Considerada uma “ponte” entre a população de baixa renda e o Judiciário, a defensoria pública foi ignorada pelos candidatos à Presidência da República nesta campanha eleitoral. Nem Dilma Rousseff, nem José Serra, nem qualquer um dos outros sete candidatos derrotados no primeiro turno, ninguém se posicionou em relação aos compromissos propostos aos presidenciáveis pela Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef), em documento entregue no início da campanha eleitoral, em agosto.
Para o presidente da entidade, Luciano Borges dos Santos, o desinteresse dos candidatos em relação ao tema reflete o desconforto do governo federal com o papel dos defensores públicos na sociedade. “Existe uma posição do governo federal contra conceder autonomia para a Defensoria Pública da União. É mais interessante ter a defensoria sob o guarda-chuva do Ministério da Justiça. Nós litigamos contra a União, às vezes, contra o próprio Ministério da Justiça, e estamos no guarda-chuva dele. Nossa independência acaba sendo mitigada”, avalia.
Criadas para garantir acesso à Justiça da população mais pobre, que não tem dinheiro para pagar advogado, as defensorias públicas ainda enfrentam sérios problemas estruturais. A reforma do Judiciário, aprovada em 2004 pelo Congresso, garantiu autonomia administrativa e funcional às defensorias públicas dos estados, mas não à Defensoria Pública da União, ainda vinculada ao Ministério da Justiça. “Que reforma do Judiciário é essa que não passa pela discussão da abertura do poder para a população carente?”, questiona Luciano.
Falta pessoal
Voltadas para um público de 130 milhões de brasileiros, as defensorias públicas alcançaram quase 1 milhão de pessoas no ano passado. O número ainda é baixo, segundo o presidente da Anadef, porque ainda faltam estrutura e recursos. A Constituição Federal assegura que todos os cidadãos necessitados têm direito de serem atendidos pela Defensoria, recebendo assistência jurídica integral e gratuita. Há apenas 481 defensores públicos federais em todo o país. A associação estima que seriam necessários entre 1,5 mil e 2 mil defensores públicos para atender a toda demanda. Segundo a entidade, apenas 43% das comarcas brasileiras têm atendimento da Defensoria Pública.
“A gente percebe que há uma disparidade de armas, há uma disparidade na balança da Justiça. Porque a balança da Justiça diz que tanto a defesa quanto a acusação devem estar niveladas para que o Estado seja realmente democrático. Mas em relação aos pobres, a balança só pende a favor daqueles que têm condições de contratar advogados”, critica Luciano Borges.
Para equilibrar os “pratos” da balança da Justiça, a entidade pediu, na carta enviada aos presidenciáveis, apoio para aprovar no Congresso uma proposta de emenda à Constituição (PEC 358/05) que garante à Defensoria Pública da União a mesma autonomia dispensada às defensorias públicas dos estados. “A associação tem buscado construir esse diálogo com a sociedade, apresentando a defensoria para a sociedade brasileira e dizendo que a defensoria pode agir como transformadora da realidade, mudando a vida dos mais pobres”, explica Luciano. Esse trabalho de persuasão, explica, será intensificado até o início da próxima legislatura.
Preocupação com a sociedade
A Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais é uma das entidades que apoiam institucionalmente o Prêmio Congresso em Foco 2010. Segundo o presidente da Anadef, o espírito da iniciativa – de promover a reflexão e premiar os parlamentares que mais bem exerceram o mandato ao longo do ano –, coincide com os propósitos dos defensores públicos.
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Saiba mais sobre o prêmio
“A Anadef apoia a iniciativa porque trabalhamos exatamente com a sociedade e a população mais pobre deste país, que representa 130 milhões de brasileiros que não têm voz. Eles precisam de defensoria pública forte, mas de um Congresso preocupado com a sociedade, o bem público, a coletividade. A premiação vem como forma de valorizar os bons políticos para fortalecer a democracia, permitindo que o debate neste país seja de propostas programáticas para o país avançar.”
Podem acionar a Defensoria Pública da União pessoas com renda familiar bruta igual ou inferior ao limite de isenção do Imposto de Renda. Este ano, ficaram isentos da declaração à Receita Federal os contribuintes com rendimentos tributáveis até R$ 17.215,08 ao longo do ano passado.
Veja a entrevista de Luciano Borges ao Congresso em Foco:
Congresso em Foco – Muita gente no Brasil ainda não sabe o papel das defensorias públicas. Quem tem acesso à defensoria?
