Qualquer conceito, por mais ilibada que seja sua origem, pode ser deturpado e usado para os fins opostos aos da tradição que lhes deu significado. Por exemplo, do conceito de liberdade surgiu o conceito de liberalismo e, depois, de neoliberalismo econômico, que é o chamado “fascismo de mercado”. Apesar de ter sido pensada como “o poder do povo”, a democracia é, em muitos países, apenas o poder das elites sob disfarce de consenso eleitoral.
O mesmo acontece com o conceito de direitos humanos. A direita demorou um tempo para dar-se conta de que a esquerda defendia os direitos humanos, mas, quando percebeu, decidiu descontar o tempo perdido. Foi assim, que, para enfraquecer os grupos e ONGs que lutavam contra os crimes do Estado, o próprio Estado criou seus mecanismos para “cuidar” dos direitos humanos, o que significa, na realidade, lançar uma cortina de fumaça sobre seus violadores, e amortecer a eficácia dos ativistas independentes.
James Carter deu fôlego à campanha contra as violações soviéticas dos direitos humanos, e até criou ONGs para esse propósito, mas fez apenas repreensões “amigáveis” às ditaduras de Cone Sul. A Corte Europeia de Direitos Humanos, pomposamente situada no coração da civilizada Europa e tida como a menina dos olhos da União Europeia, rejeitava em 2011, nada menos que 96,24 % das petições de famílias e aldeias inteiras de refugiados, perseguidos, deslocados, etc. que fugiam das catástrofes do norte da África, da Albânia e Meio Oriente.
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Na América Latina, os ministérios de Direitos Humanos (como no caso da Argentina) foram criados para que os governos mantivessem controle sobre os familiares dos desaparecidos das ditaduras. No Brasil, a ministra de Direitos Humanos limitou-se a dizer “que absurdo!”, quando Pinheirinho foi assaltado, produzindo mais vítimas das que fizeram os sul-africanos em Soweto.
Mas vamos a algo mais atual. No dia 24 de abril, a secretária de Justiça de São Paulo, Eloisa de Sousa Arruda, que é, entre outras coisas, professora na cátedra Vieira de Mello do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, chamou de irresponsável o governo do Acre, por não ter comunicado ao governo de São Paulo que havia refugiados haitianos vindo para o estado (sic!). O secretário de Direitos Humanos do Acre, Nilson Mourão, explicou a situação publicamente. O governo havia arrumado condução para que os refugiados haitianos, ante a saturação de acampamentos na região, continuassem até São Paulo, onde, como é óbvio para qualquer um, há mais recursos em todos os sentidos do que no Acre. Os refugiados foram alojados numa igreja da capital paulista que costuma receber refugiados, mas foi uma doação de colchões e cobertores da prefeitura de São Paulo que evitou que dormissem no chão. A crítica da secretária de Justiça de São Paulo foi transmitida pela TV, apesar de a acusação ser repetitiva ad nauseam.
Seria ingênuo nos perguntarmos por que os justiceiros do governo paulista repudiam atos tão singelos e básicos. Mas, para não esquecermos, o governador do Acre, Tião Viana, destacou com uma coragem inusitada o que todos sabemos, mas temos medo de dizer. O governador desmascarou o racismo, a higienização, a pretensão de que o Acre prendesse os refugiados, e o objetivo de destruição de núcleo familiar e alienação dos refugiados. Tudo isso foi explícito. Ficou implícito, em minha opinião, muito claramente, que as elites paulistas estão contribuindo mais uma vez com a faxina étnica, como fizeram no Carandiru, em Pinheirinho, e em muitos outros lugares.
A secretária de Justiça teria sido indicada para o cargo por um ex-secretário de Segurança Pública, famoso por sua notória disfuncionalidade psiquiátrica, que batizou de sangue e pólvora o mês de “maio de 2006”, gerando, com sua gangue oficial, mais de 400 adolescentes assassinados, onde nem os cadáveres eram liberados até ficarem em estado de não serem reconhecidos. A mesma fonte disse que a secretária “só sai do sério” quando lhe mencionam sua possível cumplicidade no caso Pinheirinho. No mesmo artigo, fala-se muito da autoconfiança, serenidade e simpatia da secretária. Cabe perguntar-se: por que uma pessoa tão charmosa e serena sairia do sério apenas por uma acusação que, segundo ela, é falsa?
Entretanto, quero deixar algo claro: não se deve pensar que esta atitude com os refugiados, seja alheia à história do ACNUR, que em muitos países é manipulado por setores confessionais e politiqueiros, apesar da rotatividade dos quadros. Aliás, nem sempre quadros profissionais têm qualquer amor pela humanidade. Em vários casos (muitos?), as figuras da ONU se sentem realizadas pelo poder que possuem, e porque os salários das Nações Unidas não são ruins.
Em última instância, a ONU é quem, teoricamente, protege os refugiados. Por paradoxo, estes refugiados haitianos são deslocados de seu país não apenas pela fome e pelos terremotos, mas também pelos crimes da Minustah, que é considerada a “força de paz” dessa organização.
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