Somos nós, os brasileiros, uma excelência em transplantes de órgãos, em capacidade técnica dos profissionais, de centros médicos e até em exemplos de logística de superação neste país continental. Sei disso, acredite e comemore, porque me baseio numa pesquisa a que me dedico há pelo menos um ano, subsídio para meu próximo documentário, que tratará dessa superação brasileira – uma realidade que tem beneficiado milhares pelo SUS, sim, pelo Sistema Único de Saúde. O mesmo que atrasa pagamentos às Santas Casas, outras cirurgias, vive com tabelas defasadas, que faz faltar médicos e equipamentos para procedimentos simples ou mais complexos, cirúrgicos ou não, mas que, em transplantes, tem exemplos notáveis Brasil afora.
Tenho uma tese de que o Brasil é um país pela metade.
Os serviços nunca são inteiros, nunca inteiramente bons. Convivemos com a excelência em transplantes ao mesmo tempo em que falta gente e estrutura para diagnosticar apendicites. Talvez porque a nossa sociedade seja cidadã pela metade, ou exerça sua cidadania pela metade. No momento, estamos ouriçados por direitos e mais direitos. A outra metade, a dos “deveres”, está hibernando na nossa hipocrisia subconsciente.
Mas a tese acima é assunto para outra oportunidade. Volto ao caso que expõe parte disso, mas nos revela um lado extremamente bom que realizamos neste país.
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Recente reportagem de O Globo fala do desperdício de órgãos doados por problemas de transporte para equipes médicas. Do jornal: “A falta de transporte para equipes médicas e órgãos já captados fez o sistema de transplante deixar de aproveitar 982 ofertas feitas ao longo de cinco anos, de 2011 a 2015, o que significa que há uma recusa de órgão a cada dois dias em razão de entraves logísticos”. A reportagem alega ainda que não é só por recusa da Força Aérea Brasileira que o problema persiste. Independentemente de todos os fatos que apura, a reportagem é, sim – e não pode deixar de ser vista tal como – um espanto. Mas que se visto só por um lado pode se tornar um desalento injusto e desproporcional sobre todo o sistema de transplantes, o qual precisa de carinho e nosso orgulho. Nada deve diminuir o tamanho do problema constatado pela reportagem, mesmo porque a denúncia já fez surgirem ações para resolvê-lo, mas sugiro olhar para todos os lados. Dependemos desses outros lados para nos corrigir.
É essa mistura complexa, de não perder de vista os problemas, apontar soluções, mas jamais esquecer de como nos superamos como comunidade científica, como governo, políticas públicas e sociedade mobilizada para chegar até aqui e ter uma central de transplantes que está precisando de… logística, porque ela já existe. A técnica cirúrgica, as condições hospitalares, o programa de transplante em si, nós já desenvolvemos e temos essa alternativa funcionando para milhares de pacientes. Queremos mais, claro. Precisamos de mais.
É por isso que estamos discutindo e resolvendo novos problemas de soluções que criamos antes. Só se discute a falta de transporte para órgãos de transplante porque desenvolvemos e temos efetivamente estrutura e talento clínicos para fazer transplantes. É fato inexorável entender isso dessa forma, sem que, já disse antes, nos mobilizarmos para melhorar, ascender ao bem-estar social por inteiro.
Por todas essas razões, desse aspecto global dos transplantes, sem nada a esconder e tudo mostrar é que “Paralelo 1000”, o meu novo filme, ainda em fase de produção e captação de recursos, trata. Assista ao trailer do argumento e deixe-se emocionar e perceber que há muita gente fazendo muito:
O filme contará a saga dos transplantes no Brasil, a partir da história vitoriosa de mais de mil transplantes de fígado realizados pelo polo médico do Recife, da equipe do doutor Claudio Lacerda, um dos “discípulos” do cirurgião Silvano Raia, pioneiro brasileiro em transplantes de fígado em São Paulo. A solução dos transplantes de fígado iniciada no Sudeste foi espraiada para o Nordeste, levada a muito mais gente. Não é pouco. É muita coisa ter isso no país.
O filme fala do talento brasileiro, da competência da gente deste país, da superação nacional e dos problemas, inclusive de uma pediatra mandando a segurança oficial acordar um governador para poder usar o helicóptero do governo estadual que faria uma criança receber um fígado raro e salvar uma vida. São de problemas normalmente previsíveis e mais fáceis de serem resolvidos que, não resolvidos em regra, nos puxam pra baixo e revelam uma vez mais a gangorra que vivemos na vida nacional. Gangorra joga para baixo e para cima. É questão de buscar a estabilidade no bem-estar social.
Por isso, a realidade é o melhor remédio. Só a realidade. Nada desse negócio de decretar a falência do brasileiro como cidadão e de sua cidadania a cada novo problema que aparece, coisa que o cinema brasileiro do coitadismo, do favela-movie, cheio de diretores de cinema com a pretensão de se imaginarem “sociólogos”, adora fazer por mesmice, preguiça e incapacidade de ver o trabalho de muita gente acontecendo país afora. Há um universo de mais de 8 milhões de quilômetros quadrados e 200 milhões de pessoas para pesquisar antes de decretar como é o Brasil, como se desdobram os brasileiros, coisa que o boteco falso-intelectual cheio dos amigos que pensam igual jamais saberá dizer.
É preciso ter em mente e de forma muito cristalina que há o que comemorar, muito a corrigir, nada a deixar de lado e seguir em frente. Este país e seu povo já escolheram ser grandes. É um caminho sem volta que terá obstáculos e solavancos de provocar, por vezes, desespero. No entanto, nunca insuperáveis, como temos visto na história deste povo.
O relato jornalístico da reportagem de O Globo, um fato muito preocupante, sobrepõe um fato novo e corrigível sobre histórias da excelência técnica que adquirimos no meio médico, de política pública de alto nível. Uma mistura de descaso público de revirar o estômago, de organização e de desorganização. Ambas e contraditórias coisas. Ambos e contraditórios sentimentos.
Deve servir como referência em tudo o que mostra de positivo e negativo. Realcemos o bom e tomemo-lo como exemplo para corrigir os erros. É tudo verdade.
Não há motivos para pessimismos ou otimismos fáceis. Só para trabalho árduo.
Há quem já o esteja fazendo desde sempre.
E vou mostrá-los no documentário.
Trailer de argumento do filme “Paralelo 1000”
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