Mesmo nove anos após sua criação, o sistema elaborado pelo governo federal para controlar a qualidade da água distribuída à população em todo o país ainda está longe de chegar a todos os municípios brasileiros.
Os dados mais recentes do Ministério da Saúde (MS), que controla a Vigilância da Qualidade de Água para Consumo Humano (Vigiagua), são de 2005 e revelam que até mesmo os estados com melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país não cumprem o que determina uma portaria do MS de 2004.
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A falta de fiscalização, mesmo com a determinação do ministério, não significa que a água não tenha qualidade em todos os municípios que ainda não fazem o controle, mas mostra, segundo especialistas ouvidos pelo Congresso em Foco, que o governo federal depende das informações das concessionárias de abastecimento de água.
Mais do que isso, advertem. Dificulta a realização de um diagnóstico mais preciso sobre o problema de abastecimento de água no país, um dos carros-chefe do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o que favorece o desperdício do dinheiro público. E, pra piorar, atrapalha as políticas públicas para reduzir as estatísticas das doenças causadas pela falta de saneamento básico.
Os números são vergonhosos. A falta de coleta e tratamento de esgoto e a contaminação da água por coliformes fecais matam sete crianças por dia no país vítimas de diarréia, segundo dados do Instituto Trata Brasil. Outras 700 mil pessoas são internadas a cada ano nos hospitais públicos devido à falta de coleta e tratamento de esgoto.
Pela Portaria 518/2004, do MS, os municípios também deveriam manter os registros de análise da água “de forma compreensível à população e disponibilizados para pronto acesso e consulta pública”. Procurado pela reportagem, o ministério não informou se os municípios cadastrados cumprem essa norma. O sistema que reúne os dados, gerenciado em Brasília, não permite acesso ao público. Por esse motivo, o consumidor não consegue fazer o controle sobre a água que consome.
Troca de papéis
Os dados estão restritos, por enquanto, aos funcionários dos municípios que alimentam o sistema por meio de senhas. O Congresso em Foco pediu acesso aos dados, mas recebeu apenas um relatório que mostra o percentual de municípios, por estado, que já possuem esse tipo de controle.
Santa Catarina e São Paulo (veja a tabela), que estão entre as cinco unidades da federação com maior IDH, têm os piores percentuais de municípios em que há informação disponível sobre a qualidade da água.
Os catarinenses têm informações sobre apenas 35% de suas cidades, enquanto os paulistas não dispõem de dados sobre a metade de seus municípios. Na outra ponta da tabela, Maranhão, o estado com menor IDH do país, já implantou o sistema em 69% de suas localidades. Já Alagoas, segunda unidade com piores indicadores sociais, tem 100% de seus municípios atendidos.
Os dados enviados ao site pelo Ministério da Saúde não informam qual é o percentual de atendimento em todo o Brasil. Mas uma avaliação feita em 2002 pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) mostrou que apenas 48% dos estados estavam alimentando o sistema.
A Funasa se refere aos estados justamente porque o sistema estava sendo alimentado até 2002 pelas secretarias estaduais de saúde. “Os municípios ainda não estão estruturados para realizar as ações de vigilância da qualidade da água”, diz o estudo (leia a íntegra).
Análises em menor número
“O sistema é muito bom, mas o funcionamento ainda não. E isso faz parte dos problemas de gestão dos municípios como um todo”, argumenta Marcelo Bessa de Freitas, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz.
Doutor
“No início tínhamos dez amostras analisadas por semana, mas com a adesão de outros municípios esse número caiu para quatro justamente porque os laboratórios do governo não davam conta da demanda”, relembra. “Arrisco dizer que quase todos os municípios do Rio de Janeiro não cumprem o número de amostras determinadas pelo Ministério da Saúde”, diz.
A Portaria 518/2004 estabelece uma série de parâmetros para cada tipo de análise. Mas só para se ter uma dimensão do problema, no caso da verificação da incidência de coliformes totais, que contêm não só fezes humanas mas também de animais, a determinação é de que sejam feitas, no mínimo, duas amostras semanais.
“Análises de coliformes são baratas, mas outras, como a de metais pesados, exigidas pela portaria, são caras e os municípios não têm como arcar com os custos”, diz Bessa.
Além disso, alguns municípios, pela falta de estrutura, estão mandando dados apurados por companhias estaduais ou privadas de abastecimento, denuncia o pesquisador. A prática contraria toda a lógica do sistema de controle, diz Bessa. As amostras dos municípios deveriam servir como contraprova e fazer justamente a checagem do que as empresas de abastecimento de água afirmam em suas análises.
