Em palestra recente sobre a conjuntura política, com foco na relação do governo com o Congresso Nacional, tive a oportunidade de apresentar um pequeno histórico das dificuldades do Poder Executivo na condução da agenda governamental, reflexão que compartilho com os leitores.
Na oportunidade chamei à atenção para o fato de que “vivemos uma conjuntura política das mais complexas, com uma combinação complicada, marcada por uma disputa de agenda entre o presidente da República, que foi eleito para reconstruir o país, reativar os espaços de diálogos e incluir novamente os pobres no orçamento público, e um Congresso empoderado e majoritariamente responsável pelo desmonte promovido pelas políticas neoliberais dos governos anteriores.
Antes de tratar especificamente dessa difícil relação do Poder Executivo com o Congresso, que tem dificultado o avanço da agenda governamental, é importante contextualizar o ambiente político pós-eleição, especialmente a herança deixada e a recusa do então presidente em aceitar o resultado da eleição.
O desafio do presidente Lula desde a eleição não tem sido trivial. Ele herdou um País de terra arrasada, com demandas reprimidas, a máquina pública destruída e o Estado sem capacidade de resposta, pelo engessamento decorrente do teto de gasto e outras restrições fiscais criadas nos governos anteriores.
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A crise era de tal ordem que o presidente eleito precisou governar antes mesmo da posse, tendo que articular a elaboração e aprovação de uma Emenda Constitucional de transição, sem a qual haveria paralisação da máquina pública e atraso no pagamento de programas sociais.
A situação política no País não era menos preocupante, com o então presidente questionando o resultado da eleição e seus aliados articulando um golpe, a partir de um acampamento em frente a um quartel do exército em Brasília, para impedir a posse do presidente eleito.
PublicidadeComo consequência da recusa de Bolsonaro em aceitar o resultado da eleição houve quebra-quebra em Brasília em 12 de dezembro de 2022, data da diplomação do presidente eleito e seu vice, e destruição dos Palácios do Planalto, do Supremo e do Congresso Nacional, oito dias após a posse do presidente eleito.
O novo governo, para impor a ordem, teve que intervir na Segurança Pública do Distrito Federal, afastar o comandante do Exército, ambos por omissão na invasão e destruição dos Palácios, e requerer à Justiça a prisão de todos os envolvidos nos atos terroristas do dia 8 de janeiro.
O novo governo, em tudo contrário ao seu antecessor, já no ato de posse deixou evidente seu compromisso com a democracia, com a ciência, com a diversidade, com a Justiça e com os excluídos socialmente e fez que questão de reafirmar isso para o Brasil e o mundo ao subir a rampa acompanhado de oito pessoas do povo (uma mulher negra, um menino pobre, um cacique indígena, um trabalhador metalúrgico, um professor, uma cozinheira, um artesão e uma pessoa com deficiência e ativista da luta) e receber a faixa presidencial das mãos de uma mulher negra e catadora de material reciclável.
Esse, abreviadamente, foi o ambiente do pós-eleição.
Agora vamos falar das razões da dificuldade de relacionamento com o novo Congresso, cuja composição pode ser classificada como liberal, do ponto de vista econômico, fiscalista, do ponto de vista de gestão, à direita, do ponto de visto do espectro político, conservador, do ponto de vista dos valores, e refratário aos direitos humanos e ao meio ambiente.
O novo Congresso – renovado em menos de 50% – é uma continuidade piorada do Congresso anterior, inclusive manteve os presidentes das duas Casas e de boa parte dos líderes da legislatura passada.
Para compreender melhor o papel e o poder desse novo Congresso, é preciso contextualizar as circunstâncias que fizeram dele um Congresso empoderado, especialmente nas duas legislaturas anteriores.
Na Legislatura 2015-2019, no embalo das manifestações populares e em razão da recusa em ceder aos seus apetites fisiológicos, o Congresso destituiu a presidente Dilma e empossou e efetivou o vice-presidente Michel Temer, fazendo dele refém em função dos dois processos movidos contra ele pelo ministério Público.
Na legislatura 2019-2023, com Bolsonaro na Presidência da República, em grande medida eleito no embalo do desgaste causado pelo impeachment de Dilma e as denúncias contra Michel Temer, o Congresso ampliou ainda mais seus poderes sobre o Poder Executivo.
