Edson Sardinha e Lúcio Lambranho
Quando desembarcou na Câmara, em 1991, o deputado Augusto Farias (PP-AL) ostentava a credencial de irmão do então todo-poderoso Paulo César Farias, ex-tesoureiro de campanha do presidente Fernando Collor. Em 2007, Augusto voltou ao Congresso para o seu quarto mandato com algo mais em comum com o irmão do que o sobrenome. Assim como o ex-tesoureiro, assassinado misteriosamente em 1996, ele também tem problemas na Justiça.
O deputado é acusado desde 2003 de manter 99 trabalhadores em condições análogas às de escravo em uma fazenda de sua propriedade no sul do Pará. A pena pelo crime pode chegar a oito anos de prisão. A notificação feita em fevereiro daquele ano pelo Grupo Móvel do Trabalho Escravo, coordenado pelo Ministério do Trabalho, rendeu 19 autuações trabalhistas e previdenciárias e um inquérito com uma dezena de tipificações penais, em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF) há três anos. Outros dois parlamentares – o deputado Beto Mansur (PP-SP) e o senador João Ribeiro (PR-TO) – também respondem no Supremo por trabalho escravo.
Parlamentares negam acusações sobre trabalho escravo
No caso do parlamentar de Alagoas, as acusações são de formação de quadrilha, redução à condição análoga a de escravo, frustração de direito assegurado por lei trabalhista, aliciamento de trabalhadores, omissão de dados da carteira de trabalho, sonegação de contribuição previdenciária, destruição de floresta de preservação permanente, e de causar poluição mediante uso de fogo, destruindo significativamente a flora.
Com a demora na Justiça, outros três crimes atribuídos ao deputado prescreveram e, portanto, não podem mais ser julgados: frustração de direito assegurado por lei trabalhista, exposição da vida e da saúde de pessoas a perigo e omissão de socorro.
Doentes e acidentados
Um exemplo da situação em que se encontravam os trabalhadores da fazenda de Augusto Farias é o lavrador Valdeci Lopes Fontoura, vítima da falta de assistência médica aos empregados da propriedade rural. Valdeci fazia o roçado da propriedade quando sofreu um acidente de trabalho em novembro de 2002. Teve traumatismo e perfuração do globo ocular esquerdo.
Ele conta que ficou de três a quatro dias alojado numa barraca no meio do mato, aguardando remédio. Seis dias depois, como seu estado de saúde piorava, foi levado para receber atendimento médico no município de Redenção, a 300 quilômetros de distância. O trabalhador perdeu a visão do olho esquerdo.
Valdeci perdeu o olho por falta de atendimento médico
Valdeci não era o único. Ao todo, 41 trabalhadores se encontravam doentes ou acidentados, sem assistência médica ou qualquer outra providência tomada pelo empregador, segundo o relatório do Grupo Móvel. O documento relaciona 18 lavradores com malária e dois com dengue, todos abandonados à própria sorte, vivendo em acampamentos sob lonas plásticas pretas.
Augusto não está só na denúncia. As mesmas acusações que recaem sobre ele atingem sua irmã, a médica Eleuza Farias Leôncio, também proprietária da Fazenda Santa Ana. Os dois chegaram a ser presos, na época, mas foram liberados no dia seguinte. Outras cinco pessoas – gerentes da fazenda e agenciadores de mão-de-obra, os chamados “gatos” – também são alvo do inquérito, relatado pelo ministro Joaquim Barbosa desde dezembro de 2007.
Ainda em 2003, Eleuza teve seu nome incluído na chamada “lista suja” do trabalho escravo, atualizada a cada seis meses pelo Ministério do Trabalho, que veda o repasse de dinheiro público aos empregadores notificados pelo Grupo Móvel. A inclusão impediu a fazenda de receber R$ 755 mil de financiamentos da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Até a fiscalização, segundo a denúncia, a fazenda já tinha recebido R$ 852 mil do órgão.
Caracterização
O relatório de fiscalização do Grupo Móvel é taxativo quanto à existência de indícios da ocorrência de trabalho escravo na fazenda Santa Ana. Segundo os fiscais, os trabalhadores tinham seu direito de ir e vir cerceado por homens armados e por dívidas contraídas na própria fazenda com a compra de alimentos, remédios e equipamentos; viviam e trabalhavam em condições degradantes, em locais de difícil acesso, e não dispunham de qualquer direito trabalhista.
