Bajonas Teixeira de Brito Júnior *
Não nego profundas discordâncias com algumas ideias que, de vez em quando, leio nos artigos do professor Emir Sader. Parece-me que o repisar insistente na tese do “neoliberalismo” esclarece menos do que promete e do que é necessário. Agora mesmo, a ação do juiz que o condenou mostra que nossa sociedade carrega muito mais a marca de um “neoescravismo” que a do neoliberalismo.
Mas isso é uma coisa. Outra, bem diferente, é aceitar que um intelectual, comprometido e honesto, que tem exercido exemplarmente a função que seria a do pensamento crítico, e que tão pouco encontramos no Brasil – há que se considerar que os próprios espaços de comunicação são absolutamente restritos e restritivos -, seja violentamente atingido em nome da “justiça”.
Eis a súmula dos fatos: um juiz de São Paulo condenou Emir Sader a perder a cátedra na USP e a um ano de reclusão, convertido em prestação de um ano de serviços comunitários, por ele ter classificado como racista uma declaração de Jorge Bornhausen, presidente do PFL. A frase dizia: “A gente vai se ver livre dessa raça, por, pelo menos, 30 anos”. A expressão usada por Jorge Bornhausen é racista e extremamente ofensiva, visto o contexto negativo em que a palavra “raça” aparece aplicada ao PT, ao que se deve somar o histórico sombrio e mesmo tenebroso que o termo ostenta.
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Em primeiro lugar, a função da palavra não é classificatória, não sendo empregada como um mero substantivo, antes servindo a uma substantivação que busca inferiorizar e humilhar aquele a quem se refere. Ora, em num país que inicia sua luta contra a discriminação racial, o emprego de forma vexatória da palavra “raça” não pode ser admitida sob nenhuma condição. Condenar quem percebe e repudia esse emprego é ofender a capacidade de julgamento e discernimento de milhões de brasileiros. E punir a inteligência de muita gente.
Os xingamentos proferidos por Zulaiê Cobra, Arthur Virgílio Neto e pelos ACMs (avô e neto) eram dignos de punição imediata, porque não ofendiam apenas uma pessoa, ofendiam uma instituição democrática, a Presidência da República, e o decoro parlamentar. Mas não o foram. Igualmente, a enxurrada de calúnias e as maquinações de nossa imprensa era para ser reponsabilizada, uma vez que a imprensa livre foi uma dura conquista política contra a ditadura e, portanto, não poderia ser vilipendiada e usada contra a democracia. Nada se fez. Mas um juiz resolve deixar bem claro quem manda e, para isso, se vale da razão truculenta dos donos do poder. E ela reza que o mais fraco é sempre o ofensor.
Quantos funcionários públicos não foram afastados, remanejados, realocados e até demitidos no Brasil por denunciarem corrupção e desmandos em orgãos públicos? Recentemente, por exemplo, três funcionárias da Febem de Bauru, segundo matéria publicada na Folha, foram afastadas por denunciarem tortura na unidade (Cf. Folha de S. Paulo, edição de 05 de outubro de 2006, “Agentes acusam a Febem de afastá-las após relato de tortura”).
É essa criminalização, que inverte o certo em errado, que atinge hoje Emir Sader. Jorge Bornhausen agride violentamente o senso moral da sociedade brasileira, trilhando a senda repulsiva do racismo, mas Sader, que corretamente o contesta e denuncia, é condenado à perda do cargo público. Um literal “cala-a-boca” para que fique bem claro que, neste país, “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Mas nós não pensamos assim e não aceitamos esse juízo calcado na obediência e na submissão. Pensamos que juízo significa equilíbrio e justiça. Por isso, independente de discordâncias insignificantes neste momento, nos solidarizamos com o professor Emir Sader porque entendemos que, ao defender a palavra dele, estamos defendendo o direito coletivo à liberdade de pensamento e expressão. Ao contrário, aquela decisão visa, com sua feroz e inaudita retaliação, instaurar um clima de terror, de perplexidade e de medo de pensar; de pavor de dizer a verdade.
A decisão em questão não é, ainda que pareça, um ato jurídico corriqueiro mas um exclusivo ato de violência. Pois é isto. Estamos exatamente no momento de questionar a máxima segundo a qual “decisão da Justiça não se discute, se cumpre”. Nada disso. A decisão da Justiça é questionável tanto juridicamente, por isso é possível dela recorrer, quanto pela manifestação da opinião pública, como se faz por exemplo no manifesto organizado para repudiar aquela decisão (acesse aqui). Do mesmo modo que o partido do senhor Jorge Bornhausen foi derrotado nas urnas pelos eleitores, a Justiça das elites deve ser alertada: a época de desmandos já passou.
Sobretudo, não vamos aceitar o regime de medo que essa condenação procura impor a todos que se arriscam a pensar criticamente. Ela vem, a rigor, secundar a ditadura da opinião que, como não passou despercebido a ninguém, se impôs pela esmagadora parcialidade implementada pela mídia da recente eleição presidencial. Ela comunga do mesmo caráter reativo, do mesmo desejo de vingança e intimidação. Se hoje aceitarmos um disparate de tal ordem, amanhã só os racistas, os políticos indecorosos e os meios de comunicação caluniadores serão os donos legítimos da palavra. Mas isso não pode acontecer. Por isso, além de conclamar a todos os cidadãos indignados a assinarem o Manifesto contra a condenação política de Emir Sader, conclamamos também todos que ainda não o fizeram a dar seu apoio ao Manifesto por uma mídia democrática e independente, que já conta já com mais de 4.500 assinaturas.
* Doutor em Filosofia pela UFRJ, Bajonas Teixeira de Brito Júnior é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Publicou os livros Lógica do disparate (2001) e Método e delírio (2003); coordena a revista eletrônica www.revistahumanas.inf.br; e foi o principal responsável pelo lançamento do Manifesto por uma mídia democrática e independente.
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