José Antonio Sant’Ana e André Rehbein Sathler *
Sem cerimônia, o governo apresenta uma proposta de mudança de regras na aposentadoria. Temos insistido que as regras da aposentadoria são regras para um jogo longo. Da Teoria dos Jogos vem a noção de que as pessoas tendem a conformar esses jogos em arranjos contratuais, o que acaba sendo uma forma de forçar a situação de equilíbrio. A partir da assinatura do ”contrato”, a análise de seus impactos é essencial para qualquer nova solução do jogo, razão pela qual os contratos não podem ser simplesmente desconsiderados.
A Previdência Social é um “contrato” assinado entre o Estado e cada cidadão na própria Constituição Federal. Se a Carta é Magna, magno é o contrato que veio a estar insculpido em suas regras. As pessoas planejam suas vidas com base nas regras de longo prazo. Um amigo servidor público recebia, na iniciativa privada, o dobro do salário inicial que veio a receber no setor público, após aprovado em concurso. Em sua decisão de abandonar um benefício imediato (salário duas vezes maior), ponderou sobre as ofertas que o novo contrato lhe fazia, dentre as quais a estabilidade e as regras diferenciadas de aposentadoria.
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O governo argumenta que não há o que fazer, que se não forem cumpridas as regras o sistema irá à falência. Ressalve-se a circunstância de que o governo quer que as pessoas acreditem que as novas regras serão cumpridas no futuro (as aposentadorias continuarão a ser pagas) desde que as atuais não sejam cumpridas no presente (manutenção das regras atuais da aposentadoria para os que já estão no sistema).
Diante da sem cerimônia com que o governo anuncia a quebra das regras, perguntamos: por que não dar o calote na dívida pública? Antes da gritaria, ressaltamos que não defendemos, por princípio, esse calote. Ao contrário, consideramos que o Brasil ainda amarga, mais de vinte anos depois, os efeitos de suas condutas irresponsáveis. O que pretendemos é ressaltar que o calote na dívida pública seria uma quebra de regras tanto quanto a intencionada reforma da Previdência.
Só que com efeitos maiores, pois a conta de juros é maior que o alegado deficit da Previdência. Entre 2010 e 2015, foram gastos com pagamento de juros R$ 1.286,2 bilhões de reais. No mesmo período, a soma dos alegados deficits da Previdência resultou em R$ 680,9 bilhões. Quase a metade. Enquanto a conta com juros oscilou entre 3,1 e 6,7% do PIB, o deficit da Previdência chegou no máximo a 2,6% do PIB.
Evidente que o impacto de um calote na dívida pública seria muito maior do que o causado por uma eventual eliminação do propalado deficit da Previdência. Ainda, caso o governo não desejasse praticar simplesmente o calote. A redução de 1% nos juros da dívida pública (Selic) tem potencial para trazer economias muito grandes em termos dos recursos despendidos pelo governo a esse título. Uma simulação rápida [1], mas que pode ser considerada uma aproximação adequada, revela uma economia potencial de R$ 115 bilhões de reais caso a taxa de juros houvesse sido um ponto percentual menor nos anos de 2010 a 2015. Uma redução de 5% na Selic seria suficiente para cobrir a integralidade do deficit da Previdência. Mas ninguém pode discutir a política monetária do Sacrossanto Banco Central sem incorrer em pecado de grave heresia no culto da ortodoxia.
Por essas razões, sem levar em conta as hecatombes previstas pelos ascetas do orçamento público e sua má-temática, compreendemos que mudanças na Previdência devem valer para quem ainda vai entrar no jogo. Deixar a mudança para as próximas gerações tem o efeito de provocar uma simulação do véu da ignorância de Rawls. As pessoas que ainda não ingressaram no sistema da Previdência Social, em sua ampla maioria jovens, ainda não testaram suas habilidades, estão desenvolvendo suas preferências e, portanto, não têm como saber suas posições individuais na ordem social no futuro. Esse desconhecimento os coloca em situação similar aos sujeitos velados imaginados por Rawls, incapazes de saber quem vai receber quanto no processo sociodistributivo de direitos, posições e recursos. O que Rawls pretendia com seu experimento mental era criar uma situação ideal na qual as pessoas fizessem suas escolhas com base apenas em considerações morais, afastado o autointeresse.
Ou seja, deixar a reforma para as próximas gerações torna irrelevantes as considerações pessoais, possibilitando uma apreciação mais neutra dos princípios a serem adotados para a alocação de custos e benefícios na sociedade. Sem saber se vão se tornar servidores públicos, empresários, assalariados, ou, ainda, se vão ganhar na loteria, as pessoas pensarão na reforma de modo mais isento e global. O pensamento na sociedade como um todo é quase automático, afinal, quando o véu for levantado, elas poderão estar em qualquer posição. Enquanto isso, Banco Central, não dá para simplesmente pensar em inflação zero, ainda que isso implique em recessão, desemprego, crise política e crise social. É preciso pensar também em crescimento! Se virem…
[1] Feita considerando-se a taxa de juros no mês de dezembro dos anos de 2010 a 2015, considerando-se sua aplicação sobre a conta consolidada de juros nominais.
* José Antonio Sant’Ana é economista, assessor de economia na Câmara dos Deputados.
André Rehbein Sathler é economista, professor do Mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.
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