Foi publicada em janeiro deste ano uma nova lei contra o bullying, que inclui no Código Penal os delitos de bullying e cyberbullying. Mas na semana passada, a mídia notificou mais uma morte violenta, de uma criança que foi agredida dentro da própria escola.
Infelizmente, não é um caso isolado. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) e do IBGE, mais de 40% dos estudantes adolescentes brasileiros são vítimas de bullying no ambiente escolar (1).
Vamos começar pelo início. Bullying é uma forma de intimidar, sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais. Essa é a definição do código Penal, art. 146-A. A pena é de multa. O cyberbullying é a mesma conduta realizada em rede social, aplicativos, jogos on-line ou por ambiente digital. A pena é mais grave, de dois a 4 anos de reclusão (3).
No caso do jovem Carlos Gomes, a agressão psicológica passou para a violência física que levou o estudante à morte. De novo, a reação na mídia é de inconformismo e revolta com tamanha violência. Mas nas buscas que eu fiz, pouco se viu de uma análise contextualizada do problema do bullying no Brasil, inclusive no ambiente escolar. Qual o papel das mídias, da escola, dos educadores e da família neste processo. Porque ele é tão generalizado, e, de certa forma, ocultado com algo menor, sem importância. Algo como “coisas da vida!
Carlos Gomes era autista e lutou por sua vida após passar pelas agressões nas escolas. As agressões foram registradas pelos celulares dos colegas, que, em nome do espetáculo, não intervieram para salvar a vida do menino.
Uma sociedade inteira parece estar doente. A escola acusada de ter sido omissa, que é normal. As questões que colocamos são: (1) se a cultura do país é de, em primeiro lugar, de culto à violência como símbolo de força/ 2) glorificação do herói da violência como marca de status social; 3) ausência de polícia de atenção ou cuidados para os mais vulneráveis, e um olhar especial para a adolescência; 4) o bullying reflete o ódio à diferença, que está no DNA da nossa sociedade.
Marcella Abboud (4), mestre e doutora em crítica literária, professora e escritora e livre pesquisadora de história cultural na UNICAMP, vai nos guiar neste programa na análise crítica das origens desse problema e também na busca de soluções.
A pesquisadora explica que a dimensão real do problema é muito pior do que a mídia retrata? E o bullying é, na verdade, reflexo de uma sociedade misógina, fascista e racista, que o adolescente introjeta e identifica como motivo para agressão e o aluno que sofre o bullying é passível de ridicularização e exclusão.
“ Não dá para olhar para o bullying sem considerar as macroestruturas que sustentam a possibilidade de sua ocorrência. Por que o bullying passa despercebido? Porque muitas das agressões são vistas como menores ou aceitáveis. Existe uma negligência em relação ao aluno, ao adolescente, à criança que é vista como um adulto que ainda não chegou lá. Numa sociedade como a nossa, apenas a população economicamente ativa recebe a atenção da mídia, do capital econômico e dos cuidados de política pública. Estamos olhando pouco para esta etapa de vulnerabilidade que é a adolescência. Como negar que colocamos pessoas, no auge de sua vulnerabilidade, num mundo que ensina pela diferença e não para a diferença? Não estamos num contexto social onde a inclusão e as múltiplas diferenças da existência humana são parte da nossa construção identitária. Pelo contrário, ensinamos a colocar em caixinhas de oposição, como se tudo que não fosse o eu ideal criado pelo social fosse passível de violência.”
Essa resposta mostra uma grande relevância e complexidade em debater o tema. Talvez seja algo tão arraigado na sociedade que passa por uma lente distorcida também da mídia, que acaba sendo o nosso espelho do que é certo e do que é errado. Vamos aprofundar um pouco essa questão e discutir qual é a representação que a mídia faz dessa violência sistemática e tantas vezes incompreendida.
Estamos falando da mídia como fenômeno comunicativo, como aquele espaço em que a opinião pública reflete e forma valores e crenças, e também em que o debate público se constrói e se materializa em práticas sociais que são legitimadas na sociedade.
E, nesse sentido, a mídia tem muito a aprender para deixar de reproduzir padrões ultrapassados, que refletem uma sociedade patriarcal que não consegue aplicar valores como igualdade e fraternidade.