Os fiscais do Trabalho relataram que os responsáveis pela fazenda Santa Ana “haviam despejado” em Redenção cerca de 100 trabalhadores que lidavam com o desmatamento, temendo a presença da fiscalização. Os trabalhadores, conforme a denúncia, foram hospedados em pensões ou hotéis com a promessa de retornar à fazenda tão logo o Grupo Móvel se retirasse. “Como houve a notificação, os responsáveis tentaram eximir-se de qualquer compromisso, deixando mesmo de pagar hotéis e alimentação, deixando-os à míngua.”
Em 19 de fevereiro de 2003, um juiz do Trabalho da 8ª Região atendeu, em caráter liminar, a um pedido do Ministério Público do Trabalho: determinou a indenização de R$ 477 mil aos trabalhadores, a indisponibilidade dos bens e a quebra dos sigilos bancário e fiscal dos irmãos Farias.
Sem equipamentos de proteção
Na ação civil pública, o Ministério Público do Trabalho pintou um cenário de total precariedade: os trabalhadores encontravam-se alojados em várias barracas de plástico preto espalhadas pela área da fazenda conforme as frentes de trabalho, não tinham acesso a água potável nem a sanitários, estavam com seus salários atrasados, sem registro na carteira de trabalho e à margem de qualquer outro direito previsto na legislação trabalhista e previdenciária.
Ainda segundo a denúncia, também não dispunham de equipamentos de proteção individual. “Nenhum dos trabalhadores possuía equipamentos de proteção individual. Não se trata de fornecimento insuficiente de EPI, mas de inexistência de qualquer EPI. Sequer botinas ou chapéus de palha eram fornecidos aos trabalhadores, quanto mais perneiras ou luvas”, destaca o procurador do Trabalho Hideraldo de Souza Machado, autor da ação civil pública.
De acordo com o procurador, os riscos eram constantes. “Nem nas frentes de trabalho nem na própria sede da Fazenda Santa Ana foi encontrada qualquer caixa com medicamentos e material para primeiros socorros. Que fique bem claro: não se trata de ‘não ter sido encontrada’ pela fiscalização, mas sim de realmente não existir na fazenda, já que assim foi relatado pelos trabalhadores, inclusive por aqueles que têm residência na sede da mesma”.
“Essas eram as condições experimentadas pelos trabalhadores em caso de acidentes de trabalho que, como se sabe, são absolutamente comuns no trabalho de campo, lidando com foices, motosserras, arames, etc., sempre sujeitos a picadas de animais peçonhentos, muitas vezes fatais quando inexiste socorro pronto e imediato”.
Um caderno apreendido pelos fiscais do trabalho e incluído no inquérito do STF registrava o valor da dívida contraída por cada trabalhador na “Barraca do Hilton Cesar”, apontado como um dos aliciadores de mão-de-obra. Abaixo do nome de cada empregado, eram anotados o tipo de produto comprado – calça, leite, bolacha, sabonete, fumo e remédio -, a quantidade consumida por cada um, bem como o valor da dívida contraída. A chamada servidão por dívidas é uma das características do trabalho escravo contemporâneo no Brasil.
Ibope
O Congresso em Foco procurou o deputado Augusto Farias para comentar as denúncias. Mas ele afirmou, por meio de sua assessoria, que não se manifesta sobre o assunto. Em março de 2003, ao ser solto pela Polícia Federal após conseguir a revogação de sua prisão temporária, Augusto classificou como abusivo o trabalho do Grupo Móvel, rebateu as acusações e apontou uma justificativa para o envolvimento de seu nome no caso. “A tese é a mesma do inquérito em que fui acusado da morte do meu irmão Paulo César e da CPI do Narcotráfico, só mudam os figurantes: Augusto Farias dá Ibope”, declarou a jornais de Alagoas.
A reportagem teve acesso a dois depoimentos prestados pelo parlamentar: um à Polícia Federal, em 2 de março de 2003, e outro à Justiça Federal, em 22 de julho de 2003. Neles, Augusto nega explorar trabalho escravo, acusa os fiscais de agirem de maneira arbitrária e responsabiliza um dos “gatos”, contratado apenas verbalmente por ele e seus gerentes, por eventuais irregularidades trabalhistas.
Sem mandato na época, por não ter conseguido se reeleger em 2002, o empresário disse que os trabalhadores rurais flagrados pelo Grupo Móvel eram “empregados dos empreiteiros”, os quais seriam responsáveis pelos respectivos pagamentos de direitos trabalhistas e obrigações sociais. Augusto reconheceu que a fazenda não fornecia alojamento nem alimentação para os trabalhadores do roçado, nem assinava carteira dos terceirizados.
