Julio Roberto de Souza Pinto *
Timothy Power, brasilianista norte-americano da Oxford University, em artigo publicado em 2010 (Brazilian democracy as a late bloomer: Reevaluating the regime in the Cardoso-Lula era), faz uma interessante análise do que chama de “Era Cardoso-Lula”.De acordo com Power, desde 1995 o eixo da política nacional se transformou na competição entre o PSDB e seus aliados versus o PT e seus aliados. Sob aquilo que ele denomina de “bicoalizão”, importantes domínios de política vinham sendo objeto de consenso entre os dois campos, enquanto outros permaneceram fora da zona de consenso.
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Power vê em 1994 um claro divisor de águas entre uma primeira fase da democracia brasileira caracterizada por agitação política e fraco desempenho econômico e uma segunda fase com resultados mais encorajadores. Nesta última fase, o PSDB e seus aliados conduziram importantes reformas mais tarde expandidas e consolidadas pelo PT e seus aliados, numa espécie de “consenso interpartidário implícito”.
Segundo Power, esse consenso tinha os seguintes pontos centrais: política macroeconômica, política social, pacto federal revisado e presidencialismo de coalizão.
Os fundamentos da política macroeconômica datam da execução do Plano Real em meados da década de 1990. Em que pese à ferrenha oposição do PT e seus aliados às principais reformas conduzidas por Cardoso, em junho de 2002 Lula publicou a Carta ao Povo Brasileiro, na qual se comprometia a manter as linhas básicas da política macroeconômica de Cardoso. Ao assumir a Presidência da República em janeiro de 2003, Lula voluntariamente elevou a meta de superávit para além do prescrito pelo Fundo Monetário Internacional, nomeou para o Ministério da Fazenda o pragmático Antonio Palocci, ex-prefeito do PT que mantinha excelentes relações com o setor privado, e para a Presidência do Banco Central Henrique Meirelles, ex-executivo do Fleet Boston Financial que acabara de ser eleito para a Câmara dos Deputados pelo PSDB.
A política social foi outra área beneficiada pelo consenso interpartidário. Em meados da década de 1990, os governos do PSDB e do PT respectivamente em Campinas e em Brasília lançaram o Bolsa Escola. A partir dessas experiências bem-sucedidas, Cardoso lançou uma versão federal do programa. Em 2003, o governo Lula fundiu o Bolsa Escola com vários outros programas de transferência de renda e criou o famoso Bolsa Família. Combinadas com a igualmente consensual política de elevação do salário mínimo a taxas superiores à inflação, essas políticas resultaram na redução da pobreza e da desigualdade social na era Cardoso-Lula.
Para consolidar o ajuste fiscal exigido pelo Plano Real, o governo federal iniciou um agressivo programa de recentralização fiscal: Fundo Social de Emergência em 1994, Lei Kandir em 1996, Proes no mesmo ano, Lei Camata em 1999 e Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000. Lula preservou as linhas gerais desse novo pacto federativo.
As similaridades entre Cardoso e Lula se estenderam também ao campo da gestão política. Ambos procuram assegurar a governabilidade por meio do chamado “presidencialismo de coalizão”. Nas palavras de Power, Cardoso escreveu o manual e Lula o seguiu cuidadosamente.
Para Power, contudo, o balanço da era Cardoso-Lula não é de todo positivo. O regime continuava desafiado por vários domínios de política nos quais vinha havendo pouca mudança ou mesmo retrocesso, tais como o estado de direito, a reforma do Judiciário, a corrupção e a reforma política.
O milionésimo homicídio no DataSUS foi registrado em 2009, quando esse banco de dados completava apenas trinta anos de existência. A taxa de homicídio alcançou 28,5 por 100.000 habitantes em 2002, aproximando-se à marca de 50.000 homicídios por ano. Isso significa que em quinze meses se matou mais gente no Brasil do que os EUA em quinze anos no Vietnam. A Polícia de São Paulo matou em média 680 pessoas por ano no período 1990-2000, uma taxa trinta vezes superior à de Los Angeles.
