Fábio Góis
O presidente do Conselho de Ética do Senado, Paulo Duque (PMDB-RJ), pretende lançar um livro com os despachos técnicos que produziu para justificar os engavetamentos das 11 representações contra José Sarney (PMDB-AP), presidente da Casa. O parlamentar fluminense justifica a iniciativa com o argumento de que os textos são peças com alta qualidade de fundamentação jurídica.
O mais curioso da obra é o título, uma citação de Rui Barbosa perigosamente sugestiva: “O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”.
A frase do jurista brasileiro se refere ao episódio da crucificação de Jesus Cristo, narrado no capítulo 23 do Evangelho de Lucas. Um dos dois ladrões condenados ao lado do Messias admite que a sentença que paga é justa. E diz a Cristo: “Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino”. Jesus responde: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”.
Duque ainda evita dar mais detalhes sobre o futuro de “O bom ladrão”. “O livro não está consolidado, porque envolve muita gente que ainda está no Senado. Eu preciso ter, no mínimo, um consentimento desses senadores, porque eles foram objeto de denunciantes, podem não gostar que eu, de repente, publique as denúncias. Posso me responsabilizar mesmo pela publicação dos meus pareceres.”
O senador preferiu falar com o Congresso em Foco sobre a crise e outro livro, publicado em 2007, de título também curioso: “Aqui desta tribuna até os reis têm que me ouvir”. A obra foi concebida, editada e reproduzida pela gráfica do Senado.
O site procurou Duque na última quarta-feira (2). Aos 81 anos, o senador fluminense faz o estilo “tranquilão”, característica pessoal exaltada por ele mesmo no auge da crise. A conversa começou, a passos lentos, na saída do plenário.
Duque falava pausadamente, observando com certo ar intrigado o súbito interesse do interlocutor. Afinal, o calor dos debates sobre os arquivamento sumários já não chamava mais a atenção da grande mídia.
O senador explicou o título e a provocação aos reis. “Eu me lembrei do gesto, do comportamento corajoso de um deputado paulista da família Andrada, e que representou, no tempo ainda do Brasil vice-reinado, o Brasil no Parlamento português. Nos idos de 1828, por aí, os portugueses queriam que o Brasil voltasse a ser colônia”, disse o senador, referindo-se a Antônio Carlos de Andrada Machado, que contestava as ideias de recolonização do país.
“Quando ele ia à tribuna, e ia sempre, os deputados portugueses faziam uma onda muito grande, gritavam, assobiavam. Então ele deu um soco na tribuna e pronunciou essa frase, que ficou famosa. Essa é a história do título”, completou o senador.
O livro de 2007 tem 328 páginas ocupadas com discursos, artigos de jornal, fotos, declamação de poemas em plenário e uma “exaltação do monumento aos pracinhas no Rio de Janeiro”.
Ouvido pelos senadores
Ao espírito do livro, há uma fotografia em preto e branco com o título Senado em ação. Falando ao microfone e com o braço direito apontado para a Mesa, mão espalmada, Duque é observado por nomes como José Sarney, José Agripino (DEM-RN), Pedro Simon (PMDB-RS), Lúcia Vânia (PSDB-GO), Aloizio Mercadante (PT-SP), Francisco Dornelles (PP-RJ), Roseana Sarney (PMDB, agora governadora do Maranhão), Ideli Salvatti (PT-SC), Marisa Serrano (PSDB-MS), Tião Viana (PT-AC) e Inácio Arruda (PCdoB).
O primeiro discurso registrado no livro foi feito no dia 20 de junho de 2007. Chama-se “A crise histórica da República e do Parlamento brasileiro – Manifestação de apoio ao presidente Renan Calheiros”. Como o nome diz, trata-se de uma contundente defesa do senador alagoano, alvo de denúncias em 2007.
A capa da obra é uma pintura do artista plástico “consagrado no país e no exterior” José Tadeu Alves, que retrata uma reunião do Senado da Velha República, em um plenário com longos lustres pendentes do teto e decoração barroca.
Leia, a seguir, trechos da entrevista com o segundo suplente do ex-senador Sérgio Cabral (PMDB), atual governador do Rio de Janeiro.
Congresso em Foco – Na política brasileira nós temos alguns “reis”. O senhor acredita que os reis o escutam quando o senhor vai à tribuna?
Paulo Duque – Veja bem. Esse veículo [sistema de comunicação integrada do Senado, que reúne TV, rádio, impressos e internet] que o presidente Sarney instalou na Casa foi um dos maiores serviços que ele prestou no Parlamento – porque ele conseguiu trazer o povo para dentro do Senado, coisa “impossível” e simples, mas ele fez. Só isso já justificou a presença dele como presidente, por três vezes, da Casa. Trouxe o povo para dentro do plenário, isso é importantíssimo. Tem gente que é viciada em ouvir e ver as transmissões da rádio e da TV Senado. Ele prestou um grande serviço à nação brasileira, merece respeito, ser bem tratado, não poderia jamais sofrer tantas denúncias, ameaças, agressões. É um homem que tem serviços relevantes prestados ao país, na minha opinião. Ajudou muito o Tancredo Neves, e Teotônio Vilela, a fazer a transição naquela época [ditadura militar], e evitar uma guerra civil no país.
O senhor acabou de dizer que Sarney aproximou o povo do Senado. Mas e quando esse mesmo povo, contrariado com decisões que considera antidemocráticas, como a chamada “operação salvamento” de Sarney no Conselho de Ética… isso não é um paradoxo?
Não foi salvamento nenhum, não. Nós, no Conselho de Ética, ficamos ali como juízes, sem sermos juízes. Não é brincadeira não. Durante o recebimento de denúncias ou representações partidárias contra o presidente, eu fui acumulando aquilo, uma, duas, três. Pensei que fosse parar aí, mas vieram quatro, cinco, seis, sete. Eu jamais conversei com o presidente Sarney sobre os assuntos, jamais consultei qualquer membro do Conselho sobre os assuntos, porque eu tenho, pelo menos no regimento, até agora, uma prerrogativa só minha: quando chega uma denúncia ou representação, o presidente tem a prerrogativa de examinar e apertar o botão, mandar para o arquivo. Eu não vou perguntar para A, B ou C. Eu fiz questão de decidir por mim mesmo, não tem conversa. Agora, foi com um parecer jurídico, técnico, para todos os processos. Baseado neles é que eu mandei arquivar todos os processos.
Nós acabamos desviando do assunto da entrevista, que é o livro…
Não, mas a gente faz [a entrevista] junto com esse outro. Esse ainda é um assunto momentoso, criou uma polêmica muito grande. Confesso a você que muita gente pode não ter gostado [dos arquivamentos], mas muita gente gostou e me cumprimentou, gente que eu nunca vi na vida. Lá no Rio de Janeiro, aqui mesmo em Brasília, porque, realmente, você acionar 12 processos [também foi arquivada a representação do PMDB contra o líder do PSDB, Arthur Virgílio], e depois votar esses processos todos, foi uma façanha que há muito tempo ninguém via aqui no Senado.
No livro de 2007, o senhor nega que haja crise no Senado, presta alguma solidariedade ao então presidente Renan Calheiros, que enfrentou processo por quebra de decoro…
Presto toda a soliedariedade.
Seu livro e seus discursos na tribuna, cuja divulgação deveria ser em benefício da sociedade, acabam reportando questões muito particulares do Senado. Não é uma contradição?
Não. Ele (Renan) era o presidente eleito pelos senadores, ele não foi posto à força na presidência. Mesma coisa [aconteceu com] o Sarney, que teve quase 60 votos quando se candidatou à presidência, quer dizer, a maioria. Agora, o que está em jogo é que todo mundo está preocupado com a saúde do vice-presidente [José Alencar, que luta contra o câncer]. Dizer que não está é hipocrisia. Ele está gravemente doente, gostaríamos enormemente que ele pudesse se recuperar, a situação é séria. E, em geral, o presidente da Câmara dos Deputados e, em seguida, do Senado Federal, são as pessoas que vão, eventualmente, substituir o presidente da República quando este viaja. Então, está em jogo uma porção de valores que o pobre do povo, coitado, nem sabe. De maneira que eu não tenho o menor arrependimento em fazer o que fiz, e faria de novo, apesar de ter sofrido um tiroteio violentíssimo, durante uns quatro ou cinco meses, por todos os grandes jornais do Brasil. Todos! Parecia uma orquestra. Mas, finalmente, eu pude fechar o proscênio, baixar a cortina. Houve recursos até ao Supremo [Tribunal Federal], onde prevaleceu exatamente o que eu fiz.
O título “Aqui desta tribuna até os reis têm que me ouvir” dá uma ideia de nobreza…
Pode até dar, mas é muito republicano. Eu iniciei minha vida pública sabe onde? No chamado Partido Republicano, de Arthur Bernardes. Foi ele quem fundou o partido, numa dissidência da antiga UDN [União Democrática Nacionalista]. Então, eu tenho afinidade mesmo é com a República. Majestade, reinado ou o que seja, tudo isso aconteceu.
Não quer dizer uma postura…
Imperial? Não. Certamente, eu sou o mais duro do Senado, garanto que sou. E digo mais: meu eleitorado é muito simples, eu não faço campanha com a elite, nunca fiz. Sempre fiz campanha com o pessoal de baixo, que eu ajudo no morro do Vidigal, morro da Rocinha. Minha esposa foi vereadora. Em uma campanha, ela chefiou sete comitês de campanha que eu tinha na Rocinha nos bons tempos, em que se podia entrar sem pedir licença, sem pagar pedágio. Eu estou acostumado a lidar com o povo miúdo.