Luciano Borges – Aquelas pessoas que não têm condições de contratar um advogado, o grupo familiar que tem renda abaixo do limite de isenção do imposto de renda. As causas, resumidamente, são federais. Envolvem, por exemplo, saúde, educação e previdência social. Muitas vezes, uma pessoa portadora de neoplasia maligna ou hanseníase precisa se aposentar porque não tem condições de trabalhar. O INSS, muitas vezes de forma ilegal, não dá o benefício para a pessoa. Só há uma solução para a pessoa: agir por meio da defensoria e do Judiciário. O defensor público pega essa dificuldade e leva até o Judiciário.
Mas por que esse direito à defensoria pública ainda é tão desconhecido das pessoas?
A defensoria pública não é prioridade no país. Apesar de ser instrumento de cidadania, de permitir que as pessoas vulneráveis, sem recursos financeiros nem voz, tenham acesso à Justiça.
Não é prioridade por quê?
Infelizmente, somos apenas 481 defensores públicos federais em todo o território nacional. Temos por atribuição fazer com que as pessoas batam às portas do Judiciário, na Justiça Federal. Na Justiça Federal, temos em torno de 2 mil juízes federais. Temos também por atribuição fazer com que pessoas pobres, sem condições de pagar advogado, se socorram da Justiça do Trabalho. São 3 mil juízes trabalhistas no país. Só por esses cálculos, a gente percebe que há uma disparidade de armas, há uma disparidade na balança da Justiça. Porque a balança da Justiça diz que tanto a defesa quanto a acusação devem estar niveladas para que o Estado seja realmente democrático. Mas em relação aos pobres, a balança só pende a favor daqueles que têm condições de contratar advogados.
Na prática, o pobre não tem acesso ao defensor público?
Os pobres não têm acesso à defensoria pública. Há 130 milhões de brasileiros potencialmente assistidos pela defensoria. Mas quem tem acesso? Poucas pessoas. No ano passado, atendemos em torno de 1 milhão de pessoas. As defensorias só estão instaladas em 15% dos locais onde há sede da Justiça Federal. Nós não atuamos ainda na Justiça do Trabalho, porque não temos defensores públicos em quantidade suficiente. Não temos estrutura de apoio, não temos técnicos, não temos analistas. A potencialidade do defensor público acaba sendo diminuída porque não temos estrutura de apoio. Estamos num número muito pequeno em comparação com a dimensão e as reais necessidades do Brasil. De nada adianta a Constituição prever o direito à saúde e o direito à educação como símbolos da democracia, se não permitirmos que a educação, a saúde e todos aqueles direitos sociais fundamentais sejam assegurados à população carente.
Por que falta investimento para a área?
Por uma posição de governo, que acaba investindo em outras funções essenciais da Justiça, mas deixa aquela instituição voltada para a população carente sem a estrutura necessária. Milhares de pessoas batem em nossas portas todos os dias pedindo acesso à saúde, à educação, à previdência social. Estamos instalados praticamente nas capitais. E as pessoas que estão no interior? A justiça se faz principalmente quando podemos levar o Judiciário para a população carente de todas as regiões.
O governo teme ser cobrado por não atender os direitos sociais básicos?
Nós, defensores públicos federais, quando ajuizamos uma ação em favor de pessoas vulneráveis, temos como pólo contrário justamente o governo federal. Por isso, uma das nossas bandeiras hoje é viabilizar a autonomia das defensorias públicas da União. A defensoria pública dos estados já tem autonomia desde 2004. O ritmo da caminhada da defensoria pública da União é muito lento. Existe uma posição do governo federal contra conceder autonomia para a defensoria pública da União. É mais interessante para ele ter a defensoria sob o guarda-chuva do Ministério da Justiça. Nós litigamos contra a União, às vezes, contra o próprio Ministério da Justiça, e estamos no guarda-chuva dele. Nossa independência acaba sendo mitigada.
De que forma isso pode ser mudado?
Estamos lutando no Congresso Nacional pela aprovação da autonomia. Conseguimos a aprovação da PEC (proposta de emenda à Constituição) no Senado e agora lutamos na Câmara para conseguir o mesmo tratamento das defensorias públicas dos estados como forma de garantir que a população carente deste país tenha assistência jurídica.
Em que termos se dá essa autonomia?
