O governo federal reservou no orçamento pelo menos R$ 253,5 milhões para sete estados inadimplentes, selecionados dentre os dez maiores do país, onde vive 76% da população. São estados que receberam dinheiro da União para fazer obras e programas sociais, mas, de acordo com registros do Tesouro Nacional, não prestaram contas sobre se usaram corretamente os recursos, ou fizeram isso fora do prazo, ou não apresentaram documentos exigidos ou são investigados por tomadas de contas. Por regra, repasses semelhantes a esses são irregulares. De acordo com nota técnica da Câmara à qual o Congresso em Foco teve acesso, uma norma foi criada para “afrouxar” os critérios de transferência de dinheiro público.
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As prestações de contas servem para, por exemplo, comprovar que os recursos foram usados corretamente e que não houve fraude ou desvio de dinheiro público. É um dos meios para se evitar e punir casos de corrupção. Constatado algum problema na prestação de contas, a regra determina a paralisação de novos repasses.
O Congresso em Foco fez um levantamento dos repasses feitos pelo governo federal nos dez maiores estados brasileiros. De janeiro a 6 setembro, eles receberam empenhos de R$ 759 milhões em convênios, segundo o Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira, que registra gastos da União), excluídas as áreas de saúde, educação e assistência.
“Seria admitir que, por um criminoso ter cometido um homicídio com as mãos, os pés poderiam ficar livres e saírem da prisão” Nota técnica da Câmara que critica afrouxamento de regras do governo para liberar dinheiro público |
O levantamento mostra que, desse montante, pelo menos R$ 253,5 milhões foram empenhados para sete estados que não estavam em dia com as suas contas. Dos sete estados inadimplentes, seis são da base aliada do presidente Lula.
O valor levantado pelo site inicialmente era de R$ 311,8 milhões. Mas, após o Congresso em Foco contatar a assessoria do governo da Bahia, registros do Tesouro mostraram que o estado sanou alguns problemas, o que reduziu o valor de recursos recebidos após a inadimplência, de R$ 75 milhões para R$ 15 milhões. Mesmo assim, significa que, no passado recente, mais convênios estavam sendo empenhados apesar de restrições.
Representantes do Ministério do Planejamento afirmam que haverá uma reunião extraordinária do colegiado responsável pelas regras do repasse de dinheiro para convênios. Só então poderão dizer por que as transferências estão sendo feitas, se elas estão dentro da legalidade e se houve “afrouxamento” de regras por parte do Executivo.
Crime com as mãos
A Nota Técnica 11/10, da Consultoria de Orçamento e Fiscalização da Câmara, diz que o governo publicou uma diretriz ilegal para tornar menos criteriosa a liberação de dinheiro público a estados com problemas na prestação de contas. Na interpretação do estudo, a Diretriz 2/10, da Comissão Gestora do Sistema de Convênios (Siconv), redigida em 2009 e aprovada em 24 de junho passado, permite que a União, em vez de checar se o estado e todas as suas secretarias, fundações e institutos estão em dia com o governo, confira apenas se o estado e a secretaria que vai receber os recursos cumprem as exigências.
“Se a Universidade de Pernambuco ou a Secretaria de Educação estiver inadimplente, isso não atinge outros órgãos”, confirma o gerente de orçamento da Secretaria de Planejamento de Pernambuco, Edilberto Xavier.
A nota critica a prática. “Seria admitir que, por um criminoso ter cometido um homicídio com as mãos, os pés poderiam ficar livres e saírem da prisão”, diz o estudo, assinado pelo consultor Francisco Lúcio Pereira Filho. Segundo ele, o procedimento do governo federal contraria a legislação vigente.
MESMO INADIMPLENTES, ESTADOS
SÃO BENEFICIADOS COM EMPENHOS
O consultor Pereira Filho diz que, se um órgão da administração direta (uma secretaria) ou indireta (uma fundação, por exemplo) não estiver em dia com as obrigações, o estado todo está proibido de receber dinheiro da União. Na nota, ele afirma que o governo federal “não pode fechar os olhos” para casos de inadimplência.
Únicos em dia
Os dez maiores estados do Brasil são comandados por sete governadores da base aliada do presidente Lula e três da oposição.
Proporcionalmente aos R$ 759 milhões empenhados este ano, os estados da base receberam 66% e os da oposição, 34%. Dos recursos recebidos, os da base receberam 45% em período em que estavam inadimplentes. Os da oposição, 12%.
São Paulo, Minas Gerais, na oposição, e Ceará, na base, são os únicos em dia com as prestações de contas, segundo registros do Tesouro.
Mas Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco, Ceará, Pará e Maranhão estão inadimplentes. Juntos, eles receberam empenhos (reserva de pagamento) de R$ 253,5 milhões este ano. Único estado da oposição no grupo, o Rio Grande do Sul está inadimplente desde 1997, por conta da instauração de tomada de contas especial no Instituto do Arroz.
Os estados que, neste ano, foram mais beneficiados com empenhos após a inadimplência são dirigidos por partidos da base aliada e cujos governadores tentam a reeleição. No Maranhão de Roseana Sarney (PMDB), inadimplente desde o ano passado, foram R$ 88 milhões. No Pará, de Ana Júlia Carepa (PT), com problemas desde 2008, foram R$ 61 milhões.
Em terceiro lugar, o Paraná teve R$43 milhões em empenhos apesar de inadimplente desde o ano passado. O ex-governador Roberto Requião (PMDB) concorre ao Senado e seu vice, Orlando Pessuti (PMDB), tenta continuar no governo.
Apesar da ligação com o Planalto, os estados negam que a relação com Lula tenha a ver com a liberação de recursos. É como dizem os auxiliares do governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), ex-ministro da coordenação política de Lula: “Essa aproximação entre o governador e o presidente não justifica receber algo que a lei impede. Não é por amizade.”
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