Casé Angatu *
O presente texto de forma alguma pretende incentivar a situação de conflito existente na região onde moramos, o Território Indígena Tupinambá de Olivença. Por isso, não entendam os questionamentos que seguem como forma de aumentar a situação de conflito, que já é grave. Atuamos de forma diferente da CPI da Funai/Incra – esta sim, parece querer acirrar conflitos.
1. CPI da Funai/Incra está prejulgando relatórios da Funai?
“A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar a atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na demarcação de terras indígenas e quilombolas realiza diligências a partir desta quarta-feira (29/06/2016) até sábado (02/07/2016) no município baiano de Ilhéus e arredores”. Assim anunciou o site da Câmara dos Deputados. E a comissão da CPI Funai/Incra realmente chegou aqui em nossa região. Esta Comissão Parlamentar de Inquérito foi criada para julgar a atuação da Funai e do Incra. Aqui trataremos especificamente da atuação desta CPI em relação à Funai.A CPI visa julgar os relatórios de identificação e delimitação de terras indígenas. Ou seja, surgiu de uma decisão de deputados ruralistas, partindo do princípio de que discordam da forma como a Funai realiza seus estudos, e tendo como justificativa a homologação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Santa Catarina.
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Em outras palavras, a CPI Funai/Incra visa julgar, no âmbito político e ideológico, relatórios que foram realizados como “peças técnicas, compostas por estudos multidisciplinares de natureza etno-histórica, documental, ambiental, cartográfica e fundiária.”
Entendemos que toda argumentação técnica é também política. No entanto, neste caso é necessário ouvir o corpo técnico em suas especificidades analíticas, senão a argumentação política/ideológica torna-se a única existente.
Além disso, os trabalhos realizados pela Funai obedecem “à legislação específica” e o que “determina a Constituição Federal de 1988”. Assim, quando esta CPI faz uma diligência numa área cujo relatório foi publicado no Diário Oficial da União em abril de 2009 e não ouve o corpo técnico que realizou a análise, na nossa compreensão, prejulga o estudo realizado e atua com parcialidade. Aliás, pelos vídeos que estamos assistindo das reuniões desta CPI, mesmo quando ouve o corpo técnico, a forma de ouvir é inquisitorial. Deste modo, concordamos com a Nota da Funai sobre a CPI, divulgada em 12/11/2015, que salienta:
“O que se observa é que parlamentares buscam sobrepor argumentos políticos, ideológicos e baseados em interesses pessoais ao que determinam os ordenamentos legais que regulam a demarcação de territórios indígenas e quilombolas no país. Ainda, buscam desqualificar o trabalho técnico de antropólogos, historiadores, biólogos e outros profissionais, que cumprem com critérios científicos em seus relatórios.
Dessa forma, [a FUNAI] considera que a instalação de uma CPI pela Câmara dos Deputados para investigar os trabalhos realizados pela FUNAI e o INCRA não está baseada no requisito constitucional do fato determinado, mas em um ataque ordenado aos povos indígenas e quilombolas encabeçado por determinados setores da sociedade e do Legislativo.
Tais setores agem para flexibilizar direitos e tonar os territórios indígenas e quilombolas vulneráveis aos interesses empresariais e econômicos dominantes em nossa sociedade. Uma vez que as terras indígenas representam, em grande parte, as áreas mais preservadas do país, são inúmeras as pressões para tornar sua exploração viável.
A FUNAI entende que a instalação de tal CPI é parte de uma ofensiva desigual, violenta e inconstitucional contra os povos indígenas e quilombolas, representada também pela recente aprovação da PEC 215/00 na Comissão Especial da Câmara Federal. Mais que isso, acredita que não deve haver retrocessos em direitos já consolidados a fim de que possamos construir um Brasil verdadeiramente democrático e plural.
Com o apoio dos povos indígenas, a FUNAI enfrentará todas as investidas que se apresentem contrárias aos direitos dos povos originários com a convicção de que sairemos desse processo mais fortalecidos e confiantes nos rumos do nosso país”.
2. Em situação de conflito há dois lados ou um só?
Pelos textos, imagens e vídeos que acompanhamos durante a presença da comissão vinculada à CPI Funai/Incra em nossa região, só um lado do conflito foi ouvido. Faltou à comissão ouvir a população indígena local, além do corpo técnico que realizou o relatório, conforme discutimos no tópico anterior.
A impressão que fica é que a Comissão agiu de forma parcial até na escolha da cidade onde ocorreu a audiência: Buerarema. Todos aqui na região sabem que este município foi onde os conflitos relativos à demarcação do Território Indígena tornaram-se mais agudos. O clima de preconceito em relação aos Índios é grande e nossa presença nesta sessão poderia gerar conflitos.