O Brasil da era Cardoso-Lula também fez muito pouco para agilizar o notoriamente sobrecarregado Judiciário. Reformas em 2004 e 2007 tentaram mudar essa situação permitindo o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitar casos que não eram autenticamente nacionais, autorizando aquela Corte a editar súmulas vinculantes e criando um órgão de controle externo do Judiciário. No entanto, o sistema judicial continuava vastamente criticado por seus improvisos e inconsistências, assim como por seu corporativismo.
Relacionado com a inércia do sistema legal está a persistência da corrupção. Nos anos que se seguiram à renúncia de Collor diante de acusações de corrupção, uma vasta sucessão de escândalos vinha reforçando a percepção de impunidade. Dezenove congressistas foram cassados no escândalo do orçamento em 1994; o governo Cardoso foi acusado de comprar apoio em 1997 para a emenda que permitiu a reeleição; três senadores foram cassados por violar o sigilo do sistema de votações eletrônicas do Senado em 2001; o presidente da Câmara foi forçado a renunciar por extorquir o dono do restaurante que funcionava nas instalações daquela Casa Legislativa em 2005; assessores de Lula foram acusados, em 2005, de operar um esquema de propina a congressistas conhecido como “mensalão”; 69 deputados (13% da Câmara) foram acusados, em 2006, de receber propina na compra superfaturada de ambulâncias (“escândalo dos sanguessugas”); e investigações em meados de 2009 revelaram que a Presidência do Senado editava atos secretos para encobrir gastos duvidosos. Mas os escândalos de Brasília eram apenas a ponta do iceberg: a corrupção política permeava todos os estados e os municípios. Power, obviamente, publicou o artigo antes do estouro do maior escândalo da série: o “petrolão”.
Entre as possíveis explicações para a falha no controle da corrupção, Power destaca o desinteresse da classe política em se autorregular, o que, por sua vez, é reforçado pelo desinteresse do Judiciário em agir contra a classe política. A análise de Power evidentemente não recobre o excesso de zelo com que o sistema de Justiça se tem lançado ultimamente à tarefa de apurar toda e qualquer acusação envolvendo integrantes dos governos do PT.
Outra possível razão para o insucesso no controle da corrupção na era Cardoso-Lula está relacionada com a competição política. Os atores políticos usam as acusações de corrupção de maneira bastante instrumental: quando o governo é acusado de irregularidades, a oposição normalmente trombeteia e prolonga os escândalos para potencializar os danos. Essas acusações se constituem numa ferramenta não ideológica, politicamente neutra de enfraquecimento da parte adversa.
A reforma política tem sido objeto de debate nas últimas duas décadas. Essa é outra área na qual os políticos têm sido relutantes em se autorregular. Isso tem levado a certo ativismo judicial. Em 2002, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu que os partidos deveriam formar coligações consistentes nos níveis nacional e subnacional (verticalização), mas o Congresso derrubou essa decisão quatro anos depois por meio de emenda constitucional. Em 2006, pequenos partidos questionaram a cláusula de barreira ou desempenho eleitoral e o STF a julgou inconstitucional. Em 2007, o TSE decidiu que os mandatos eleitorais pertenciam aos partidos e não a indivíduos, e que quem mudasse de partido perderia o cargo. O Congresso respondeu, entretanto, aprovando uma anistia para quem trocasse de partido e criando uma janela para troca-trocas no terceiro ano de cada legislatura. A análise obviamente não recobre outras decisões do STF, como a que recentemente proibiu o financiamento empresarial de campanha eleitoral, mais tarde referendada por lei.
Power certamente deve estar espantado com a rapidez com que, notadamente a partir do final do primeiro governo Dilma, isso que ele chama de “consenso interpartidário implícito” veio a se dissipar inteiramente, no vácuo do que surgiu uma polarização raramente vista em toda nossa história política.
* Advogado, doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília, professor do Mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados, pesquisador visitante da Universidade de Duke (Carolina do Norte, EUA, de 2014 a 2015) e da Universidade de Oxford (Reino Unido, de 2010 a 2011).
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