Ligia Bahia * e Marcus Vinicius de Azevedo Braga **
Eleições batendo à porta, e naturalmente vêm à tona a necessidade de se fazer balanços de funções públicas relevantes, que são por vezes ambíguos. No debate eleitoral, que sobrevive a dissociação da realidade em tempos de pós verdade, surgem aspectos positivos e negativos, evocados para afirmar plataformas eleitorais que prometem ampliar acertos e consertar erros frente a percepção popular, por vezes difusa, do que é problema e do que é solução.
Nos palanques, o nem tão pouco e não muito, servem como um discurso de entrada ao problema que mais preocupa os brasileiros, segundo diversas pesquisas de opinião, incensado pela percepção de riscos materializada pela pandemia recente. Apesar do discurso, em relação as questões sanitárias, resta, sob uma perspectiva histórica e institucional, um panorama que conjuga estabilidade com estagnação, a feita da paz após o perigo que se afastou.
Pelo lado positivo constata-se a permanência de uma arquitetura institucional consolidada, fruto de uma luta inglória de quase meio século na organização sistêmica da Saúde. Candidatos a prefeitos e vereadores renovam ou inovam promessas para a área, refletindo uma importante conquista da Constituição de 1988: a possibilidade de adequar políticas e a oferta de cuidados à saúde às necessidades locais. Por outro lado, fica a percepção congelada de demandas como mais ambulância e médicos, fila zero, como lugares comuns que não dialogam, por vezes, com as aflições que se avolumam e não são as mesmas, global e localmente.
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A agenda da saúde mudou durante e depois da pandemia. Assim como o mundo mudou. Políticas, programas e ações definitivamente devem estar voltadas simultaneamente a proteção contra riscos e prevenção, diagnóstico precoce e tratamento de agravos e problemas prevalentes (a exemplo de canceres e os cuidados a crianças que podem alcançar patamares mais elevados de sobrevida e de desenvolvimento motor e cognitivo, respectivamente).
Nesse mundo novo, a incerteza se põe como o grande inimigo. Não estaremos preparados para enfrentar ameaças sanitárias apenas com a declaração de intenções acanhadas e anacrônicas, carecendo de ações estruturantes e permanentes. Nas linhas do sociólogo Ulrich Beck, a percepção do risco molda as decisões presentes, fortalecendo a dinâmica do futuro e os seus medos advindos, como uma poderosa força estruturadora. E nesse berço esplêndido repousa a esperança nos avanços da saúde nos dias após a pandemia.
Ao olhar de perto a paisagem das cidades se verifica que as secretarias de saúde mantém alguma estabilidade, uma certa burocracia institucionalizada, permeadas por modelos que invocam a primazia de uma suposta eficiência frente a permanência diante dos ciclos da política municipal, e que por vezes acabam por sacrificar esses resultados pela volatilidade dessas estruturas e a vinculação umbilical destas a grupos de ocasião, bem como no imediatismo de emendas parlamentares, e da extinção de vinculações orçamentarias, onde o presente mais uma vez mata o futuro, esquecido o passado.
Em mais um pleito eleitoral, no que se refere a já tradicional e monótona pauta da saúde de “feitos e o me comprometo a fazer” dos candidatos, destacam-se, como retrato de uma época de ilusões, a apresentação de compromissos irrealistas, genéricos, frequentemente requentados, pois são sabidos que não serão cobrados adequadamente, uma das raízes da crise da democracia liberal que vivemos, como ilustram discussões recentes de pesquisadores como Manuel Castells e de Adam Przeworski.
Aumento de oferta de serviços, contratação e melhores salários para profissionais de saúde, fim definitivo de longas esperas para consultas, exames especializados e internações. Variações de um mesmo roteiro fixo, que podem eventualmente incluir a melhoria da qualidade dos gastos e a organização de centros de reabilitação, e outros serviços, como a saúde oral. A convergência entre ambos os movimentos: o de uma estabilidade institucional estruturalmente frágil de uma burocracia que tem dificuldades de se organizar aliado ao distanciamento entre o que discurso e a prática política impõe barreiras ao fortalecimento institucional.
Esse descompasso entre o processo eleitoral dinâmico que colhe percepções locais e a necessidade de robustecimento intertemporal de uma política complexa e ao mesmo tempo de forte apelo como a saúde fere, ao não impulsionar um amadurecimento focado no futuro, lógicas próprias do federalismo e da accountability, padecendo os males de uma opinião pública difusa e confusa nas redes da hiperconectividade, convertendo as águas turbulentas em poças estagnadas, igualmente perigosas.
Eleições, em especial na esfera municipal, são institutos que trazem consigo a virtude de reafirmar a manifestação livre dos eleitores, indispensáveis em um cenário democrático. A pergunta é se seria viável torná-las ainda mais incrustadas na vida social a ponto de conferir uma saudável separação entre a administração e o sistema político, mas que não dispensa a correlação entre estas, no fortalecimento pelo processo político de burocracias da saúde dotadas de caráter precipuamente profissional e que transcendam a temporalidade do ciclo político.
A descontinuidade de ações de saúde e dificuldades para o planejamento de médio e longo prazo podem decorrer de um imediatismo derivado do processo político local, e pode ter alto preço em termos econômicos e políticos. Sair do círculo de giz exige reconhecimento simultâneo de avanços e impasses, de um rio que se movimenta, mas que precisa ser constante na sua correnteza. De forma pragmática, uma proposta: sugerir que os candidatos incluam entre seus compromissos a concepção de que saúde é uma política de Estado, que haverá respeito e continuidade de equipes técnicas e não interrupção de atividades estratégicas. Simples, mas complexo. E relevante.
*Ligia Bahia é Médica e professora da UFRJ
**Marcus Vinicius de Azevedo Braga é Doutor em Políticas Públicas pela UFRJ
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