Celso Lungaretti*
“Então não pude seguir
valente lugar-tenente
de dono de gado e gente
porque gado a gente marca,
tange, ferra, engorda e mata,
mas com gente é diferente”
(Vandré e Théo, “Disparada”)
Estados policiais sonegam a bel-prazer informações vitais para os cidadãos. Foi o que fez a ditadura militar brasileira, por exemplo, com as mortes de trabalhadores rurais intoxicados por defensivos agrícolas e com uma epidemia de meningite, sob pretexto de evitar o pânico.
O primeiro episódio eu acompanhei bem de perto. Trabalhava na agência de comunicação empresarial que, em meados da década de 1970, foi contratada por uma multinacional para abafar as sucessivas ocorrências de envenenamento de cidadãos brasileiros das áreas rurais.
Tratava-se de um contrato tão crapuloso que a conta era integralmente paga pela tal multinacional, mas o trabalho executado em nome de uma associação fantasma de fabricantes de agrotóxicos, criada às pressas para servir de fachada naquela situação.
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Coube-me redigir material de imprensa destacando a contribuição que os defensivos agrícolas estariam dando à agricultura brasileira e os prejuízos terríveis que sua eventual proibição acarretaria: fome da população, desemprego no campo, queda das exportações.
Eram textos aparentemente inocentes, mas não o que estava por trás deles: o raciocínio desumano de que, para evitarem-se tais prejuízos, podiam ser relevadas algumas mortes.
Pior ainda era o papel do dono da agência, que se incumbia pessoalmente de falar com os jornalistas influentes, distribuindo subornos e ameaças veladas. Repugnava-me vê-lo elogiar a si próprio por haver conseguido sustar a publicação de uma notícia que já descera para a gráfica de um grande jornal. “Eu parei as rotativas”, dizia, vangloriando-se para empresários interessados nos seus serviços.
Participar dessa empreitada foi a primeira grande desilusão de minha carreira jornalística. Muitas outras haveria, com os interesses econômicos prevalecendo sobre o bem comum e eu nada podendo fazer para remediar a situação, sob pena de ficar com o mercado de trabalho totalmente fechado para mim.
Então, graças à censura sobre a imprensa e aos mecanismos de persuasão dos poderosos, o povo brasileiro deixou de ser informado dos riscos que corria quem utilizasse agrotóxicos e das mortes por envenenamento sucedidas em todo o país.
A tal multinacional, que jamais ousaria proceder de forma tão leviana no 1º mundo (ao não investir no treinamento adequado dos usuários de seus produtos), conseguiu apagar o incêndio: ministrou rapidamente os cursos que deixara de promover antes e não arcou com as multas astronômicas que lhe seriam aplicadas em qualquer país no qual o governo cumprisse os deveres assumidos com os governados.
De quebra, indenizou mal e porcamente, por baixo do pano, as famílias das vítimas, que não tiveram como obter reparações à altura da gravidade das perdas que sofreram.
Ficou-me também a impressão de que o êxito da operação de acobertamento se deveu ao fato de que os mortos eram irrelevantes. Se os finados não fossem os coitadezas das zonas rurais, certamente aquelas mortes acabariam tendo maior repercussão.
Estas tristes lembranças me foram evocadas pela leitura do relatório anual de 2008 da Anistia Internacional, que acaba de ser divulgado. Nele, pela primeira vez, o setor canavieiro do Brasil, dedicado à produção do etanol, é acusado de abusos e violações de direitos humanos.
“Trabalho forçado e condições de trabalho exploradoras foram registrados em muitos Estados”, diz o relatório, acrescentando que o Ministério do Trabalho teve de resgatar 288 trabalhadores de seis plantações de cana-de-açúcar em São Paulo, 409 de uma destilaria de etanol no Mato Grosso do Sul e mais de mil reduzidos a condições “análogas à escravidão” na plantação paraense de uma fabricante de etanol.
As ocorrências do último ano foram tão graves que a Anistia Internacional resolveu elaborar um estudo sobre o impacto do crescimento da agroindústria como um todo sobre o respeito aos direitos humanos no Brasil. Além da cana-de-açúcar, os setores madeireiro e de produção de laranja também estão sob investigação.
O relatório ressalta que, caso o Brasil continue tendo um desempenho doméstico tão inferior à defesa que faz dos direitos humanos em termos internacionais, sua credibilidade nessa área será abalada.
Também foi questionada a conivência brasileira em relação às mortes e torturas praticadas por agentes policiais. “As pessoas em comunidades marginalizadas continuam a viver em meio a níveis altos de violência causada tanto por gangues criminosas como pela polícia”, diz o relatório.
Ressalta, neste sentido, que “a polícia do Rio de Janeiro matou 1.330 pessoas em situações chamadas de resistência seguida de morte, o número mais alto em toda a história do Brasil”, manifestando sua preocupação com o apoio de setores do governo federal, inclusive o presidente Lula, a operações “de estilo militarista” no Rio de Janeiro.
O relatório, enfim, é um ótimo alerta para nós: nem os usineiros fazem jus aos louros de novos heróis da Nação, como quer Lula; nem as barbaridades praticadas pelas tropas de elite constituem uma resposta à criminalidade aceitável num país civilizado.
Artigo publicado em 30/05/2008. Última atualização em 12/08/2008.
*Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista em São Paulo, com longa atuação em redações e na área de comunicação corporativa, e escritor. Escreveu Náufrago da utopia (Geração Editorial, 2005). Mais dele em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/.
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