Responsabilidade do empregador
Na liminar que determinou o pagamento de R$ 477 mil de indenização, o juiz do Trabalho Sérgio Polastro Ribeiro contestou o então ex-deputado. Disse que a responsabilidade é do empregador, “tendo em vista que o empreiteiro não possui idoneidade financeira ou qualquer outra característica de empregador, a teor do disposto no artigo 2º da CLT”. Augusto assinou um termo de ajuste de conduta, pagando R$ 280 mil de pendências trabalhistas.
No depoimento à Polícia Federal em Marabá, Augusto Farias contou que era proprietário da Fazenda Santa Ana desde maio de 2001. Mas como não podia exercer a presidência do Conselho da empresa, por ser deputado à época, indicou a irmã para exercer a presidência da sociedade anônima. Segundo ele, sua irmã sequer conhecia a propriedade.
Augusto Farias também negou ter cometido crime ambiental. O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) o acusava, na ocasião, de desmatar 1.936 hectares para formação de pastagens, por meio de motosserra e queimadas.
As declarações do deputado contrariam o relatório do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, assinado pela então coordenadora, Valderez Maria Monte Rodrigues, responsável pela notificação da fazenda. “A Santa Ana recebeu recursos da Sudam e que benefício social apresentou? Seus empregados, explorados e sujeitos às barbáries dos ‘gatos’ não recebiam sequer comida digna, suficiente e saudável”, protestava a auditora do Ministério do Trabalho.
Cenário de crime
As infrações constatadas na propriedade, segundo ela, refletem o cenário desolador da região, onde o agronegócio avança sem respeitar os direitos humanos e trabalhistas. “A região de Redenção e o sul do Pará, de um modo geral, vem se transformando num cenário do crime organizado, de ameaças, pressões, chantagens, vêm sendo expedientes utilizados de várias formas para intimidar qualquer setor do Poder Público que ouse tomar providências honestas e legais. Ali se fala em matar como se fosse o ato mais natural, e o pior, cumpre-se a promessa com rapidez e eficiência”, escreveu Valderez, em relatório assinado em 16 de março de 2003.
Passados sete anos, a situação no estado não mudou. Com 46 casos, o Pará é líder em número de pessoas físicas e jurídicas citadas na relação dos 164 empregadores que contratam trabalhadores em condições análogas à de escravo atualizada em janeiro pelo Ministério do Trabalho. Ainda assim, é o estado onde há maior encaminhamento na Justiça das denúncias apontadas pelo Grupo Móvel. Levantamento do Congresso em Foco mostrou ontem (25) que metade dos casos não virou ação na Justiça Federal.
Também vem de lá um exemplo único de punição. Em março do ano passado, o juiz federal Carlos Henrique Borlido Haddad condenou 27 réus de uma só vez ao julgar em bloco 32 casos de trabalho escravo. Uma punição inédita no país. Os acusados, no entanto, recorreram e aguardam novo julgamento em liberdade. Para o procurador da República André Casagrande Raupp, há dois grandes obstáculos para coibir o trabalho escravo que fogem do poder da Justiça: a dificuldade de localizar os trabalhadores após a abertura do processo e a realidade social.
“São pessoas que vivem em condição de miséria, a maioria sem endereço fixo. Para que sejam validados, os depoimentos deles precisam ser confirmados na presença do juiz, o que nem sempre é possível. Mas o mais difícil é a realidade social: muitos deles saem da exploração de uma fazenda e vão para a outra ou mesmo voltam após a notificação do empregador”, observa. “Temos de dar condições de vida digna a essas pessoas para que elas saiam dessa situação”, completa o procurador federal em Marabá.
Cabeça erguida
Deputado em quarto mandato, o advogado e empresário Augusto Farias tem atuação discreta na Câmara. Eleito pela primeira vez em 1990, quando seu irmão Paulo César era uma das pessoas mais influentes da República no governo Collor, foi reeleito duas vezes consecutivas. Em 2002, não conseguiu votos suficientes para voltar à Câmara.
Quatro anos depois, não teve sucesso imediato. Ficou na suplência. Mas acabou herdando o mandato deixado pelo deputado Gerônimo da Adefal (PFL-AL), que morreu em 11 de março de 2007 em decorrência de complicações de uma pneumonia. Augusto não cumpriu o protocolo de esperar sete dias da morte do colega para sentar na cadeira. Tomou posse em 13 de março. Com isso, as investigações por trabalho escravo passaram para o STF. “Volto de cabeça erguida”, declarou na época. Augusto chegou a ser apontado como suspeito da morte de PC Farias, encontrado morto em sua casa de praia em junho de 1996, ao lado da namorada Suzana Marcolino. O inquérito foi arquivado.
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