Marcella diz qual é a responsabilidade da mídia neste processo de escalada do bullying a ponto de ser necessário criminalizar essa conduta?
“Quem sofre bullying está menos no processo de querer atenção e mais no de culpabilização e auto violência, um afeto auto imposto, muito agressivo, que gera culpa e ideação suicida, entre outras coisas. A mídia que mais me incomoda são as redes sociais, que colocam essa criança que sofre bullying dentro de um ciclo de retorno dessa violência, confirmando para ela que é merecedora dessa agressão e que não existem caminhos de superação, um aguentar mais passivo, e introjeta nos que praticam o bullying uma sensação de pertencimento sob a lógica de que, se as pessoas fazem e a mídia expõe, não há mal nenhum no que eu faço e no que eu exponho. Temos dois problemas: a mídia endossando o movimento do bullying e as redes sociais criando esses padrões inatingíveis, que autorizam a pessoa que faz o bullying, no processo final, ele é diferente e eu posso violentá-lo, e aumentam a vergonha daquele que sofre, de inação, de passividade. “
Existe um livro do Jaron Lanier, considerado o pai da realidade virtual, cujo título é “Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais” (5). O autor afirma que as redes acabam com o livre-arbítrio, estimulam emoções negativas, distorcem a percepção da verdade, precarizam profissões. E quanto ao bullying, qual é o impacto delas na busca de soluções?
Tudo parece tão complicado e grandioso que nos desestimula a buscar soluções…. Mas elas existem, e é nosso papel como regulador, legislador e formulador das políticas públicas buscar saídas, ainda que não sejam para já, para agora. Desde buscar as melhores práticas para iniciativas de escolas e comunidades de combate ao bullying, até empoderar as famílias para buscar ajuda, e se indignar quando esse tipo de conduta é identificado, pressionando a escola e mobilizando a comunidade.
Porém, o que é fundamental é reconhecer que essas medidas são paliativas, caso a gente não combata as raízes mais profundas do bullying na sociedade, que reproduz aquele modelo: o mais forte vence o mais fraco. Marcella Abboud ressalta o papel da violência simbólica, e nos convida a olhar muito mais fundo para o problema.
“Quando pensamos em estratégias, devemos dar um passo atrás e entender que essa violência física é o resultado de um processo muito maior de violência simbólica, que está sendo constantemente silenciada, negligenciada e tratada como menor. É óbvio que a mídia vai noticiar uma morte muito violenta, mas por que não noticia a violência simbólica antes? Porque a própria mídia está corroborando com a agressividade. Precisamos ter cuidado ao pensar: como chegamos ao ponto de um menino morrer por causa de bullying? Chegamos lá com uma mídia que é racista, fascista e violenta, que coloca um menino, visto como mais vulnerável, como passível de violência porque existem ideias de força, de sabedoria e de beleza. Seria interessante pensar que um bom começo para a mídia seria não continuar fazendo o que faz, não reforçar esses ideais estéticos de força e masculinidade. Se, num primeiro momento, digo que o bullying é mais complexo porque está baseado em estruturas sociais violentas, a solução é igualmente complexa, porque ela deve passar pela compreensão dessas estruturas e pelo conceito simbólico que sustenta a violência física. Não é só sobre monitorar e prevenir a violência, é mudar a concepção que temos do que de fato é violência.”
Parece que o desafio é, como sociedade, compreender que o bullying é uma manifestação complexa de violência que reflete e perpetua a discriminação e a opressão, já que ele envolve a ridicularização e a exclusão de indivíduos.
Responsabilizar as redes sociais pela normalização da violência e pelo reforço da sensação de pertencimento de quem pratica o bullying, aspectos destacados pela professora Marcella Abboud, sem esquecer da violência simbólica, que é sustentada por padrões estéticos e ideias inatingíveis.
Um bom começo, eu não tenho dúvida, é tirar os celulares das escolas. Pois eles também fomentam tudo que o Jaren Lanier disse sobre a urgência de os jovens deletarem as suas redes sociais, que hoje são o olimpo da glorificação da violência.
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