Ricardo Ramos
Um mês após se apresentar na TV como pré-candidato à sucessão presidencial no horário destinado ao PHS (Partido Humanista da Solidariedade), o professor de Direito da Universidade de Harvard (EUA) Roberto Mangabeira Unger afia o discurso contra a polarização PT-PSDB e flerta com o PDT.
Para o filósofo, o apetite pelo poder é a única coisa que distancia petistas e tucanos. Na essência e na falta de alternativas para o país, segundo ele, os dois partidos se igualam. Ambos priorizam o sistema financeiro, concebem políticas sociais como medidas compensatórias e estabelecem alianças com os “endinheirados”, afirma. “Esse foi e é o projeto para o qual convergiram tanto a coalizão partidária que agora governa quanto a anterior”, critica.
Ao avaliar o governo Lula, Mangabeira é ainda mais contundente: “É uma grande mistura de covardia com incompetência. A incompetência veio depois, para fechar o conjunto da ópera. Mas o mais grave é o problema que, antes de ser de eficácia, é conceitual: jamais o PT teve um projeto para o país. Depois ficou claro que era só retórica, palavras”, diz.
Amigo de Leonel Brizola, o professor ensaia o retorno ao quadro dos trabalhistas e garante que há espaço para forças políticas ainda desconhecidas do cenário nacional. “O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse repetidamente que o Brasil tem rumo. De fato, tem rumo, o rumo errado, e que a população tentou mudar em 2002”, afirma. E acrescenta: “O brasileiro está à busca de saídas e não tem aversão ao risco”.
Entre as diretrizes que propõe para corrigir o rumo do país, Mangabeira destaca quatro: a recuperação da capacidade estratégica e financeira do Estado, a retomada do poder de compra do salário na renda nacional, a melhoria na qualidade do ensino público e o rompimento com os “acertos entre os governantes e os endinheirados”.
Aos 57 anos, Mangabeira não perde o gosto pela capacidade de surpreender. Foi assim em 1971, quando, aos 24 anos, tornou-se o mais jovem professor-titular da história da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. Um mês antes da eleição presidencial de 2002, o filósofo deixou a coordenação da campanha de Ciro Gomes após propor a renúncia do candidato do PPS em favor da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva.
Na ocasião, Ciro, que hoje é ministro da Integração Nacional de Lula, desdenhou da proposta. Desde então, os dois – que chegaram a publicar juntos o livro “O Próximo Passo – Uma Alternativa ao Neoliberalismo” – estão rompidos. “Prefiro não fazer nenhum comentário a esse respeito”, diz, ao ser perguntado sobre a atuação do ex-pupilo no governo.
Em abril deste ano, Mangabeira reapareceu em público no horário gratuito reservado ao pequeno PHS como pré-candidato à sucessão presidencial. Sua apresentação foi feita pelo amigo Caetano Veloso. Apesar do espaço cedido pelos humanistas, o filósofo garante que não está filiado ao partido e não esconde que postula uma vaga no PDT. O problema é que o partido, que estuda a formação de um bloco com o PPS, já tem pelo menos outros três pré-candidatos.
Filho do advogado norte-americano Arthur Unger e da jornalista e poetisa brasileira Edyla Mangabeira, o professor vive na ponte aérea entre os Estados Unidos e o Brasil e traz no sangue o gosto pela política. Seu avô, o lendário Otávio Mangabeira, foi líder da oposição ao governo trabalhista de Getúlio Vargas e fundador da UDN (União Democrática Nacional). Seu tio-avô, o ex-deputado João Mangabeira, fundou o PSB e foi ministro da Justiça do ex-presidente João Goulart.
Congresso em Foco – O PDT chega aos 25 anos sem o seu maior líder, Leonel Brizola, morto ano passado. O que mudou no partido de lá pra cá e qual caminho a seguir?
Roberto Mangabeira Unger – O PDT encarna a diretriz do trabalhismo nacional. Um trabalhismo que não se contentou em representar as forças organizadas do país, mas quis falar também pelos desorganizados. Um trabalhismo que compreendeu a necessidade de um Estado forte, com capacidade estratégica, que jamais aderiu à pregação anti-estadista e sempre reconheceu a prioridade da questão nacional. Qualquer avanço social no Brasil depende de rebeldia nacional. Por muitos anos, o Brasil viveu um desvio na condução da esquerda, sofreu uma falsa esquerda, bajuladora, açucarada e que procurou passar a idéia de que ou nós tínhamos que aceitar o nosso projeto para o país ou seria o caos.
“A única coisa que os divide (PT e PSDB)
é o apetite pelo poder”
A quem o senhor se refere?
Ao PT, especificamente ao grupo majoritário (tendência do partido da qual fazem parte 60% dos seus militantes, entre os quais o presidente Lula e o ministro da Casa Civil, José Dirceu). Até porque o próprio PT possui alguns dos melhores quadros políticos do país, que estão revoltados com o que aconteceu. Toda essa fase da vida brasileira foi vivida sob a hegemonia da idéia de que teríamos de fazer o desenvolvimento para depois fazer justiça. O crescimento econômico produziria sobras e essas migalhas seriam utilizadas para fazer políticas sociais. Esse projeto hegemônico teve três grandes componentes. Primeiro, a prioridade dada ao sistema financeiro sobre a economia real. Segundo, a concepção da política social como uma política compensatória, para atenuar a desigualdade e não mudar o modelo econômico. E o terceiro foi a complacência com os acertos plutocráticos entre os governantes e os endinheirados. Esse foi e é o projeto para o qual convergiram tanto a coalizão partidária que agora governa quanto a anterior. A única coisa que os divide é o apetite pelo poder.
Nesse cenário, o que cabe ao PDT?
A tarefa do PDT é oferecer uma alternativa clara. A essência dela é a idéia que temos de inverter a lógica do desenvolvimento anterior. Antes, era fazer desenvolvimento para, depois, fazer justiça com as sobras. Agora é fazer justiça primeiro, justiça como base do desenvolvimento. Isso significa descentralizar o acesso às oportunidades de trabalho e de emprego. E transformar essa democratização de oportunidades no motor desse novo ciclo de desenvolvimento.
“O que tentam passar no Brasil? Ou nós aceitamos essa
política dominante ou será o caos, a aventura, a ruptura.
Nada disso! A verdade é que, entre os países continentais
em desenvolvimento, o Brasil é o único que subscreve
essa política de submissão”
O trabalhismo foi criado durante o governo de Vargas, na primeira metade do século passado e hoje tem dois partidos que se dizem herdeiros: PTB e PDT. Qual a concepção atual do trabalhismo?
O que define o trabalhismo hoje é essa consciência de que não se fará avanço social sem a reorganização da produção e do Estado. Não se fará avanço social a partir de políticas meramente compensatórias. Justiça primeiro, não como forma de dourar a pílula e atenuar as desigualdades produzidas. O que tentam passar no Brasil? Ou nós aceitamos essa política dominante ou será o caos, a aventura, a ruptura. Nada disso! A verdade é que, entre os países continentais em desenvolvimento, o Brasil é o único que subscreve essa política de submissão. E, por isso mesmo, é o que menos cresce entre eles. Estou tentando demonstrar, nas minhas intervenções políticas, que é possível ter uma proposta moderada, sóbria, realista e que, no entanto, teria impacto transformador e revolucionário. Esse dilema que os quadros dirigentes nos procuram impingir – rendição ou caos – é falso, uma mentira! A conseqüência ao apego a essa mentira é o grande vazio que se alastra na política brasileira.
“Quando me perguntam qual a nossa proposta para
2006, eu respondo: ‘Não é nada tirado de um livro,
de uma doutrina abstrata. É aquilo pelo qual o povo
brasileiro votou em vão em 2002″
O senhor acredita que o bloco PDT-PPS, que está sendo gestado, conseguirá capitanear toda essa espécie de frustração existente na esquerda?
Mas não é só a esquerda brasileira. É errado apresentar esse projeto como exclusivo da esquerda. A esquerda tem um papel liderante (sic). Mas o nosso objetivo em 2006 não é representar a esquerda, mas sim o país. O país votou maciçamente em 2002 por uma mudança de rumo. Tanto é assim que o candidato da situação (o atual prefeito de São Paulo, José Serra) teve que se apresentar também como agente dessa transformação. Quando me perguntam qual a nossa proposta para 2006, eu respondo: “Não é nada tirado de um livro, de uma doutrina abstrata. É aquilo pelo qual o povo brasileiro votou em vão em 2002”.
“Enquanto tivermos uma escola pública só para pobres, ela não prestará para ninguém. A escola pública tem que atrair a classe média e ter um paradigma pedagógico voltado para análise e capacitação, não para memória”
O que seria, então?
Essa mudança é baseada em quatro diretrizes. Primeiro, com a recuperação da capacidade estratégica e financeira do Estado, o reordenamento da dívida interna, sem violar quaisquer contratos. E parte, em seguida, para a grande democratização no acesso a crédito, a tecnologia e a conhecimento. Em segundo lugar, recuperar a parcela que cabe ao salário na renda nacional, que há 40 anos cai continuamente. Embaixo, na base da hierarquia salarial, abolindo todos os encargos sobre a folha de salário e dando incentivo ao emprego e qualificação dos trabalhadores mais pobres. Em cima, no topo da hierarquia salarial, generalizando o princípio da participação dos trabalhadores nos lucros das empresas. E, no meio da hierarquia salarial, fortalecendo o poder dos trabalhadores organizados de representar os não-organizados do seu setor. A terceira grande diretriz é a prioridade dada a melhora na qualidade do ensino público, como a política social que se teria. Eu sustento que, enquanto tivermos uma escola pública só para pobres, ela não prestará para ninguém. A escola pública tem que atrair a classe média e ter um paradigma pedagógico voltado para análise e capacitação, não para memória. E tem que acumular o aluno pobre e inteligente de apoios e oportunidades extraordinários. E a quarta diretriz é romper os acertos entre os governantes e os endinheirados. Hoje nós temos no Brasil uma política em que o endinheirado compra o governante e o governante achaca o endinheirado.