Assim, nos governos Temer e Bolsonaro, ambos temerosos de processos de impeachment, o Poder Executivo fez suas as pautas do mercado e do Congresso Nacional, entregando para os líderes dos partidos da base e os presidentes das Casas o domínio pleno da agenda e até do orçamento público, por intermédio das emendas impositivas e de relator.
Para o mercado, foram feitas concessões como a desregulamentação de direitos, a desativação das fiscalizações do trabalho e do meio ambiente. As principais mudanças foram a reforma trabalhista, a terceirização generalizada, o teto de gasto, a autonomia do Banco Central, o marco de saneamento, a reforma da previdência, a mudança no voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), as restrições de atuação e a privatização ou venda de ativos, a preço vil, de estatais estratégicas, dentre outras.
Para os parlamentares, em troca do apoio no Congresso, foram dados aumentos generosos nos fundos eleitoral e partidário, voltou o horário eleitoral gratuito, foi dado caráter impositivo às emendas de bancada, houve a instituição das emendas de relator, o famoso orçamento secreto, e, principalmente, eles indicaram e assumiram a coordenação política do governo, assim como as Pastas ministeriais com maior orçamento e capacidade de gasto.
Na eleição de 2022, a maioria dos deputados renovou seus mandatos e as vagas decorrentes dos que perderam o mandato ou desistiram da disputa foram ocupadas por candidatos vinculados à direita e extrema direita, beneficiada pela candidatura à reeleição de Bolsonaro.
Entretanto, a eleição de Lula no segundo turno, um candidato cujo perfil e visão de mundo diferem completamente do de seus antecessores, incomodou profundamente, tanto a parcela do mercado que se beneficiou dos governos Temer e Bolsonaro, quanto os partidos conservadores e fisiológicos que temiam a perda do controle sobre a agenda governamental.
Porém, como o presidente Lula foi eleito em segundo turno com uma margem pequena de votos e não elegeu uma base consistente, em número suficiente para aprovar sua agenda, passou a depender da formação de coalizão de apoio, que inclui partidos que apoiaram os governos anteriores e que nem sempre irão comungar com todas as iniciativas governamentais, especialmente aquelas que revejam temas aprovados nos governos Temer e Bolsonaro.
Num contexto desses, era natural que a composição conservadora e fisiológica do novo Congresso reagisse à perda de poder e tentasse, a todo custo, preservar ao menos parte da influência que exerceu no governo federal durantes os dois presidentes anteriores.
É nesse contexto que devem ser lidas as derrotas do governo em relação à não aprovação da medida provisória que promovia a retomada do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), à aprovação de projeto de decreto legislativo para anular decreto que alterou o marco de saneamento, a retirada de pauta do Projeto de Lei das Fake News, a aprovação de emendas para permitir a devastação da mata atlântica e e aprovação do substitutivo ao Projeto de Lei do marco temporal para as terras indígenas, além do susto na medida provisória de reorganização da administração pública.
Nesses temas, o recado do Congresso foi absolutamente claro. Se não houver diálogo e calibragem nas propostas, haverá dificuldades para o governo. Além disto, existe o problema do Banco Central, cujo presidente, um opositor claro do atual presidente da República, continua insistindo em manter os juros nas alturas, dificultando enormemente o retorno do crédito e, em consequência, a volta dos investimentos da geração de emprego e renda.
Isso demonstra que a montagem ministerial, fortemente influenciada por disputas regionais, não foi capaz de dar maioria ao governo para aprovar os temas centrais de sua agenda, seja porque partidos não se sentiram contemplados com os nomes indicados, caso do União Brasil, seja porque não o governo não abriu espaço para partidos como o PP e Republicanos, que historicamente fizeram parte dos governos anteriores do PT. Por outro lado, setores do PT consideram que o governo já fez concessões demais, e não está promovendo a substituição de aliados do governo Bolsonaro que ainda ocupam posições de destaque no atual mandato.
