Os leitores brasileiros finalmente puderam concluir a saga norueguesa de Karl Ove Knausgård com a publicação do último volume da série Minha Luta, publicado originalmente em 2011, mas só lançado por aqui no final do ano passado. Tanta demora talvez tenha sido benéfica, pois a leitura das mais de mil páginas ganha diferentes significados diante da realidade política na qual vivemos.
Diferentemente dos demais volumes da série, O fim não se limita à proposta de ser um romance autobiográfico “sincericida”. Em seu bojo, Knausgård apresenta uma espécie de ensaio no qual parece querer prestar contas pela escolha do mais que polêmico título de sua série. A partir de uma reflexão sobre a importância dos nomes próprios, motivada pela proibição de revelar o nome de seu próprio pai no primeiro volume, ele promove um esforço de compreensão da época nazista e da figura de Hitler.
Para se compreender a experiência do III Reich é preciso rejeitar a visão de que os nazistas eram uma espécie de encarnação do mau absoluto, liderados por um verdadeiro monstro, algo da ordem da desumanidade absoluta. Afinal, não se pode cobrar responsabilidade do diabo, ele apenas faz aquilo que deve fazer. O verdadeiro horror da experiência alemã surge ao nos darmos conta de que tudo aquilo é demasiadamente humano e que não há nada em nossa natureza que possa garantir de que não vá acontecer novamente.
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Brasil über alles?
Para o leitor brasileiro, é impossível não enxergar como certos mecanismos políticos, retóricos e psicológicos destacados por Knausgård em sua interpretação do período nazista são semelhantes aos empregados pelo bolsonarismo, propositadamente ou não.
Essa repetição assume aqui e agora ares de farsa, beirando ao ridículo, como nas coreografias toscas dos bolsomions vestidos de verde-amarelo ou no oferecimento de cloroquina para as emas do Palácio do Planalto. Mas quem pode garantir que o ovo da serpente não está sendo novamente chocado?
As semelhanças e fatos são tantos que não temos mais o direito de ignorá-los. Não é à toa que o próprio lema de campanha de Bolsonaro (“Brasil acima de tudo”), brado dos paraquedistas, remete também ao verso da canção alemã entoada pelos nazistas (“Deutschland über alles”). Roberto Alvim, então secretário especial de Cultura, não se sentiu constrangido ao recitar trechos de um discurso de Joseph Goebbels enquanto emulava toda a estética da propaganda nazista. Um grupo de militares se apresentou ao Presidente da República na rampa do Palácio do Planalto utilizando a saudação nazista.
Chegamos a tal ponto que, no mês passado, o Museu do Holocausto de Curitiba emitiu uma nota dizendo ser estarrecedor não haver semana no Brasil na qual a instituição não tenha que “denunciar, reprovar ou repudiar um discurso antissemita, um símbolo nazista ou ato supremacista”.
Nós x Eles
De acordo com Knausgård, um dos traços mais marcantes do discurso nazista é o de fazer um constante apelo a um “nós”, à mobilização do sentimento patriótico em prol da coletividade nacional e da “pureza” da raça ariana. Mas esse “nós” é excludente e se fortalece à medida que se contrapõe a um “eles”. Ao “eles” tudo é negado e seu único destino é o da expulsão, do desaparecimento. Como sabemos, o “eles” dos nazistas era constituído, principalmente, pelos judeus e a solução final foi a radicalização dessa lógica até os limites do inimaginável.
Por aqui, o “nós” bolsonarista engloba supostos patriotas e cidadãos de bem, evangélicos e reacionários em geral, unidos na luta para não deixar que a “nossa bandeira se torne vermelha” ou para que o Brasil “não vire uma Venezuela”. Já o “eles” é constituído pelos comunistas, petistas e todos os “vermelhos”, cuja abrangência é fluída o bastante para abarcar todos os adversários: desse modo, até o tucano João Doria pode receber o carimbo da foice e do martelo na testa. Tal lógica permite ao governo justificar seus fracassos pela ação “deles”, ou seja, por todos aqueles que impedem Bolsonaro de colocar em prática sua agenda extremista ─ daí a mentira diversas vezes
repetida de que o Supremo Tribunal Federal teria impedido o Governo Federal de agir
no combate à pandemia. A culpa é sempre “deles”.