Com o financiamento público de campanhas?
Antes mesmo de mudar o sistema de financiamento eleitoral, têm que ser proibidas as confabulações secretas entre os ricaços e os poderosos.
De que forma?
O presidente tem que baixar uma ordem, um decreto dizendo: “Não pode! Pode falar à vontade, desde que seja na frente de outras pessoas. Sozinho é que não pode”.
O senhor acredita que o lobby da forma como é feito nos Estados Unidos (lá a profissão é autorizada) seria uma saída?
Na nossa situação agora – em que há uma destruição das nossas instituições republicanas, por essa prática de chantagem, de achaque e de favorecimento – nós temos de ter uma solução radical, de emergência. Eu não digo que isso seja uma solução duradoura, ela é emergencial (que seria o decreto).
O bloco PDT-PPS tem cerca de 50 parlamentares no Congresso Nacional. Existe força política para esse bloco vencer uma eleição presidencial?
A eleição nacional quem faz é o povo. O tamanho da representação parlamentar não define o potencial eleitoral. As pessoas que estão dizendo que a sucessão de 2006 é fava contada não compreendem como se processam as eleições presidenciais no Brasil. É muito difícil a pessoa se tornar conhecida, mas quando se fura o bloqueio, tudo pode acontecer. O brasileiro está à busca de saídas e não tem aversão ao risco.
Por falar em busca de saídas e sem aversão, o próprio bloco PDT-PPS já lançou quatro pré-candidatos à presidência. O senhor acredita que esse é o momento de gestação de uma candidatura, formulação de propostas e até discussão e convencimento para o eleitorado no ano que vem?
Eu acho que o bloco deve definir (o candidato à presidência) o quanto antes, porque precisamos construir a candidatura e fazê-la conhecida em todo o país e unir forças em torno dela.
“O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse repetidamente que o Brasil tem rumo. De fato, tem rumo, o rumo errado, e que a população tentou mudar em 2002”
O PDT foi o primeiro partido a romper com o governo Lula. No ano passado foi a vez do PPS tomar a mesma decisão. O senhor acredita que esse rompimento advém dessa frustração com a esperança vendida pelo atual governo?
É muito simples. Volto ao ponto. O povo brasileiro deu o sinal claro em 2002 de que quer mudança. Não quer só mudança cosmética, quer mudança de rumo. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse repetidamente que o Brasil tem rumo. De fato, tem rumo, o rumo errado, e que a população tentou mudar em 2002. E não recebeu em 2003, 2004, e 2005 aquilo pelo qual votou em 2002.
“(Governo Lula) É uma grande mistura de covardia
com incompetência. A incompetência veio depois para
fechar o conjunto da ópera. Mas o mais grave é o problema
que, antes de ser de eficácia, é conceitual: jamais o PT
teve um projeto para o país”
Qual a sua avaliação do governo Lula?
É uma grande mistura de covardia com incompetência. A incompetência veio depois, para fechar o conjunto da ópera. Mas o mais grave é o problema que, antes de ser de eficácia, é conceitual: jamais o PT teve um projeto para o país. Depois ficou claro que era só retórica, palavras. O partido não fez nenhuma concessão e depois vieram aquelas bajulações e acertos políticos. E a convicção de que a prioridade para o país era a economia e a perpetuação daquelas mesmas pessoas no poder. Aquilo que inicialmente se apresentou como imperativo circunstancial de transição agora se alardeia como uma fatalidade inescapável.
O senhor acredita que passamos por um momento de esgarçamento político? Petistas e tucanos têm se acusado mutuamente de golpismo, por exemplo.
Isso é normal. É o azedume político agravado por esse vazio. Como podem as pessoas se respeitar, se não são divididas por idéias, mas só pelo apetite do poder? Cada um reconhece o outro como um bandido, um aproveitador. E, de fato, são, estão sendo transformados nisso, por esse vácuo. Temos que resgatar o país.
“Foi um pragmatismo anti-pragmático (o de Lula ao buscar alianças com partidos à direita do espectro político). Foi uma cultura de esperteza, de sorrisos, de charme, de enganação”
O senhor acredita que Lula foi muito pragmático em buscar suas alianças com partidos à direita do espectro político?
Foi um pragmatismo anti-pragmático. Foi uma cultura de esperteza, de sorrisos, de charme, de enganação. Se o Brasil quiser isso, não é comigo.
Esse atual escândalo envolvendo o PTB, que culminou na CPI dos Correios, é reflexo disso?
São sintomas derivados. Tudo isso é superfície. O básico é aquele projeto que tem como um de seus elementos a condescendência com essas práticas de achaque e compra.
O senhor foi um dos ideólogos da campanha de Ciro Gomes à presidência da República em 2002. O que o senhor achou da atitude do ministro da Integração Nacional de ter se recusado a entregar o cargo, mesmo após o rompimento do PPS com o governo no final do ano passado?
Prefiro não fazer nenhum comentário a esse respeito.
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