Uma entrevista dada recentemente por Marilena Chauí à Rede Brasil Atual, divulgada no Portal Vermelho, atribui à violência repressiva, à privatização e à reforma universitária, essa educação “voltada à fabricação de mão-de-obra”, a extinção do pensamento crítico no Brasil, e são, na opinião da filósofa e professora aposentada da USP, as marcas e cicatrizes da ditadura no ensino universitário do país. Aliás, para MC, a ditadura militar destruiu a escola pública no Brasil. Relembrando duras passagens do período, ela afirma não mais acreditar na escola como espaço de formação de pensamento crítico dos cidadãos.
Ensina Chauí que a violência repressiva se abateu sobre os educadores nos três níveis: fundamental, médio e superior. As perseguições, cassações, expulsões, prisões, torturas, mortes, desaparecimentos e exílios, eis a devastação feita no campo dos educadores. Todos os que tinham ideias de esquerda ou progressistas foram sacrificados de uma maneira extremamente violenta.
Em segundo lugar – como outra das causas instauradas na ditadura que contribuíram para a destruição do ensino e do pensamento crítico no Brasil: a privatização do ensino, que culmina agora no ensino superior, começando no ensino fundamental e médio. As verbas não iam mais para a escola pública, de forma que esta foi definhando e em seu lugar surgiram ou se desenvolveram as escolas privadas.
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Chauí: “Eu pertenço a uma geração que olhava com superioridade e desprezo para a escola particular, porque ela era para quem ia pagar e não agüentava o tranco da verdadeira escola. Durante a ditadura, houve um processo de privatização que inverte isso e faz com que se considere que a escola particular é que tem um ensino melhor. A escola pública foi devastada, física e pedagogicamente, desconsiderada e desvalorizada”.
Em terceiro, a reforma universitária. A ditadura introduziu um programa – conhecido como MEC-Usaid – do Departamento de Estado dos Estados Unidos para toda a América Latina. Ele foi bloqueado durante o início dos anos 1960 pelos movimentos de esquerda no continente, contudo posteriormente, a ditadura o implantou. Essa implantação consistiu em destruir a figura do curso com multiplicidade de disciplinas, que o estudante decidia fazer no ritmo dele.
Ainda conforme MC, os cursos se tornaram seqüenciais. Foi estabelecido o prazo mínimo para completar o curso. Houve a departamentalização (ou fragmentação em departamentos) mas com a criação da figura do conselho de departamento, o que significava que um pequeno grupo de professores tinha o controle sobre decisões e a totalidade dele. Aí se tem a centralização. Foi dada ao curso superior uma característica de curso secundário – que hoje chamamos de ensino médio – que é a seqüência das disciplinas e essa ideia violenta dos créditos.
Além disso, inventaram a divisão entre “matérias obrigatórias” e “matérias optativas”. E, como não havia verba para contratação de novos professores, os professores tiveram de se multiplicar e dar vários cursos. Houve um comprometimento da inteligência, claro, posto que ocorreu a falta crônica de verba para laboratórios e bibliotecas,além da devastação do patrimônio público por uma política que visava exclusivamente à formação rápida de mão de obra dócil para o mercado. Aí, criaram a chamada licenciatura curta, ou seja, você fazia um curso de graduação de dois anos e meio e tinha uma licenciatura para lecionar. Além disso, criaram a disciplina de educação moral e cívica, para todos os graus do ensino. A universidade que conhecemos hoje é a universidade que a ditadura produziu.
Marilena Chauí: “Esse é o momento (final dos anos 70) também em que há uma ampliação muito grande da rede privada de universidades porque o apoio ideológico para a ditadura era dado pela classe média. Ela, do ponto de vista econômico, não produz capital, e do ponto de vista político, não tem poder. Seu poder é ideológico. Então, a sustentação que ela deu fez com que o governo considerasse que precisava recompensá-la e mantê-la como apoiadora, e a recompensa foi garantir o diploma universitário para a classe média. Há esse barateamento do curso superior para garantir o aumento do número de alunos da classe média para a obtenção do diploma. É a hora em que são introduzidas as empresas do vestibular, o vestibular unificado, que é um escândalo, e no qual surge a diferenciação entre a licenciatura e o bacharelato.”
Para a filósofa, foi uma coisa dramática: lutamos o que pudemos sob a censura e o terror do Estado, com o risco que se corria, porque nós éramos vigiados o tempo todo: “Os jovens hoje não têm ideia do que era o terror que se abatia sobre nós. Você saía de casa para dar aula e não sabia se ia voltar, não sabia se ia ser preso, se ia ser morto, não sabia o que ia acontecer, nem você, nem os alunos, nem os outros colegas. Havia policiais dentro das salas de aula.”
É preciso levar em consideração o que o neoliberalismo fez: a ideia de que a escola é uma formação rápida para a competição no mercado de trabalho. Então fazer uma universidade comprometida com o que se passa na realidade social e política se tornou uma tarefa árdua e difícil. E ambígua, pensamos nós.
Marilena Chauí: “Na escola, na universidade, a formação do cidadão crítico não vai acontecer. Você pode ter essa expectativa em outras formas de agrupamento, nos movimentos sociais, nos movimentos populares, nas ONGs, nos grupos que se formam com a rede de internet e nos partidos políticos. Você tem estes bolsões, mas não como uma tendência da escola.”
Em suma, cabezas cortadas, na expressão da época. Desde os anos 70, mais de quarenta anos. A extinção do pensamento crítico brasileiro não vem só daí, claro, mas se “instrumentalizou” e consolidou, com consequências no tempo, graças à ditadura. É isso aí.
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