Charles Alcantara*
Os sucessivos fracassos das tentativas anteriores de reforma ampla ou parcial do sistema tributário nacional sempre estiveram vinculados à incapacidade de articular os interesses dos diversos atores sociais implicados. Isto porque foram concebidas a partir de uma única ótica, a dos interesses exclusivos de setores empresariais. Ao erigir-se com ênfase nos anseios de um segmento específico da sociedade obriga a proposta a incorporar mecanismos e “soluções” paliativas ou improvisadas para albergar, de alguma forma, os interesses dos demais atores, notadamente estados e municípios. Tais adaptações, além de produzirem as mais diversas atecnias, conduzem à formação de um ambiente de insegurança e de desconfiança que a proposta é incapaz de suportar e, ao não prosperar, acaba sendo desinteressante inclusive para os destinatários originais.
Essa deficiência “genética” está presente outra vez, e de forma muito clara, na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/19, como procuro demonstrar a seguir.
A proposta foi construída a partir da ótica exclusivamente empresarial, segundo a qual o problema central a ser enfrentado é a complexidade da tributação indireta sobre o consumo, sabidamente caótica, obsoleta e onerosa.
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Qual foi a solução? Substituir cinco tributos que incidem sobre a produção e o consumo por dois impostos incidentes sobre o consumo de bens e serviços.
A PEC 45/19 atende mais na aparência do que na essência aos anseios dos destinatários primeiros da proposta, e nem mesmo na aparência aos demais interessados.
A referida proposta de alteração constitucional acaba por revelar uma visão simplista da simplificação. Senão, vejamos: como superar o fato, por exemplo, de que as espécies tributárias substituídas competem atualmente a entes tributantes distintos?
A solução encontrada foi a de dotá-los de uma espécie de competência “cooperativa”, que nem de longe se aproxima da autonomia de que dispõem na atualidade, cuja âncora é a próprio princípio federativo.
Essa questão do cerceamento da autonomia dos entes federativos e da própria União no que tange à administração de seus tributos tem sido objeto preponderante das críticas à PEC 45/19, colocando em segundo plano a reflexão fundamental sobre os aspectos operacionais e efeitos econômicos e financeiros da proposta. Sem ser exaustivo, avaliemos a seguir alguns dos efeitos mais preocupantes.
A adoção do princípio do destino para o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) atende às recomendações da literatura especializada em IVA (Imposto sobre Valor Adicionado). Não encontra, todavia, par na experiência internacional a técnica adotada pela PEC 45/19 de considerar os territórios municipais como jurisdição de destino.
O IBS, portanto, cria uma figura desconhecida dos sistemas tributários em todo o mundo que é a operação “intermunicipal”. Esta solução implica que o IBS poderá operar com mais de 850 alíquotas nas operações intermunicipais no estado de Minas Gerais, por exemplo, e mais de 5.500 alíquotas nas operações interestaduais. Evidentemente, dado o avanço das tecnologias aplicadas aos processos de emissão de documentos fiscais, essa tarefa não seria infactível na atualidade, mas, certamente, nem de longe pode ser considerada uma medida de simplificação.
Além disso, ao conceder aos territórios municipais a condição de jurisdição de destino, impõe que o sistema de partilha das receitas tenha a capacidade de processar as informações geradas por todos os documentos fiscais que acobertarem operações internas e as de entrada ou saída da mencionada área, desde Notas Fiscais de Consumidor Eletrônicas (NFC-e), tanto de alimentos quanto de bens duráveis, até notas fiscais de produtor rural e avulsas de microempreendedores individuais (MEI). Estaríamos aí, mais uma vez, diante de uma tarefa possível, dados os quase ilimitados recursos dos processos informáticos. Não obstante, cabe questionar, em primeiro lugar, se é necessário adotar um sistema de partilha com tal complexidade e insegurança para distribuir as receitas de acordo com o consumo interno dos municípios, haja vista que isto pode ser atingido com muito mais facilidade mediante adoção de critérios básicos de população e renda. Em segundo lugar: é prudente prever na Constituição Federal a adoção de um sistema dependente de soluções tecnológicas muito distantes da realidade atual?
Outro aspecto que merece ressalvas é o fato de que todos os entes tributantes poderão fixar suas alíquotas (adicionais) sem considerar as fixadas por outros níveis de governo, favorecendo a tributação excessiva, externalidade negativa amplamente reconhecida na literatura especializada.
Cabe referir, também, as deficiências da solução encontrada pela PEC 45/19 para dar segurança aos governos subnacionais no que tange à manutenção das receitas no longo prazo. A proposta prevê um período de transição de 50 anos. Nos 20 primeiros, as receitas seriam distribuídas na proporção das arrecadações atuais do ICMS e do ISS, corrigidas monetariamente. Nos trinta restantes, reduzir-se-ia gradativamente a participação das parcelas “congeladas” na proporção de 1/30 ao ano e complementadas pelo novo sistema. O mencionado “congelamento” desconsidera a evolução díspar dos diferentes entes federados, sendo especialmente preocupante para o caso dos municípios. Não é difícil imaginar o caso de determinado município que recebe um novo empreendimento público ou privado de relativo porte. Por óbvio, com as receitas “congeladas”, não poderá atender as novas demandas decorrentes da expansão da população residente. Aliás, e isto é ainda mais preocupante, é provável que o empreendimento sequer ocorra, já que tal restrição seria previsível ao investidor. Também é previsível que o “congelamento” desestimule os esforços de estados e municípios no tocante às políticas de desenvolvimento, haja vista que as receitas já estariam asseguradas com independência da ampliação da atividade econômica.
Por fim, podemos prever a formação de outro efeito indesejável, decorrente da administração concorrente do IBS: o desestímulo ao esforço fiscal. O Simples Nacional é um exemplo presente em nossa realidade que bem demonstra que “o que é de todos, não é de ninguém”. Qual seria o estímulo de determinado ente para ampliar ou manter os esforços de fiscalização sobre um imposto que já seria, ou deveria ser, fiscalizado por outras Administrações Tributárias? No caso do Simples Nacional, o baixo esforço fiscal não afeta o ambiente concorrencial, mas, no caso do IBS, estaríamos tratando de aproximadamente 40% da arrecadação total de impostos no Brasil.
Não pretendi ser exaustivo, e suponho que não o fui, apesar da gravidade da matéria. Exaustivo tende a ser o debate público em torno da PEC 45/19, que promete simplificar a tributação no consumo, mas que nos pode entregar outras e indesejadas complicações, além da fragilização do federalismo fiscal em evidente desfavor de estados e municípios.
*Charles Alcantara, presidente da Fenafisco – Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital.
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