Uma autonomia administrativa e funcional. Hoje estamos no guarda-chuva do Ministério da Justiça. Nós temos bom relacionamento com o ministério, mas ele tem outras prioridades. Mas, se no futuro, não tivermos essa boa convivência? E se não passarem os recursos necessários para manter a estrutura hoje já criada? Quem vai pagar por isso? É o pobre, a população carente, que não tem acesso à cidadania. Estamos crescendo de forma gradativa, mas não no ritmo que deveríamos. Queremos gerir nossos próprios rumos. A criação de cargos, da estrutura de apoio, é algo que vai vir com o tempo. Mas a velocidade disso vai depender muito de o Congresso ter um olhar cuidadoso de que a defensoria pública é um instrumento de cidadania voltado para a população.
O senhor disse que hoje são 481. Mas quantos defensores federais seriam necessários para atender todo o país?
Precisaríamos de, pelo menos, 1,5 mil a 2 mil defensores públicos com estrutura de apoio. A gente tem conseguido a criação de cargos, mas o defensor público federal acaba tendo de fazer toda a parte administrativa porque não tem assessoria. O poder público – o Judiciário, o Legislativo e o Executivo – encaminhou uma proposta no sentido de fortalecer a defensoria pública e conceder a autonomia das defensorias públicas estaduais desde 2004. A defensoria da União, como foi criada depois dessa proposta legislativa, ficou sem autonomia. Até hoje, desde 2004, o governo se comprometeu a dar autonomia à defensoria pública da União. Conquistamos isso no Senado, mas há uma grande chance de ser apresentada uma emenda para perdermos isso na Câmara.
A Anadef entregou um documento aos candidatos a presidente, pedindo que eles assumissem determinados compromissos, entre eles, o de fortalecer as defensorias públicas. Que retorno os senhores receberam deles?
Nenhum. A gente fez um histórico da situação da defensoria pública no país, mostrando a necessidade de fortalecermos a defensoria como forma de levar a cidadania para a população carente. Protocolamos isso para os presidenciáveis, mas não recebemos nenhum posicionamento dos candidatos, inclusive desses que estão no segundo turno. Apresentamos essa proposta aos candidatos para estabelecer uma pauta positiva e ver qual a posição de cada um deles sobre a defensoria pública. No discurso, lógico, as pessoas são favoráveis à defensoria.
Concretamente, qual o compromisso assumido em relação à defensoria pública?
Não tive resposta. O debate acabou tangenciando questões estruturais para discussões de menor importância.
Isso não é um indício de que não haverá autonomia para a defensoria pública no próximo governo?
A gente pode construir uma interlocução, um diálogo com a Presidência da República, para sensibilizar o próximo governo. Essa falta de retorno demonstra que, neste momento, defensoria pública não é prioridade de campanha. Tanto que nem chegou a ser objeto de debate e resposta. Precisamos construir isso com o novo governo. Acredito no diálogo, na conversa, na sensibilização do próximo presidente. Quando você não coloca a defensoria como preocupação demonstra, de forma indireta, que não existe preocupação com o público da defensoria, que representa, segundo dados do Ministério da Justiça, 130 milhões de brasileiros.
Mas essa falta de propostas para a defensoria não reflete a falta de propostas dos candidatos, de maneira geral, para temas como saúde e educação?
Em relação à disputa presidencial, a gente não viu a discussão de grandes propostas. Tudo girou em torno de qual escândalo era mais pertinente, qual afetava mais o eleitorado. Houve muito pouco de proposta efetiva. A defensoria pública poderia ter sido tratada como pauta positiva. O que se viu na campanha foi pauta negativa, discussão de escândalos, de questões que acabavam se afastando do que era realmente essencial, uma pauta positiva.
Como a Anadef pretende encaminhar discussão no novo Congresso para aprovar a PEC?
Nosso planejamento é de aproximação com a sociedade civil organizada, que demonstra grande força e reflete o anseio da população neste país. Vamos trazer o exemplo da Ficha Limpa, que veio do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, formado por diversas entidades que representam setores da sociedade de todas as ideologias. Quem imaginava que seria possível aprovar o projeto da Ficha Limpa até pouco tempo atrás? Ninguém. A sociedade demonstrou grande força. Hoje a associação tem buscado construir esse diálogo com a sociedade, apresentando a defensoria para a sociedade brasileira e dizendo que a defensoria pode agir como transformadora da realidade, mudando a vida dos mais pobres.
