Luiz Alberto dos Santos * e Aldino Graef **
A criação de uma fórmula de concurso unificado na administração pública federal, medida já amplamente divulgada pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, não só não soluciona os problemas da gestão de recursos humanos como é de duvidosa legalidade, além de uma negação do próprio sistema de carreiras.
Em 28 de setembro de 2023, foi editado o Decreto nº 11.772, que “dispõe sobre o Concurso Público Nacional Unificado e institui seus órgãos de governança”. Embora o decreto não traga detalhes sobre como será estruturado e realizado esse “concurso unificado”, ele o define com um “modelo de realização conjunta de concursos públicos para o provimento de cargos públicos efetivos no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, mediante a aplicação simultânea de provas em todos os Estados e no Distrito Federal”. E, como objetivos: “promover igualdade de oportunidades de acesso aos cargos públicos efetivos”, “padronizar procedimentos na aplicação das provas”, “aprimorar os métodos de seleção de servidores públicos, de modo a priorizar as qualificações necessárias para o desempenho das atividades inerentes ao setor público” e “zelar pelo princípio da impessoalidade na seleção dos candidatos em todas as fases e etapas do certame”.
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A rigor, porém, nenhum desses objetivos requer, ou recomenda, a adoção de um “concurso unificado”, que ignore a exigência de concurso público específico para o provimento de cargos efetivos, como, aliás, previsto em diversas leis. Tanto a especificidade do concurso quanto da formação inicial para o exercício de cargos de carreiras específicas decorre da própria concepção de carreira, admitida constitucionalmente.
Uma carreira é uma estrutura hierarquizada de classes de cargos de mesma natureza atributiva e responsável por um conjunto de atividades previstas na estrutura organizacional. Carreira é, portanto, uma forma de organização administrativa responsável por uma parcela das atividades no âmbito da divisão de trabalho do serviço público. Os cargos e as carreiras são criados por lei, nas quais são definidas as atribuições dos cargos, assim como os requisitos de ingresso e os mecanismos de desenvolvimento funcional. Neste sentido, uma carreira pode ser considerada como um equivalente a uma profissão regulamentada no âmbito específico da administração pública.
Como cada carreira é responsável por um conjunto de atividades, no contexto da divisão de trabalho do serviço público, os cargos que as compõem têm atribuições essencialmente diferenciadas em relação aos demais, pois a atividade desempenhada por cada uma delas exige CONHECIMENTOS E HABILIDADES ESPECIFICAS para seu desenvolvimento.
Assim, são muito diferentes os conhecimentos e habilidades exigidos para os diferentes cargos, tais como de físicos nucleares, especialistas de infraestrutura, delegados de polícia, médicos de diferentes especialidades, advogados da União, tecnologistas, pesquisadores de C&T, procuradores, diplomatas, integrantes do magistério superior, gestores governamentais (EPPGG), só para citar alguns exemplos. O processo de seleção destes profissionais via concursos públicos deve servir para selecionar os candidatos de melhor desempenho nestes certames. E, obviamente, os certames devem ser elaborados em conformidade com os requisitos de ingresso nas carreiras, como estabelecidos por lei.
Mas alguém consegue imaginar ser possível um processo seletivo sem levar em consideração os requisitos de ingresso estabelecidos em lei para cada uma das carreiras – e sem levar em consideração as diferentes exigências de formação e habilidades específicas para o exercício das atribuições dos respectivos cargos?
Alguém consegue defender um sistema que selecione pessoas, de forma “genérica”, sem aferir a detenção, pelos aprovados, de conhecimentos e qualificações relevantes e necessárias para o exercício dos respectivos cargos em que serão investidos?
Um concurso unificado implica prova unificada para cargos de atribuições completamente distintos e com requisitos de formação e ingresso diversos! Há um paradoxo aqui!
Assim sendo, ou o tal concurso unificado imagina uma “geléia geral” – na administração pública (“todo mundo faz a mesma coisa”) ou isso não serve absolutamente para o ingresso nas carreiras. Diferentes atribuições envolvem diferentes requisitos de formação e ingresso. E diferentes requisitos de formação e ingresso levam obviamente a processos de seleção – concursos – específicos para cada carreira. Qualquer outra perspectiva constitui uma clara negação do sistema de carreiras admitido pelo nosso sistema constitucional.
Além disso, há leis específicas, que não podem ser ignoradas.
As carreiras de gestor governamental (especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental), de técnico de planejamento e pesquisa do Ipea e analista de Planejamento e Orçamento têm como requisitos de ingresso possuir diploma de nível superior e CONHECIMENTOS EM NIVEL DE PÓS-GRADUAÇÃO, conforme determinação legal constante do §1º do Art. 11 da Lei nº 9.625/96. Ora, o atendimento a estes requisitos legais deverá ser aferido no concurso público por meio de certame de provas de conhecimento em nível de pós-graduação e títulos. Ou seja, as provas para ingresso nestas carreiras citadas implicam, em razão do nível de conhecimentos exigido em lei, a aplicação de provas de nível de conhecimentos superiores em relação a muitas outras carreiras cujo ingresso não prevê tais exigências. Portanto, o concurso para estas carreiras jamais poderá ser o tal concurso unificado.
Mas, além dos aspectos legais, as atribuições dos cargos da carreira de EPPGG, voltadas para atividades de formulação, implementação e avaliação e políticas públicas, bem assim de direção e assessoramento nos escalões superiores da administração, exigem conhecimentos aprofundados em várias áreas como ciências políticas, sociologia, teorias econômicas, direito constitucional e administrativo, história política e administrativa do Brasil, fluência em pelo menos uma língua estrangeira, bons conhecimentos de língua portuguesa e outros, não aplicáveis à maioria das demais carreiras.
