Estranhos casos de intoxicação começaram a assustar a população do interior do Pará no início dos anos 80. A multiplicação de atendimentos nos hospitais começou a chamar a atenção para o que ocorria nas proximidades de um empreendimento que era orgulho do regime militar. Até que se descobriu o que todos esses casos tinham em comum: a intoxicação era provocada pelo uso de desfolhantes químicos na abertura da linha de transmissão de energia da hidrelétrica de Tucuruí para Belém.
Um quarto de século depois que esse episódio ganhou as manchetes em jornais e revistas de várias partes do mundo, o governo anuncia a construção de uma nova e gigantesca linha de transmissão de energia – desta vez, para conectar Tucuruí a Manaus (AM) e a Macapá (AP). Serão investidos mais de R$ 3,5 bilhões para interligar diversas regiões da Amazônia que ainda dependem de geração térmica de energia, por meio da instalação de torres ao longo de mais de 1.800 quilômetros de florestas. Os tempos são outros. Mas que tempos serão estes?
Dificilmente passaria pela cabeça de alguém, hoje em dia, repetir a experiência dos anos 80 e recorrer novamente a desfolhantes químicos para abrir caminho à instalação das gigantescas torres que levarão energia às capitais do Amazonas e do Amapá. A questão ambiental conquistou ao longo dos últimos anos uma importância muito maior do que tinha naquela época. E o olhar cada vez mais atento do mundo em direção à Amazônia afastaria qualquer hipótese de uma nova utilização de agentes químicos para domesticar a floresta.
Vamos considerar a melhor hipótese. O governo recorre às mais sofisticadas práticas ambientais e consegue instalar com sucesso as novas linhas de transmissão, sem prejuízos consideráveis para as florestas por onde elas passarão. Conecta Tucuruí a Macapá e, principalmente, a Manaus, onde a demanda por energia só tende a crescer, com a expansão do parque industrial da cidade. Abre ainda o caminho para a interconexão da futura usina de Belo Monte, na região do Xingu. Com isso, praticamente elimina a existência de áreas não interligadas, além de assegurar maior confiança a todo o sistema elétrico nacional.
Tudo isso soa bem quando passa pela mente a lembrança de outro fato, este mais recente: o apagão do início da década. Mas lá, naquela distante década de 80, Tucuruí foi erguida dentro de um grande projeto de exploração das riquezas naturais da Amazônia. A energia da floresta serviu principalmente para movimentar fábricas de alumínio, que exportavam a maior parte de sua produção. A intoxicação de moradores da região por onde passavam as torres foi apenas um acidente de trabalho. Os moradores de toda a região, aliás, eram também um detalhe. Perto de Tucuruí era comum a existência de localidades sem energia elétrica.
Vamos novamente ser otimistas. Desta vez, ninguém vai se esquecer das populações ribeirinhas, das pequenas vilas e cidades por onde passarão as torres de transmissão. Desta vez, até mesmo dentro do espírito do programa governamental que tem levado energia a regiões pobres do interior do país, os moradores do interior da Amazônia terão luz elétrica em casa.
Com todo o otimismo, então, esperemos todos – e não há nenhum motivo em especial para descrer no governo nesse sentido – que as novas linhas tenham um impacto reduzido sobre a natureza e que beneficiem também, além das grandes indústrias, as populações das pequenas localidades da Amazônia. Mas, se os tempos são outros, o que mais a gente pode esperar?
Pode esperar que as linhas suspensas sobre a floresta ajudem a conectar toda a região à grande rede mundial de comunicação. Pode esperar que as torres a serem instaladas por boa parte da Amazônia sustentem também, além dos cabos elétricos, fibras óticas de última geração e grande capacidade. Fibras que facilitem o trabalho de conectar as comunidades mais distantes do país à internet, abrindo enormes possibilidades de desenvolvimento sustentável dessas localidades.
A energia de Tucuruí será naturalmente muito bem-vinda a Manaus. Mas também seria bem recebida ali, com certeza, uma confiável e poderosa conexão com a internet, por meio de fibras óticas. Isto porque, até hoje, ainda se busca uma maneira eficiente de superar obstáculos naturais para a implantação das redes de telecomunicações, como a grande largura dos rios.
Manaus dispõe de grandes centros de pesquisa, como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Conta também com o recente Centro de Biotecnologia da Amazônia. Reforçar os canais de comunicação de instituições como essas com a comunidade científica nacional e internacional poderá permitir um grande ganho de produtividade no trabalho de conhecimento da floresta. E o conhecimento da floresta é fundamental para a montagem de um modelo de desenvolvimento compatível com a preservação do meio ambiente.
Quando se pensa no Brasil como um conjunto de regiões com diferentes caminhos de desenvolvimento, pode-se imaginar a capital do Amazonas como sede de um importante complexo científico-industrial voltado à utilização sustentável da grande potencialidade da floresta. Potencialidade da floresta viva, capaz de fornecer ingredientes para a fabricação de novos alimentos, medicamentos e cosméticos que podem ser exportados para várias partes do mundo. Os tempos podem realmente ser outros.
* Jornalista profissional desde 1982, trabalhou no Jornal do Brasil, na Gazeta Mercantil, na Agência Estado e nas revistas Veja e Istoé. É mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra).