Matheus Boni Bittencourt*
Alunos da disciplina de Introdução à Economia Política da Universidade Federal do Espírito Santo acusaram o seu professor, Manoel Luiz Malaguti Barcelos, de discriminar negros ao dizer que preferiria ser tratado por um médico branco a um médico negro, se ambos tivessem o mesmo currículo. Em entrevista à mídia local, o economista confirmou a frase e tentou justificá-la, apresentando a sua “teoria” sobre o assunto:
“No meio de uma discussão sobre cotas e sobre o sistema educacional, eu coloquei que se tivesse que escolher entre dois médicos, um branco e um negro com o mesmo currículo, eu escolheria o branco. Porque o branco, em média, estatisticamente falando, nasceu numa família mais abastada, consequentemente ele teve acesso a meios de comunicação mais avançados, em outros idiomas. Ele participou de atividades culturais, viajou. É um tipo de aluno que tem uma exigência, que vê a universidade de uma forma. Já os negros, em média, vêm de sociedades menos privilegiadas. E nesse sentido não têm uma socialização primária na família que os torne receptivos. Eles têm muito mais dificuldades para acompanhar determinadas exposições. A gente como professor tem que fazer um duplo trabalho e falar em uma linguagem que penetre em todas as camadas sociais.
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(…) A biologia e a genética nos informam que até os sete anos as conexões neurais já estão todas estabelecidas. Qualquer coisa que aconteça após essa fase é uma influência da razão, do pensamento, tentando mudar os conceitos e preconceitos adquiridos nessa época-chave. Há uma maior dificuldade do cotista negro. Não que eles sejam inferiores. Ele simplesmente nasceu em uma condição de desigualdade social em relação aos outros alunos brancos que não são cotistas.
(…) Na média, os profissionais brancos são de uma camada social privilegiada. Todas as pesquisas mostram que para um mesmo trabalho os negros ganham menos. E, ganhando menos não podem se aperfeiçoar da mesma maneira que os brancos. Podem, na margem de erro das pesquisas. Não há nenhum tipo de inferioridade natural entre o negro e o branco. Todos nós temos algo de negro, de branco, de amarelo… Em média, o médico negro tem uma dificuldade maior para atingir o mesmo nível dos médicos brancos que provavelmente já recebem o consultório dos pais, têm uma clientela formada. Esse privilégio da classe média de poder viajar, comprar livros, se aperfeiçoar, se alimentar melhor, é isso que me faz pensar ao olhar para dois currículos, de preferir o branco.” (leia a entrevista aqui)
Com toda a razão, os alunos se sentiram ofendidos e realizaram protestos. O caso repercutiu na imprensa local e nacional (confira). Se sobrou mobilização, faltaram argumentos contra a justificativa “teórica” apresentada pelo professor.
Não é preciso apoiar cotas raciais para discordar das suas “teorias” lamentáveis, que no fundo apenas deturpam as pesquisas científicas sobre educação e classes sociais, como as de Pierre Bourdieu e Raymond Boudon (em que pesem as profundas discordâncias entre ambos). O professor de economia não foi necessariamente racista nas premissas, já que utiliza argumentos culturalistas sobre a socialização primária ao invés de argumentos biologistas sobre a hereditariedade (como faz o racismo tradicional, por exemplo, “A curva do sino” e a obra de Lombroso). Mas o foi nas conclusões.
Revelou ter uma visão muito mecânica e simplista sobre o efeito de estruturas desiguais da sociedade no desenvolvimento individual. Fosse mais que uma meia verdade a justificativa dele, um Machado de Assis, um Lima Barreto, um Guerreiro Ramos ou um Milton Santos não seriam possíveis. Aliás, nem mesmo seriam possíveis entre brancos pobres, como Raymundo Faoro, Di Cavalcanti e Florestan Fernandes.
Todos esses que eu citei vinham de família pobre e iletrada, e hoje fazem parte do panteão da nossa cultura erudita humanista.
Mantendo a estrutura social sem alterações, os filhos tendem a repetir a trajetória social dos pais. Ou “reproduzir a posição social” pela “transmissão do capital cultural”, como diria Bourdieu. Trata-se de uma tendência estatística, uma média ou frequência abstraída de uma multidão de casos individuais de onde sobressaem algumas exceções.
Se a exceção à tendência estatística não é relevante de um ponto de vista quantitativo, pode sê-lo muito do ponto de vista qualitativo, para a constituição do patrimônio cultural da humanidade.
Além disso, a universalização da educação tem efeitos de longo prazo, no sentido de favorecer a mobilidade social entre os estratos pobres e médios da população. Em contrapartida, as posições superiores dos “super-ricos” são mais rígidas, quase inatingíveis, pois se baseiam no patrimônio acumulado e/ou herdado e/ou na dominação política e administrativa.
