil pessoas, se não tivesse demonstrado uma assustadora frieza com a dor das famílias enlutadas, se não tivesse deixado de se vacinar demonstrando um medo ridículo da picada que não condizia com a sua autoproclamada imagem de homem destemido, acrescentando temores infundados como o da presença de grafeno na substância, se não tivesse insistido no uso não proclamado da cloroquina como remédio, chegando ao absurdo de correr atrás de uma ema no Palácio da Alvorada com uma caixa do medicamento, se não tivesse trocado quatro ministros da Saúde por isso, talvez não tivesse perdido.
O que espanta o PL é que nada desse comportamento tem de fato um viés ideológico. Negar o óbvio não é um comportamento de direita. Negar a existência da ciência e seus avanços também não é. O Conselheiro Acácio não negava o óbvio. Muito pelo contrário. “As consequências vêm depois”.
Quanto ao que havia de ideológico no comportamento de Bolsonaro, aí, como pensa o professor Leirner, poderá ter havido um plano pensado. No fundo, boa parte se encaixa no manual de atitudes autocráticas que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt relatam no seu já clássico “Como as Democracias Morrem”.
E aí é o caso de se imaginar onde Bolsonaro pretendia chegar com suas atitudes. Com os seguidos discursos pondo em dúvida o sistema eleitoral brasileiro, como no caso da reunião com os embaixadores, centro do julgamento do TSE. Com os questionamentos sobre a autoridade do STF, aquele que seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), disse que poderia ser fechado por um sargento e um cabo. Com o desfile de tanques de guerra na Esplanada dos Ministérios. Com a facilitação da compra de armas pelos cidadãos. Enfim…
Até que ponto tais atitudes e palavras estimularam situações como a de Roberto Jefferson, que recebeu policiais federais com tiros e granadas? Até que ponto estimularam a deputada Carla Zambelli (PL-SP) a sair pelas ruas com um revólver em punho atrás de um adversário? Até que ponto contribuíram para fazer com que as “velhinhas e velhinhos”, usando as palavras do próprio Bolsonaro, se transformassem em perigosos vândalos depredadores, primeiro queimando automóveis e por pouco não jogando um ônibus do alto de um viaduto no dia 12 de dezembro do ano passado? Que uma dessas pessoas planejasse explodir mais tarde o Aeroporto de Brasília? E que, enfim, invadissem e destruíssem os três principais prédios da República no 8 de janeiro.
Bolsonaro poderá morrer insistindo que nada disso era a sua intenção. Poderá, como faz seu advogado no julgamento do TSE, dizer que tenha sido somente o mau uso da palavra, dita com uma intensidade equivocada. Que não ordenou a nenhum desses sujeitos que fizesse nada disso. O problema é que fizeram. O problema é que tudo isso aconteceu. É como diz o Conselheiro Acácio: “As consequências vêm depois”.
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