“Sucateamento histórico”
Apenas 40% dos municípios no país têm estrutura própria para analisar a qualidade da água. Além disso, todos os laboratórios são do chamado nível I, que só tem capacidade para analisar os níveis de cloro, flúor e a incidência de coliformes fecais ou totais, o que não cumpre as exigências técnicas do Ministério da Saúde. A informação é do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
“Isso ainda é muito pouco e o restante dos municípios recorrer aos laboratórios centrais nos estados que também estão aquém de atender essa demandas”.”Há um sucateamento histórico desses laboratórios”, avalia Marcos Franco, médico especialista
Pela primeira vez na história, diz Franco, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) investiu, no ano passado, R$ 8 milhões nos laboratórios centrais. Ao todo, segundo o Conasems, o MS repassa R$ 800 milhões a todos os municípios do país para ações de vigilância
Santa Catarina
Ainda em 2004, o Ministério Público de Santa Catarina abriu um inquérito civil público estadual para tentar resolver o problema. Dados Vigilância Sanitária Estadual mostravam que a maioria dos municípios não enviava amostras para análise, apesar da capacidade de atendimento dos laboratórios do estado.
“Isso demonstra que há uma enorme falta de interesse do poder público em cumprir com as normas que se destinam a prevenir problemas de saúde”, diz o promotor Max Zuffo, responsável por ações do Ministério Público em municípios do extremo-oeste de Santa Catarina.
Ao todo, o promotor ajuizou três ações contra os municípios de São Miguel do Oeste, Guaraciaba e Barra Bonita. “Solicitei a todos eles que indicassem o que eles propunham fazer para se adequar à lei. E eles se limitaram a dizer que era melhor aguardar até 2009, quando a nova administração eleita pudesse deliberar a respeito”, revela o promotor.
As ações têm como base um estudo feito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina. A análise da qualidade das águas de poços semi-artesianos de uso coletivo de São Miguel do Oeste constatou que 15 (33,3%) das 45 amostras analisadas eram impróprias para o consumo. Todas as 15 tinham presença de coliformes totais (de fezes humanas e de animais).
Mudanças depois da ação
Na Bahia, a ação do Ministério Público já mostra resultado no norte do estado. Os 23 municípios da comarca de Entre Rios, localizada na região, já mandam amostras de água para o laboratório de Feira de Santana, afirma o promotor Luciano Valadares.
E foi exatamente uma análise feita pelo município que encontrou um acentuado percentual de “coliformes totais” e da bactéria escherichia coli na água fornecida à população do município de Entre Rios, que motivou uma ação do promotor. A ação civil pública foi acatada pela Justiça, em maio deste ano, e a Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A. (Embasa) foi obrigada a melhorar o tratamento da água no município.
“É coisa do Brasil. Precisou da ação para que o estado mudasse a situação. Em três meses o problema foi solucionado. Investiram nesse período o que não tinham investido em dez anos”, disse Luciano Valadares ao Congresso em Foco. “A água aqui tinha cheiro e era amarelada”, relembra o promotor.
Na ação, o promotor de Justiça também pede uma indenização por dano moral coletivo para todos os mais de 42 mil moradores do município. A empresa, diz Valadares, já cumpriu 90% do que a Justiça determinou ao conceder a liminar, mas no mérito a ação pede que o valor cobrado nas contas de água, antes da melhoria no sistema de tratamento, seja devolvidos aos consumidores.
O promotor disse ao site que o próximo passo será fazer com que a prefeitura informe, de maneira simplificada e em local público, o resultado dos exames feitos semanalmente. “O que vem nas contas ainda é muito técnico e não informa a população como deveria”, explica o promotor.
Saneamento x água potável
Segundo pesquisa do Instituto Trata Brasil, feita em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2007, o saneamento básico atende apenas 46,77% da população brasileira. Por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o governo federal quer chegar ao patamar de 55%.
O investimento é de R$ 8 bilhões até 2010. Mas como os recursos vêm fontes de financiamento, municípios inadimplentes poderão ter muita dificuldade para captar o dinheiro necessário para melhorias. A advertência é feita por Raul Pinho, diretor-executivo do Instituto Trata Brasil. Ele alerta que, como a grande parte dos municípios “está quebrada”, é muito difícil que as prefeituras se adéquam ao que determina o MS em relação ao controle da qualidade da água.
Pinho também acredita que, sem o Siságua em todos os municípios e sem análises corretas, é possível que os recursos do PAC possam ser desperdiçados, pois faltaria ao governo diagnóstico mais preciso do problema do abastecimento de água.
Segundo Pinho, a chamada Lei do Saneamento, que entrou em vigor em fevereiro de 2007, prevê que todos os municípios apresentem até 2010 um planejamento de ação nessa área. “Esse é um gargalo que temos e corremos o risco de ver mais uma lei não cumprida no país”, avalia.
Além disso, o Orçamento da União para 2008 reserva cerca de R$ 1,2 bilhão para o setor de saneamento, 55% menos em relação ao ano anterior. Os programas “Serviços Urbanos de Água e Esgoto”, “Saneamento Rural” e “Resíduos Sólidos Urbanos” estão sofrendo este ano redução orçamentária de 57,6% (R$ 1,03 bilhão), 34,6% (R$ 106,6 milhões) e 66,4% (R$ 94,1 milhões), respectivamente.
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