Dois casos de violência recentes envolvendo duas redes de supermercados em nosso país demonstram que, transcorridos mais de 120 anos da abolição da escravatura, a morte de jovens negros ainda é algo natural, banalizado e de menor importância entre nós. Eu sou defensor dos direitos dos animais. Mas os casos nos mostram que a vida de um jovem negro é menos importante que a de uma cachorra — e isso fica evidente pelas manifestações das redes de supermercados em cada caso.
O primeiro caso, ocorrido em um estabelecimento do Carrefour, na cidade de Osasco, em São Paulo, é o da cachorra Manchinha. Ela foi brutalmente agredida por um segurança, provocando uma hemorragia que levou à sua morte. Diante da comoção gerada pelas imagens das agressões, a empresa rapidamente soltou uma nota no seguinte sentido:
“O Carrefour reconhece que um grave problema ocorreu em nossa loja de Osasco. A empresa não vai se eximir de sua responsabilidade. Estamos tristes com a morte desse animal. Somos os maiores interessados para que todos os fatos sejam esclarecidos. Por isso, aguardamos que as autoridades concluam rapidamente as investigações. Desde o início da apuração, o funcionário de empresa terceirizada foi afastado. Qualquer que seja a conclusão do inquérito, estamos inteiramente comprometidos em dar uma resposta a todos. Queremos informar também que estamos recebendo sugestões de várias entidades e ONGs ligadas à causa que vão auxiliar na construção de uma nova política para a proteção e defesa dos animais.”
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Na sequência, a empresa soltou outra nota com o título “Tão importante quanto reconhecer é saber melhorar”, onde anunciou parceria com entidade de proteção e defesa dos animais para a implementação de uma série de medidas de conscientização de seus colaboradores e clientes em todo o país sobre a proteção animal.
Já o segundo caso, ocorrido em um estabelecimento do Extra, na cidade do Rio de Janeiro, foi o assassinato de Pedro Gonzaga, praticado por um segurança que prestava serviço para a empresa. A ação foi filmada e demonstrou o tamanho da covardia do segurança, que imobilizou Pedro e o estrangulou — sob os olhares de seus colegas, que também trabalhavam como seguranças, e sob os apelos da mãe de Pedro e dos clientes, que pediam para que ele parasse, pois o jovem já estava desmaiado. Diante da repercussão do caso nos telejornais, a empresa apressou-se em divulgar a seguinte nota:
“A rede esclarece que repudia veemente qualquer ato de violência em suas lojas e informa que os seguranças presentes na ação já foram afastados. Sobre o fato em questão, a empresa já abriu uma investigação interna e constatou, de forma inicial, que tratou-se de uma reação a tentativa de furto a arma de um dos seguranças da unidade da Barra da Tijuca. Após o indivíduo ser contido pelos seguranças, a loja acionou a polícia e o socorro imediatamente. A empresa já abriu um Boletim de Ocorrência e está contribuindo com as autoridades para o aprofundamento das investigações.”
Perceba que a nota sequer lamenta a morte de Pedro. Muito pelo contrário, apesar de afirmar que foi instaurada uma apuração interna, a empresa tenta justificar o assassinato com a afirmação de que Pedro teria tentado furtar a arma do segurança que o matou covardemente.
Diante de uma avalanche de críticas, a empresa veio à público novamente com a seguinte nota:
“Com relação ao lamentável episódio ocorrido na tarde da última quinta-feira (14 de fevereiro) no Hipermercado Extra Barra, a rede vem a público reiterar que não aceita qualquer ato de violência. Um grave fato ocorreu na loja do Extra e a rede não vai se eximir das responsabilidades diante do ocorrido, sendo a maior interessada em esclarecer a situação o mais rapidamente possível. Desta forma, está colaborando com as autoridades e contribuindo com todas as informações disponíveis.
Os envolvidos no caso foram definitivamente afastados. A companhia instaurou uma sindicância interna para acompanhamento junto à empresa de segurança e aos órgãos competentes do andamento das investigações. O Extra continuará contribuindo com a apuração e assegura que tomará todas as medidas cabíveis tendo em vista o resultado da investigação.
Acrescentamos que, independentemente do resultado da apuração dos fatos, nada justifica a perda de uma vida e a companhia se solidariza com os familiares e envolvidos.”