Como tem sido feito esse trabalho de sensibilização?
Um exemplo recente: nós visitamos na semana passada, juntamente com a Pastoral Carcerária, o presídio de Franco da Rocha (SP), a partir de uma proposta que fizemos para melhora do sistema carcerário. Lá, constatamos que 587 presos, de um universo de 7 mil apenas em São Paulo, estão cumprindo pena de forma irregular. Estão num regime mais grave do que aquele em que foram condenados. A gente está mostrando a cara, como a defensoria pública deve se portar em relação a essas questões. Hoje, temos boa interlocução com a pastoral carcerária. Estamos tentando construir esse diálogo com a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. Conseguimos apoio da AMB [Associação dos Magistrados Brasileiros], da própria Comissão de Direitos Humanos da Câmara, presidida pelo próprio PT, favorável à nossa causa da autonomia. A partir desse trabalho, pretendemos nos apresentar para o novo Congresso com uma pauta positiva. Vamos colocar a defensoria pública da União como prioridade do país.
Mostrar que não é uma reivindicação de uma corporação, mas da sociedade?
Exatamente, de toda a sociedade. Quando você estabelece outras prioridades, você está dizendo que o brasileiro quando não tem seus direitos básicos assegurados não tem a quem recorrer. Quem paga o preço da ausência de uma defensoria pública não é a defensoria, é a população. Mostrar para a sociedade que nossos pleitos são legítimos para garantir a democracia. Democracia não se faz com voto no dia da eleição. Democracia se faz quando se abrem as portas do Poder Judiciário. O Judiciário precisa ser acessível a todas as pessoas. Infelizmente, ele não está aberto a todas as pessoas porque não tem o instrumento chamado defensoria.
O que falta para o Judiciário se abrir mais para a população?
O Judiciário, na realidade, atua por provocação. Ele é inerte por natureza. Ele precisa receber essa demanda. A abertura das portas dos tribunais para a população carente depende de uma ponte entre a população e o Judiciário. Essa ponte se chama defensoria. A reforma do Judiciário, de 2004, foi um grande passo para a transparência do Poder. Mas ainda falta o maior passo para que a gente democratize o Judiciário – que é permitir que todo indivíduo, independentemente de sua condição social, possa bater às portas. Que reforma do Judiciário é essa que não passa pela discussão da abertura do poder para a população carente?
A reforma do Judiciário falhou nesse sentido?
Tornar a Justiça mais acessível parte do pressuposto que eu dê voz a pessoas mais pobres. Isso é possível por meio de instrumento garantido pela Constituição. Melhorou em relação à defensoria estadual, que tem autonomia. Mas não foi possível dar à defensoria da União naquela época o mesmo tratamento. O segundo momento é agora. O que me preocupa é a sinalização do governo de que não vai dar autonomia às defensorias públicas da União. Isso me preocupa.
A Anadef é uma das entidades que apoiam institucionalmente o Prêmio Congresso em Foco. Qual a importância desse tipo de iniciativa de premiar os melhores parlamentares do ano?
A grande importância do prêmio é valorizar as boas práticas e os bons políticos. A sociedade tem sentimento de que a política não é algo sério. Mas há pessoas sérias no Congresso. É dever da própria sociedade e dos meios de comunicação mostrar quem são essas pessoas sérias. O Congresso em Foco, por meio desse prêmio, vem valorizar, ressaltar as qualidades daquelas pessoas para as quais precisamos ter olhar especial porque estão preocupadas com a coisa pública, nosso maior bem, que é a sociedade como um todo. A Anadef apoia a iniciativa porque trabalhamos exatamente com a sociedade e a população mais pobre deste país, que representa 130 milhões de brasileiros que não têm voz. Eles precisam de defensoria pública forte, mas de um Congresso preocupado com a sociedade, o bem público, a coletividade. A premiação vem como forma de valorizar os bons políticos para fortalecer a democracia, permitindo que o debate neste país seja de propostas programáticas para o país avançar.
O prêmio combate o ceticismo das pessoas em relação aos políticos?
É uma forma de a gente incutir e demonstrar para a sociedade que nem todos são iguais. Que essa imagem negativa dos políticos tangencia e acaba não demonstrando os políticos preocupados com a sociedade. Precisamos mostrar as más práticas, aquelas pessoas interessadas apenas em interesses pessoais, mas também as pessoas comprometidas com as grandes questões que envolvem o Brasil.
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