E não só conhecimentos acadêmicos, mas com aplicações interdisciplinares na compreensão dos problemas na sociedade brasileira.
Além disso, várias carreiras têm seus concursos, por lei, integrados por etapas eliminatórias e classificatórias, com a realização de exame de conhecimentos por provas, ou provas e títulos, com provas objetivas e discursivas, e curso de formação específico, e somente após aprovado em todas as etapas os aprovados são aptos à nomeação, dentro do total de vagas ofertadas ou que venham a ocorrer durante o prazo de validade do concurso.
No caso da Carreira de EPPGG, é exigida formação inicial específica, como segunda etapa do concurso, na Escola Nacional de Administração Pública (Enap) (criada para a formação desses quadros superiores da administração), com vistas à formação prática em gestão governamental que não existe no sistema universitário.
Este é um exemplo prático da inconsistência do projeto do concurso público unificado que desconsidera as atribuições diferenciadas entre as carreiras, no contexto da nossa divisão de trabalho, e desconsidera os requisitos de formação e habilidades necessárias para cada segmento da administração. A estrutura de carreiras existentes na administração pública federal, por mais deficiências que tenha, não pode jamais ser vista como um mero “agrupamento genérico de cargos”, cujos integrantes têm as mesmas atribuições ou que as desenvolvam no mesmo nível de complexidade e responsabilidade, sem diferenciações objetivas e necessárias ao cumprimento da missão institucional dos diferentes órgãos e entidades que a compõe.
Segundo noticiado, o “concurso nacional unificado” deverá ocorrer até março de 2024. Até o final de setembro de 2023, 20 órgãos e entidades federais já haviam aderido ao sistema de “prova unificada”, para provimento de 6.590 cargos efetivos, e em maio de 2024 será divulgada a relação de aprovados na “etapa unificada”, e, a seguir, a etapa de “cursos de formação” quando cabível, com nomeação prevista para agosto de 2024.
Isso significa que, no caso de carreiras em que deva haver formação em escola de governo, como parte do concurso, esse “curso de formação teria, no máximo, 2 (dois) meses de duração, e, se tiver que atender a aproximadamente 7 mil candidatos simultaneamente, não terá diferenciações de conteúdo – e isso sem falar que a Rede de Escolas de Governo não terá estrutura para ofertar cursos presenciais para tantos candidatos. Esse cenário revela descompromisso com a própria qualidade da formação a ser oferecida.
Embora tenha sido noticiado que “cargos e carreiras que já previam mais de um critério, como provas de título e cursos de formação, vão continuar sendo feitos por seleção específica”, no total das vagas a serem providas por esse meio estão incluídas as “carreiras transversais”, como EPPGG (150 vagas), analista técnico de Políticas Sociais (500 vagas), analista em Tecnologia da Informação (300 vagas) e analista de Infraestrutura (300 vagas). Essa contradição, que resulta, também, da ausência de uma norma mais clara, evidencia que, de fato, o concurso unificado não pode ser adotado de forma generalizada. Mesmo cargos como engenheiro, arquiteto, estatístico, bibliotecário, economista, médico, contador, enfermeiro etc., cujos conhecimentos específicos devem ser aferidos desde o início do certame, não podem ser objeto de um “concurso nacional unificado”.
Desconsiderar as atribuições, e tudo que delas decorre, dos cargos das diferentes carreiras leva a um beco sem saída. A tendência implícita que podemos observar será um certo rebaixamento de nível para as provas teóricas. Em alguns casos isso significará será um rebaixamento ilegal de requisitos, como mostramos acima. Mas, no geral, é a tentativa de tratar como iguais os diferentes. Isso nunca dá certo.
Ademais, concursos para cargos com estruturas remuneratórias diferenciadas, muitas vezes com disparidades de mais de 100% na remuneração inicial, não podem ser utilizados dessa forma: como definir, a priori, quem será aprovado? A mera ordem de classificação, permitindo ao candidato escolher o “melhor cargo”, acaba por submeter o interesse público ao do indivíduo. Com um grande número de candidatos concorrendo a todas as vagas ofertadas, a tendência é que haja muitos “empates” ao longo da lista de classificação. E, uma vez que o candidato decida o cargo que irá escolher, caso não seja aprovado em curso de formação, não poderá ser nomeado para outro cargo, ou voltar à “fila”, posto que teve nota mais elevada do que outros que ainda aguardam nomeação…
Além de desprestigiar o sentido do concurso público como meio de selecionar os mais habilitados e qualificados para o exercício de um cargo específico, essa “modelo” tenderá a gerar uma judicialização sem precedentes. Uma inovação para ser implementada, deve estar calcada em análise de riscos e mitigação da insegurança jurídica, mas o concurso unificado vai na contramão dessas necessidades.
* Luiz Alberto dos Santos é consultor legislativo do Senado, advogado, mestre em administração, doutor em ciências sociais. Egresso do primeiro curso de políticas públicas e gestão governamental da ENAP (1988-1990) foi subchefe de análise e acompanhamento de políticas governamentais da Casa Civil da Presidência (2013-2014).
** Aldino Graef é bacharel em história e egresso do primeiro curso de políticas públicas e gestão governamental da Enap (1988-1990). Especialista em políticas públicas e gestão governamental aposentado, ex-assessor especial na Casa Civil da Presidência (2010-2014), ex-diretor de articulação e inovação institucional na Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (2008-2012). Foi gestor de administração no centro de gestão e estudos estratégicos (2002-2008), entre vários outros cargos de direção superior no governo federal.
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