Ricardo de João Braga*
Luis Henrique Paiva**
A Reforma da Previdência está na pauta política. Paixões mobilizam-se contra. Abundam argumentos como injusta, cruel, neoliberal e variações do tema pejorativo. A classe política brasileira e, lamentavelmente, parte da academia, não ajudam. Entram no discurso da conveniência, que os gregos batizaram como demagogia. Atentam contra o futuro dos mesmos cidadãos que dizem proteger. Neste contexto é preciso distinguir entre a demonstração da necessidade de reforma e a persuasão dos atores políticos e dos cidadãos.
Uma demonstração existe dentro de um sistema lógico, independentemente de concordarmos, desejarmos ou aceitarmos. É possível demonstrar, por exemplo, que fumar causa câncer. Por outro lado, persuadir é mover alguém em direção a uma ação. Milhões de pessoas não são persuadidas pela demonstração, pois diante de todos os problemas causados pelo fumo, elas não deixam de fumar. Demonstrar é lógico. Persuadir é humano.
O sistema econômico e social brasileiro é uma máquina bem azeitada de produzir desigualdades. Políticas públicas de educação, mercado de trabalho, infraestrutura e outros serviços públicos atuam para carrear recursos para os mais ricos, recursos esses arrecadados de forma regressiva, isto é, pagos proporcionalmente mais pelos mais pobres. Contribui para isso uma percepção distorcida que os muito ricos (que, ao cabo, acabam tendo papel preponderante no desenho de políticas públicas com potencial redistributivo) têm do que sejam pobres e ricos. Em 2015, rendimentos mensais de R$ 2.075 por pessoa marcavam o limite para estar no grupo dos 10% mais ricos da população. Não estamos falando, portanto, dos “ricos da televisão”. Quando fazemos políticas que beneficiam pessoas com renda per capita acima desse valor, estamos beneficiando os que são parte de um grupo relativamente pequeno e já bem protegido da nossa sociedade. Para estar entre os 10% mais pobres, a renda precisaria estar abaixo de R$ 200 per capita por mês. Se estivéssemos realmente preocupados com os mais pobres, esse grupo deveria ser prioritário. Exceção feita a alguns poucos programas (como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada – BPC), pouco se entrega de maneira prioritária aos mais pobres no Brasil.
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A previdência social brasileira é mais uma peça na engrenagem de tirar dinheiro dos mais pobres e entregar aos mais ricos. A parcela dos gastos com benefícios que não é paga com dinheiro de contribuições sobre a folha (o déficit da Previdência Social) é financiada com recursos de outras contribuições que incidem sobre consumo. Contribuições que incidem sobre consumo, por sua vez, acabam sendo pagas mais do que proporcionalmente pelos mais pobres, que sequer têm acesso à Previdência. Por outro lado, trabalhadores (majoritariamente não-pobres) se aposentam por tempo de contribuição às idades de 55/52 anos (homens/mulheres). Para defender a aposentadoria por tempo de contribuição, argumenta-se que seria injusto com os mais pobres, porque esses começam a trabalhar mais cedo e deveriam poder se aposentar mais cedo. Mas isso é falso. A trajetória profissional dos mais pobres é marcada por longos períodos na informalidade. Eles não conseguem acumular 35/30 anos de contribuição às idades de 55/52 anos. Muitas vezes, não conseguem sequer acumular 15 anos de contribuição e acabam recorrendo ao BPC aos 65 anos. Há uma grande hipocrisia na discussão da idade mínima para aposentadoria. Os pobres brasileiros sempre se submeteram a ela. Quem não tem idade mínima são os não-pobres e os ricos. São esses que resistem à sua implantação clamando por justiça.
Desnecessário dizer que a aposentadoria dos servidores públicos apenas reforça a análise aqui feita. No Regime Geral (que cobre os trabalhadores da iniciativa privada), temos quase 30 milhões de beneficiários, com um custo pouco acima de 7% do PIB. Apenas com benefícios de aposentadoria e pensão pagos pela União (menos de 1 milhão de beneficiários), gasta-se 1,7% do PIB.