O governo já entendeu que a relação com esse novo Congresso vai requer da coordenação política do Palácio do Planalto muita paciência, humildade, disposição para o diálogo, calibragem no conteúdo das políticas públicas e capacidade de articulação e negociação, especialmente quando se tratar da revisão de marcos regulatórios aprovados nos últimos seis anos. Além disso, o Presidente e seu Partido são de esquerda, mas o governo como um todo, não. A composição governista revela a influência de partidos que não apoiam as mesmas causas, notadamente políticas identitárias e no campo do dos costumes e uma atuação mais ativa do Estado na economia.
Nunca é demais lembrar que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, absolutamente político e sem base material, foi mais resultado de pressão do mercado, da mídia e de parcela expressiva do Congresso, inconformado com a pouca atenção dada aos parlamentares e com uma postura mais intervencionista da presidente na economia, do que por supostos desvios de conduta.
É verdade que o governo, apesar das dificuldades, conseguiu avançar como algumas pautas, como a que reorganizou a máquina pública, restaurando pastas ministeriais importantes, recriou os espaços diálogo com a sociedade, entre os quais o Conselhão, recriou programas sociais, como o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, o Mais Médicos, a Farmácia Popular, concretizou o programa Desenrola e aprovou a lei da igualdade salarial entre homens e mulheres, além de dar aumento real para o salário mínimo, reajustar o piso salarial dos professores, o salário dos servidores públicos, as bolsas da Capes e do CNPq, e implementou o piso salarial dos enfermeiros. Contudo, terá que ter muito cuidado com os temas que revejam marcos regulatórios de interesse do mercado aprovados nos governos anteriores.
Não é que deva desistir de rever esses marcos, não. Deve buscar revê-los inclusive porque alguns deles são condições para que o país retome os investimentos e avance na geração de emprego e renda, mas terá que dialogar e buscar os mecanismos adequados, porque não é nada confortável para os parlamentares que aprovaram esses mesmos marcos em governos anteriores.
Esse é o retrato das dificuldades de relacionamento com o Congresso. E é nesse ambiente que os temas regulatórios, como o previdenciário, especialmente aqueles aprovados no âmbito da Emenda Constitucional 103, o trabalhista, ambiental e tributário, serão debatidos.
É preciso considerar essa realidade. Os pontos que não dependerem do Congresso, o Poder Executivo poderá tocar com relativa facilidade, especialmente por meio de decretos, portarias ou resoluções de órgãos colegiados, mas no que depender do Congresso terá que ter muita negociação e calibragem, sob pena de não passar.
Uma das urgências em matéria previdenciária, por exemplo, será a mudança da fonte de financiamento da folha para a receita ou o faturamento. Com a automação, a digitalização e “uberização” do mundo do trabalho, a folha de salário não dará mais conta de financiar a previdência pública e o governo deve agir logo, antes que essa migração represente aumento real de despesa para as empresas.
Finalmente, a pauta mais robusta do governo será a aprovação do arcabouço fiscal no Senado e da reforma tributária nas duas Casas do Congresso, e ambas são vistos pela mídia e pelo mercado como indispensáveis para a estabilidade econômica e a retomada do crescimento econômico.
Como vimos, o desafio do governo em geral e do presidente Lula em particular será superar esses obstáculos de relacionamento com o Congresso e criar os meios para retomar o crédito e incentivar a atividade econômica. Para tanto, é necessário organização e criatividade.
O sucesso do governo depende da aprovação de sua agenda no Congresso Nacional e da volta do crédito e dos investimentos, sem os quais dificilmente o terceiro mandato repetirá o sucesso dos dois primeiros, que combinaram crescimento econômico, redução das desigualdades e o controle das contas públicas. Embora haja alguns sinais positivos na área econômica, como o aumento da produção agrícola, a queda do dólar, a melhoria da avaliação de risco do Brasil, rumo ao grau de investimento, a redução dos índices de inflação, em maio e a melhoria das estimativas de crescimento da economia, ainda é cedo para fazer projeções mais otimistas.
A situação pode e certamente será equacionada, porém depende da melhoria da comunicação e da coordenação política do governo. E, em última instância, o governo dispõe de um ativo inigualável na arte de dialogar e convencer: o presidente Lula, um homem com enorme poder de persuasão e negociação, que tem inigualável representatividade junto às camadas mais pobres da sociedade, e que consegue expressar, melhor do que ninguém, as angústias e necessidades do povo”.