Se o filho do analfabeto enfrenta dificuldades mesmo quando tem acesso às condições materiais do ensino (vaga, meios e tempo para estudar, etc), os seus netos e bisnetos terão menores dificuldades, à medida que as sucessivas gerações adquirem maior familiaridade com a cultura acadêmica e erudita.
Por acaso um dos autores dessa análise social, Pierre Bourdieu, era uma dessas exceções: um filho de camponês que foi o primeiro a se graduar em sua família e ascendeu ao topo da profissão universitária na França. É bizarro alguém se apropriar de modo tão deturpado dos estudos sobre educação/desigualdade, cujas conclusões vão no sentido contrário da forte discriminação “culturalista” contra pobres e negros expressada pelo professor em sala de aula e reiterada em entrevista à imprensa.
Também esquece ele que a Lei de Cotas em vigor estabelece apenas uma PREFERÊNCIA no preenchimento de 50% das vagas por alunos oriundos da escola pública (e dos pobres, negros e índios dentre esses, ficando excluídos das cotas, portanto, os negros de classe média e alta). Os selecionados entre os cotistas são os que tiverem maiores notas e é preciso atingir uma nota mínima de corte para conquistar a vaga.
Sendo assim, o professor economista mostrou um conhecimento deturpado e superficial sobre a relação entre educação e classe social e sobre a Lei de Cotas.
Durante a minha graduação em Ciências Sociais, fui aluno de Manoel Malaguti na disciplina de Introdução à Economia, e passei com boas notas. Fiquei bastante perplexo ao ler a entrevista, pois em sala de aula nunca vi da parte dele qualquer atitude reacionária ou racista, e demonstrava conhecer muito bem o assunto que lecionava. Seu maior problema como professor era a grande negligência e desdém pelas suas tarefas.
Hoje eu consegui entender o porquê daquela atitude. Não era preguiça. Ele realmente não acreditava nos alunos, nos subestimava e nos via como “despreparados” para o estudo e considerava uma perda de tempo qualquer aprofundamento na disciplina. Sequer apresentou plano de trabalho e bibliografia suplementar. Não foi o único professor a demonstrar essa negligência e desdém. Por isso desconfio que outros professores acreditavam na mesma coisa, sendo apenas menos desbocados e sinceros.
No entanto, a questão do preconceito de classe e raça é mais complexa. Deixando um pouco de lado as excêntricas “teorias” discutidas e rebatidas acima, nem sempre a manifestação de racismo é tão óbvia. Quando alguém diz que as desigualdades sociais são frutos de desigualdades naturais, dentro de uma sociedade onde o filho do pobre tende a continuar pobre e o rico geralmente é filho de um rico, com uma forte correspondência entre cor e renda, está sendo racista sem falar de raças. Afinal de contas, naturaliza os extremos de pobreza e riqueza, dizendo que a posição de cada indivíduo é produto de supostas aptidões naturais.
Os defensores dessa “teoria” deturpam o sentido da palavra “meritocracia”, que só se realiza onde a seleção se dá em igualdade de condições materiais. Na verdade, estão defendendo o velho darwinismo social, o transplante arbitrário do modelo darwiniano sobre a origem das espécies para um modelo racista sobre a origem das classes sociais.
Infelizmente, tenho visto pouco repúdio a esse tipo de opinião, que costuma ser usada para deslegitimar as políticas de redistribuição de riquezas e os movimentos por justiça social. E creio que é tolerado por não mencionar explicicamente a raça, e até se recusar a fazê-lo. Mas não consigo imaginar nada mais racista que atribuir desigualdades de classe a diferenças naturais de aptidões, levando em conta que na realidade brasileira a pobreza e a riqueza tem cor e passam de pai para filho.
Não é difícil perceber a maior proporção de negro-mestiços entre os mendigos, moradores de favelas, pedreiros, faxineiros, catadores, vendedores ambulantes, boias-frias, presidiários, etc. Nem a maior proporção de brancos entre empresários, políticos, médicos, engenheiros, magistrados, professores universitários e oficiais militares. Tanto a realidade cotidiana quanto as estatísticas oficiais e pesquisas acadêmicas deixam poucas dúvidas sobre a relação entre desigualdade econômica e preconceito racial.
É difícil não comparar o comportamento policial em relação aos negros/mestiços e pobres com os antigos capatazes e caçadores de fugitivos do passado escravista. Não dá para deixar de lembrar dos senhores de escravos do passado quando vislumbramos a atual “bancada ruralista” no Congresso Nacional, com sua arrogância e brutalidade sem limites. Por isso gostaria de ver, um dia, esse tipo de discurso socialdarwinista ser tão repudiado quanto as bizarras “teorias” raciais culturalistas do meu antigo professor de ciência econômica.
*Sociólogo, pós-graduado em Literatura e mestre em Ciências Sociais pela UFES.
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