Nosso questionamento é que a presença desta Comissão e a própria criação desta CPI pode acirrar conflitos, cuja solução esperada, no caso do Território Tupinambá, é a Demarcação Já.
Esta CPI e sua Comissão insuflam a esperança das pessoas contrárias à demarcação de que ela não irá ocorrer. Ou seja, acirram o conflito – e não é isto que desejamos. A solução é a demarcação e o governo, bem como a justiça, atender aos interesses, inclusive econômicos, dos que se sentem prejudicados.
Afirmamos isto porque todos os trâmites para que a demarcação do Território Tupinambá ocorresse já foram percorridos, e voltar atrás é aumentar o conflito e não solucioná-lo.
3. Uma CPI para aumentar ou resolver conflitos?
Ao assinalar que os relatórios demarcatórios feitos pela Funai podem ser revistos e seu técnicos criminalizados, esta Comissão aumenta a situação de conflito em diferentes lugares neste país. Falamos isto porque, ao rever os Relatórios de Territórios já Demarcados e que estão em processo de demarcação, como é o caso do Território Tupinambá, isto pode incentivar a atitude dos que são contrários às demarcações gerando mais conflitos.
Ou seja, a presença desta Comissão da CPI Funai/Incra em áreas como onde moramos (Território Indígena Tupinambá), em decorrência de sua parcialidade, incentiva os contrários à demarcação, aumenta o preconceito contra o Povo Tupinambá e o discurso de ódio contra Índios aqui onde moramos. Situação que já havíamos salientando em outro texto, em que comentamos o vídeo do deputado federal ruralista Luis Carlos Heinze (PP/RS) – um dos mais atuantes nesta comissão –, incentivando o conflito aqui na região.
Aliás, a criação desta Comissão Parlamentar de Inquérito é fruto da ação deste deputado, segundo explica a Associação Brasileira de Antropologia – ABA, Comissão de Assuntos Indígenas e seu Comitê Quilombos, em nota divulgada em 17/11/2015:
“Fruto de requerimento datado de 16 de abril de 2015, apresentado pelos Deputados Federais Alceu Moreira (PMDB-RS), Luis Carlos Heinze (PP-RS), Nilson Leitão (PSDB-MT), Valdir Colatto (PMDB-SC) e Marcos Montes (PSD-MG), a CPI foi instalada, como se sabe, a contrapelo da legalidade, por não atender aos requisitos mínimos de um procedimento dessa natureza, como o mandato de segurança interposto junto ao STF pela Deputada Federal do PT do DF Érika Kokay, em 9 de novembro de 2015, bem o demonstra”.
Por isso, solicitamos das autoridades brasileiras, especialmente da Justiça, que acompanhem a forma como esta CPI Funai/Incra age. Uma CPI formada pela bancada ruralista do Congresso e com claro objetivo de criminalizar os autores dos Relatórios Demarcatórios da Funai, impedir demarcações e rever as que já foram realizadas. Aliás, seria necessário uma CPI da CPI Funai/Incra.
Como bem analisou a revista O Indigenista:
“O Ministro do STF José Antônio Dias Toffoli derrubou argumentos que ruralistas usaram para criar a CPI da Funai e Incra em 2015. Trata-se da decisão sobre um pedido de Mandado de Segurança contra a homologação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, SC.
Em sua decisão, Toffoli aponta que as possíveis irregularidades administrativas que os ruralistas insistem em argumentar, de que antropólogos teriam manipulado relatórios de identificação, bem como ONGs estariam por trás das decisões da Funai, se tratam de acusações sem provas, e que todo o procedimento adotado pela Funai, posteriormente reconhecido pelo Ministério da Justiça, está de acordo com a legislação vigente”.
Solicitamos da Justiça brasileira o fim desta CPI. Sobre nossa região, o Território Indígena Tupinambá, solicitamos que todas e todos fiquem cientes de quem são os culpados pelos conflitos aqui existentes. Com certeza não somo nós, os Índios. O que desejamos é Demarcação Já!
Para solucionar os conflitos nos Territórios Indígenas, como no caso do Território Tupinambá, demandamos: Demarcação Já, garantias aos territórios já demarcados, fim da criminalização dos povos indígenas, um basta aos atentados como ocorrido recentemente com os parentes Guaranis Kaiowá, fim da criminalização dos que realizam estudos para para relatórios demarcatórios, respeito à alteridade dos povos indígenas, não à PEC 215, não à portaria 202 da AGU, fim do sucateamento da Funai.
Não temos nada a temer!
“Oh
Devolva nossas Terras
Nossas Terras nos pertencem”
AWERÊ!
* Casé Angatu é Indígena e da Luta Indígena, morador no Território Indígena Tupinambá de Olivença na Aldeia Gwarini Taba Atã. Historiador e Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, em Ilhéus (BA). Este texto foi publicado originalmente no site Outras Palavras.
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