O que justifica, no caso da cachorra Manchinha, a empresa responsável ter não apenas demonstrado sua tristeza com a morte do animal, como também ter adotado um conjunto de medidas de conscientização sobre a proteção dos animais, enquanto no caso de Pedro Gonzaga a empresa sequer ter lamentado sua morte e ter se recusado a adotar qualquer medida, mesmo diante das imagens assustadoras que demonstram a naturalidade com que um de seus seguranças tirou a vida de um jovem negro?
A diferença de tratamento decorre do racismo estrutural presente em nossa sociedade, situação que permite que o assassinato de um animal seja tratado com mais indignação e de forma mais humana do que o assassinato de um jovem negro.
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Nossa sociedade foi forjada a partir de um modelo econômico baseado no trabalho escravo. Parte das famílias tradicionais brasileiras construiu sua riqueza com a exploração de milhões de negros escravizados, torturados e mortos durante mais de três séculos de escravidão.
Sempre importante relembrar que a ruptura com este modelo, que pressupunha a superioridade de brancos em relação ao nosso povo negro, somente ocorreu em razão da luta nos quilombos, das constantes revoltas e da conjuntura internacional, fatos que tornaram o modelo insustentável e levaram a uma abolição da escravatura para evitar que ela fosse definitivamente derrubada nas ruas.
Mas essa ruptura não nos livrou do racismo fortemente presente em nossa sociedade. Com a abolição, ao invés de dar emprego aos negros outrora escravizados, nossa elite política e econômica optou por uma política de migração que trouxe estrangeiros para substituírem a mão de obra escrava.
Assim como serviu para justificar a escravidão, o racismo também embasou a exclusão dos negros do mercado de trabalho assalariado e justificou a adoção de uma política de migração com o objetivo de embranquecer a população brasileira, conforme aponta a professora Celia Azevedo..
Como consequência, milhares de negros foram atirados às ruas, sem qualquer reparação pela exploração de sua mão de obra, sem emprego e sem dinheiro. Daí em diante, são forçados a sobreviverem por conta própria em uma sociedade que os considera uma raça inferior e indigna de qualquer direito ou proteção por parte do Estado.
Difícil encontrar palavras para expressar o tamanho da luta do povo negro para se firmar como parte da sociedade brasileira. Uma luta de quem já começou muito atrás, sem herança, sem qualquer proteção estatal e com uma barreira gigantesca representada pelo racismo que sempre pautou nossas relações sociais, como bem aponta o filósofo Silvio Almeida.
Mesmo com os avanços que conseguimos desde a abolição da escravatura, negros ainda são, de longe, a maioria dos desempregados, dos analfabetos, dos que não conseguem terminar os estudos, das vítimas de homicídios em nosso país e das pessoas mortas pela polícia. Ganham muito menos que os brancos na mesma situação e compõem a maior parte da população em situação de vulnerabilidade social em nosso país. Somos minoria no ensino superior, nos parlamentos e nos altos cargos de organizações públicas e privadas em todo o país — e, apesar de falarmos sobre isso constantemente, o quadro agrava-se cada vez mais.
O caso de Pedro Gonzaga somente ilustra a face mais cruel do racismo estrutural, aquela que trata com naturalidade o assassinato de um jovem negro. Infelizmente a morte de jovens negros entre nós ainda é tratada como algo banal, menos importante até que a morte de uma cachorra, o que é visivelmente exemplificado nos dois casos que descrevemos aqui.
A frieza da nota do Extra em relação à morte de Pedro contrasta com a solidariedade e o conjunto de medidas adotadas pelo Carrefour no caso da cachorra Manchinha.
Não fosse a morte de Pedro algo absolutamente aceitável em razão do racismo estrutural, teria o Extra se apressado em se desculpar pelo ocorrido, teria se solidarizado e prestado todo apoio à família da vítima do assassinato ocorrido em suas dependências. Mais ainda, teria adotado medidas para conscientizar seus colaboradores sobre os problemas do racismos estrutural, exatamente na linha que o Carrefour fez para a proteção e a defesa dos animais em resposta ao caso Manchinha.
Os dois casos demonstram o quanto ainda temos que lutar para ter direito à igualdade, para assegurar o direito à vida de nossos jovens, para reparar as graves consequências de um dos maiores crimes da humanidade, que foi a escravidão do povo africano.
Ainda há um longo caminho até que tenhamos êxito em extirpar de vez da sociedade o racismo e o preconceito que ainda fundamentam a exclusão do nosso povo preto.
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