Lenio Streck *
Em 2016, o Ministério Público apresentou um pacote de dez medidas anticorrupção. Todos sabemos o teor: procuravam legitimar prova ilícita (hoje Deltan Dallagnol não quer nem ouvir falar disso), aumentar penas, inverter ônus da prova, antecipar o cumprimento de pena acabando com a presunção da inocência etc.
Em complemento, diante do fracasso do projeto do MP, veio o pacote anticrime proposto por Sérgio Moro. Tem mais do mesmo, mas quer também, além do queria o MP, institucionalizar a exclusão de licitude para “melhor combater o crime”.
Despiciendo elencar aqui o conjunto de medidas propostas pelo Ministério Público e por Moro, as quais ainda serão agregadas propostas de parlamentares ligados aos movimentos de endurecimento de penas e regressão no plano das garantias.
O que me interessa discutir é o papel da magistratura e do Ministério Público. Por exemplo, quando se está discutindo a possibilidade de castigar o abuso de autoridade, não se pode esquecer de um detalhe relevante: o MP não pode ficar com a exclusividade de processar os abusos cometidos pelo MP e pelos juízes. Simples assim. Nesse caso, a vítima e a OAB devem ter legitimidade, juntamente com o Ministério Público. Isso para evitar corporativismos que geram impunidade.
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Por outro lado, preocupa-me que até hoje nenhum parlamentar tenha se preocupado com uma questão que venho denunciando de há muito. Devo ter escrito no mínimo uma dúzia de vezes sobre isso.
Falo da inclusão na legislação penal-processual do que está no Estatuto de Roma, que por sua vez foi copiado do Código de Processo da Alemanha. Trata-se da obrigação de o Ministério Público investigar não apenas para si e no modo como quer, mas também que esteja obrigado a mostrar (trazer aos autos) as provas encontradas que possam beneficiar ao acusado. E, se não trouxer aos autos a prova que descobriu em favor da defesa, deve ser penalizado.
Tenho alertado a comunidade jurídica sobre isso de há muito. O Ministério Público – e os diálogos mostram isso – vem agindo estrategicamente, sem a necessária isenção que se exige de um órgão que possui as mesmas garantias da magistratura. Intrigante o fato de nem os parlamentares nem a comunidade jurídica terem mostrado preocupação com o item 9 do acórdão do TRF-4 na Apelação Criminal 5046512-94.2016.4.04.7000/PR (caso do ex-presidente Lula), em que ficou assentado que não se pode exigir isenção do Ministério Público.
Portanto, insisto, pela enésima vez, que o Parlamento legisle, bastando copiar (recorta e cola) o artigo 54, a, do Estatuto de Roma. Que está, aliás, incorporado desde 2002 ao Direito brasileiro, verbis (basta uma pequena adaptação):
“A acusação deverá, a fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o presente Estatuto e, para esse efeito, investigar, de igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa.”
É o mesmo que exige a US Supreme Court desde 1963: por uma questão de due process, a promotoria tem um dever constitucional de trazer aos autos tudo que puder inocentar o réu. Ah, vejam o alerta do editorial do New York Times: não basta reconhecer a obrigação; se a regra não for imposta, se não houver responsabilização a quem não a seguir, o negócio não funciona.
Detalhe. O Estatuto de Roma copiou esse mecanismo “anti-agir-estratégico do MP” lá da Alemanha. Querem ver? Leiamos o que diz o parágrafo segundo da seção 160 do CPP da Alemanha. O dispositivo diz, e traduzo livremente, que
“[o] ‘Ministério Público’ deve buscar [no sentido de investigar] não apenas as circunstâncias incriminatórias como também as que exoneram[o réu].” (“Die Staatsanwaltschaft hat nicht nur die zur Belastung, sondern auch die zur Entlastung dienenden Umstände zu ermitteln und für die Erhebung der Beweise Sorge zu tragen, deren Verlust zu besorgen ist”)
Quando, em 2013, escrevi um artigo defendendo o poder de investigação do Ministério Público, já dizia da necessidade de colocar essa salvaguarda. Com isso se evitaria coisas que ocorreram no caso da Lava Jato/Intercept.
Portanto, trazendo às claras: uma das medidas de accountability seria, além da exigência de que qualquer investigação do MP também deva ser feita para buscar a verdade inclusive a favor da defesa, seria a de punir ao agente que, de algum modo, deixasse de apresentar elementos objetivos a favor do réu.
Isto também se aplica aos casos de delação, mormente aos delatados, que ficam à mercê dos delatores, cujos acordos são de difícil fiscalização. Imagine um caso em que, havendo elementos a favor do indiciado, este aceita o acordo porque desconhece os elementos que poderiam levar ao arquivamento ou à sua absolvição. Deu para entender? Nem vou falar do que diz o Código Penal alemão sobre a falta de parcialidade e o não colocar todas as provas na mesa.
Só para registro, na Alemanha, a falta de imparcialidade é punida como prevaricação, nos termos precisos do artigo 339 do Código Penal, verbis:
“Direcionar, juiz, promotor ou qualquer outro funcionário público ou juiz arbitral, o Direito para decidir com parcialidade contra qualquer uma das partes.” (“Ein Richter, ein anderer Amtsträger oder ein Schiedsrichter, welcher sich bei der Leitung oder Entscheidung einer Rechtssache zugunsten oder zum Nachteil einer Partei einer Beugung des Rechts schuldig macht, wird mit Freiheitsstrafe von einem Jahr bis zu fünf Jahren bestraft”) Pena: detenção de 1 a 5 anos, e multa.
No mais, é preciso, pontualmente, enfrentar os abusos do projeto e de propostas populistas, como transformar vários crimes em hediondos. Isso pode ser perigoso e levar à transformação do Direito Penal em algo meramente simbólico. Lembro que no século 18 a Inglaterra resolveu transformar o crime de punguismo (bater carteiras) em crime “hediondo”, estabelecendo a pena de enforcamento. Os primeiros punguistas presos foram exemplados. Praça pública repleta de gente para vibrar com os suplícios. Os punguistas foram enforcados… porém, esse foi o dia em que mais se bateu carteiras no império onde o sol não se punha.
Há que se prestar muita atenção. Punir demais é punir de menos. E aplicar o Direito sem salvaguardas é entregar o poder total ao Estado-acusador e julgador. Mais salvaguardas, mais democracia.
* Advogado, jurista e professor. Ex-procurador de Justiça, é membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional.
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