Sionei Ricardo Leão*
A série de audiências públicas convocadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para analisar juridicamente o sistema de cotas para negros nas universidades públicas, encerrada ontem, é simbólica quanto a demonstrar que os ativistas da causa da igualdade racial no Brasil enfrentam um desafio muito mais robusto.
Há algumas décadas a pregação anti-racismo era considerada panfletária e desprovida de efeito político, econômico e social. Seus militantes eram percebidos como jovens a utilizar estilingues para atirar contra um sistema defendido por equipamentos e muralhas instransponíveis. Ocorre que, com o passar dos anos, esses mesmos incautos conseguiram convencer parte significante da sociedade sobre a pertinência de suas ideias e ideais.
Em jogo, ou melhor, sob a responsabilidade das togas do Supremo, está a legalidade de aproximadamente 50 iniciativas de reservas de vagas para negros nos ensino superior. Políticas públicas adotadas pelo entendimento de que é preciso corrigir distorções e injustiças históricas, provocadas pela longa exclusa a que foi submetida a população negra brasileira.
Foi esse pensamento que propiciou a criação da Fundação Cultural Palmares no bojo das comemorações do centenário da Lei Áurea (1988). Passados alguns anos, os ativistas pressionaram o governo federal, à época regido por Fernando Henrique Cardoso, argumentando que a igualdade racial não se resumia a políticas culturais – surge o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI)/População Negra, em 1995. O mais recente espaço institucional na Esplanada dos Ministérios é a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), implantada em março, de 2003. Há também programas em outras pastas, como no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), voltado para quilombos, e no Ministério da Saúde, que visa políticas referentes a doenças étnicas.
É difícil mensurar a quantidade de conselhos, secretarias, coordenadorias, enfim, organismos espelhados nas experiências federais em funcionamento nos estados e municípios brasileiros. É certo que passam das centenas.
Diante desse avanço que palmilhou a estrutura político administrativa do país com ritmo, inicialmente, de “formiguinha”, e que se apresenta hoje com porte avassalador, é que despertaram segmentos contrários a determinadas políticas de igualdade racial – razão da Ação Indireta de Inconstitucionalidade (Adin) em análise no STF.
O franco algoz dos outrora estilingueiros é o partido Democratas. A legenda questiona a constitucionalidade das cotas no Supremo e no Congresso Nacional é contrário à política fundiária que beneficia áreas quilombolas. Outros flancos se manifestam na imprensa. O jornalista Ali Kamel, de O Globo, não poupa críticas ao suposto risco de que a tese da racialização provoque anos à democracia racial brasileira. Tem como aliado o cientista político Demétrio Magnolli.
Essas forças contrárias impediram no ano passado que o Estatuto da Igualdade Racial fosse aprovado no formato inicial e conforme ansiavam os militantes. O projeto foi adequado para impedir o revide dos congressistas que agem de acordo com interesses dos setores agrários tradicionais. Com o Supremo o tom é maior. Centenas de instituições, juristas e políticos aguardam um sinal para fortalecer suas pregações contra o temário da igualdade racial no Brasil.
Militantes em igual número têm esperanças que os magistrados do STF lhes deem retaguarda às conquistas que se transformaram em políticas públicas nas últimas décadas. O Supremo é o front de uma batalha campal. Cabe ao órgão impedir que a disputa se transforme em briga de rua. Por um lado, os detratores da igualdade racial no Brasil já perceberam que não estão diante de maltrapilhos descalços e munidos de estilingues (atiradeiras).
De outro, esses ativistas também lançam mão cada vez mais de instrumentos letais para enfrentar os adversários. É um momento interessante que tem por cenário a questão da identidade e da diversidade – diverso do romantismo idílico de que o Brasil já superou o tema da integração étnica. O que se percebe é a busca por um diálogo que não mascare os dados da realidade, embora acalente o sonho e a reivindicação daqueles que vivenciam, de fato, a questão racial brasileira no dia-a-dia.
*Repórter de política do Jornal de Brasília. Coordenador da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do DF (Cojira-DF).
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