Alguns argumentam que a previdência tem recursos suficientes. A prova dada, neste caso, é que as fontes de financiamento da seguridade social conseguiriam custear o sistema todo. Ora, seguridade social é saúde, assistência e previdência. Se aceitássemos esse argumento, aceitaríamos também que um sistema previdenciário que tira do pobre e dá para o rico pode também tirar da saúde pública e da assistência social para custear aposentadorias e pensões. Ainda que o argumento do “superávit da seguridade social” fosse verdadeiro, seria injusto. Mas o “superávit” só é obtido por meio de artifícios como, por exemplo, o de desconsiderar as despesas previdenciárias dos servidores públicos, como se o fato de estarem previstas no Artigo 40 da Constituição Federal, e não no Artigo 201, lhes tirasse a natureza previdenciária. Em suma, mudar a discussão do “déficit da previdência” para o “superávit da seguridade social” é achar que a solução para uma febre forte é trocar um termômetro que mede a temperatura em Celsius por um que a mede em Fahrenheit.
Quem discute previdência está na essência falando de presente e futuro, mas isto muitas vezes não fica explícito. Previdência consiste num acordo entre gerações de uma nação. Quem trabalha sustenta os que não podem mais trabalhar. Trata-se de um dos grandes avanços da sociedade humana, criado a partir do final do século XIX. Deixamos para trás as práticas sociais em que o sustento dos velhos e incapazes era feito pelos familiares ou o pequeno grupo social próximo, para prover, como nação, um sistema de proteção social.
No Brasil de hoje, contudo, a geração atual gera dois fardos pesados demais para o futuro. Pelo fato da nossa geração permitir aposentadorias precoces (aquelas em idades ativas, como por exemplo as idades médias de concessão de aposentadorias por tempo de contribuição), a próxima geração deverá trabalhar mais tempo para sustentar aposentados e pensionistas atuais. Na medida em que o Brasil envelhece (as idades médias sobem e o número de idosos aumenta), maior é o fardo para a próxima geração. Sempre é preciso lembrar: a próxima geração não conta com o apoio dos políticos demagogos, já que ela ainda não vota. O outro fardo é que custear um sistema de aposentadorias caro como o brasileiro (que consome cerca de 12% do PIB, mais do que o de muitos países com estrutura demográfica significativamente mais velha do que a brasileira) tem um alto custo de oportunidade. Poderíamos estar investindo mais no SUS. Poderíamos estar desenvolvendo uma política de cuidado de idosos, sobretudo dos mais pobres. Poderíamos investir mais em educação e infraestrutura, investimentos esses com potencial para termos maior crescimento econômico no futuro. Todos esses investimentos são limitados para que a geração atual (a nossa) se aposente antes do que poderia e deveria.
Tudo isto, contudo, apenas demonstra a necessidade da reforma previdenciária. Persuasão é outra história. Aposentar cedo, com renda razoável, é um grande benefício para um indivíduo: tempo livre, saúde e recursos para gozar a vida. As paixões humanas, a supervalorização do curto prazo, do benefício próprio, a vontade de ouvir o que convém, todas elas somam-se e criam uma barreira potencial para se aceitar o que está demonstrado. Ao chegarmos aqui, não estamos falando de nada novo, apenas de que os interesses individuais são buscados, muitas vezes, em prejuízo do benefício coletivo. Se a ciência social conhece um fato com infinitas provas seria isto: a busca de ganhos individuais, em inúmeras situações, piora a situação geral.
Demonstrada a necessidade de reforma, as pessoas não se persuadem, e nossos ativos demagogos as amparam, guiam e protegem. O ataque à necessidade de reforma lembra uma passagem de Monty Python: como se precisava matar uma moça malquista na vila medieval, acusam-na de bruxa. Quando as acusações caem uma a uma, por insustentáveis, um aldeão grita: “Ela é uma bruxa, tem uma verruga no nariz!”. E lá se queima a bruxa. Quando se quer atacar, qualquer pretexto vira prova.
Não nos enganemos. Aquele que nega a necessidade de reforma revela apenas que não está persuadido, não que ela não seja necessária. Muitos se aferrarão à verruga no nariz da proposta, e outros, mesmo fumantes, teimarão que o câncer é um problema irrelevante porque está no futuro. A reforma da previdência, contudo, é uma questão de responsabilidade e não de pirotecnia com paixões eleitorais. O Brasil pagará a conta das decisões tomadas agora.
*Professor do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. Economista e Doutor em Ciência Política.
**Pesquisador do IPEA e Gestor Governamental. Doutor em Sociologia.
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