A volta dos comedores de criancinhas
O “eles” não são apenas caracterizados como inimigos políticos. Assim como os nazistas representavam os judeus como ratos e pragas, e, portanto, sujeitos ao extermínio, o bolsonarismo carrega nas tintas para denegrir os “esquerdopatas”. Assassinos de fetos! Defensores da pedofilia e do incesto! Cristofóbicos! As constantes atualizações do estereótipo do “comunista-comedor-de-criancinhas” instilam um medo irracional em parte do eleitorado que, mesmo não satisfeito com o atual governo, continua a apoiá-lo para evitar o mal maior ─ a instalação de um regime de esquerda.
No duplipensar bolsonarista, o próprio nazismo é classificado como tal! Por tudo isso, não basta simplesmente combater o inimigo na arena política, é preciso eliminá-lo fisicamente. A ameaça é clara e já foi dada diversas vezes: quem não se lembra do então candidato Bolsonaro prometendo enviar a “petralhada” para a “ponta da praia” (termo usado durante o regime militar para designar locais de execução de opositores), promovendo uma “limpeza” (sim, esse foi o termo utilizado) nunca vista na história do Brasil? Ou ainda do guru Olavo de Carvalho afirmando que a ascensão de
Bolsonaro ao poder significaria, para o PT e seus “associados” sua total destruição
enquanto grupos, organizações e, inclusive, enquanto “indivíduos”?
Até mesmo o discurso de superioridade da “raça” ariana se traduz no atual governo pelos acenos à simbologia dos supremacistas brancos, escancarados nos gestos do assessor palaciano Filipe Martins durante audiência no Senado Federal (episódio incapaz de derrubá-lo até agora) e a menção do ex-chanceler Ernesto Araújo à sigla SPQR (do latim Senatus populusque romanus) utilizada à larga por Mussolini e reapropriada pelos neonazistas contemporâneos. Não podemos também nos esquecer
dos 15 minutos de fama de Sara Geromini (mais conhecida como Winter, sobrenome adotado em homenagem à uma espiã nazista) e os “300 do Brasil” emulando os rituais da Ku Klux Klan às portas do Supremo Tribunal Federal.
O empobrecimento da linguagem
Na análise que faz do livro de Hitler – Mein Kampf –, Knausgård destaca que uma de suas características é o estilo de escrita “desconcertantemente vulgar e muitas vezes baixo”. O estilo, lembra ele, está para o texto assim como a moral está para o comportamento. Ao não respeitar as regras do que pode ou não ser dito (e de que maneira), Hitler mostra-se como alguém que não busca legitimidade em nenhum outro lugar a não ser em si mesmo, ignorando seus deveres perante aos outros. Ao ultrapassar os limites do estilo, Hitler cria as condições para se desvencilhar também dos
imperativos da moral.
Essa linguagem despudorada é vista por muitos como um certificado de honestidade e sinceridade, diferenciando seu enunciador dos chamados políticos tradicionais. Ela também interdita o debate com os opositores: diante dos absurdos proferidos, tornam-se inócuas todas as tentativas de se contra-argumentar racionalmente, restando apenas como opções rejeitar ou ignorar o que está sendo dito. Aqui não é preciso se alongar na comparação com o bolsonarismo. O próprio Presidente
da República construiu sua carreira política ultrapassando todos os limites do que é aceitável de ser dito por uma figura pública, característica eternizada na menção ao torturador Brilhante Ustra em seu voto favorável ao impeachment de Dilma Rousseff. Já Olavo de Carvalho dispara mais palavrões por minuto do que suas mentiras e delírios, comportando-se como um colegial desbocado.
Esse empobrecimento estilístico não se limita à dimensão da fala e perpassa todas as manifestações discursivas bolsonaristas: desde à ostentação de camisetas falsificadas de times de futebol até às montagens toscas de imagens e vídeos que circulam pelas redes sociais. O mal gosto e a improvisação imperam com o objetivo de manter a aura de autenticidade e de simplicidade de um movimento que se arvora em representante direto do povo. Hitler também usava da mesma tática: Knausgård conta que, após comprar um smoking, o político iniciante logo volta a usar o mesmo terno azul comum e apertado de sempre depois de ser alertado de que não pegaria bem apresentar-se com os trajes da
classe dominante.
As comparações entre o nazismo e o bolsonarismo não param por aqui: pode-se ainda
falar do culto da morte e da violência, do fanatismo despertado pela figura do líder, da
manipulação da informação, dentre outros.
O Brasil dança perigosamente à beira do abismo autoritário, abismo que cavamos com nossos próprios pés. Os alemães não tiveram muito tempo para agir entre a chegada de Hitler ao poder e a supressão das liberdades democráticas. Nós, por outro lado, ainda temos tempo de evitar a catástrofe. Como defende esse Congresso em Foco, é #HoradeJairEmbora, antes que a Noite dos Cristais desabe sobre nós.
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