Celso Lungaretti*
Mais uma vez a Advocacia Geral da União elaborou parecer no qual considera os torturadores da ditadura militar inatingíveis pela Justiça, pois teriam sido beneficiados pela Lei da Anistia.
Foi a resposta dada ao Supremo Tribunal Federal, que está apreciando uma Arguição de Descumprimento de Princípio Fundamental proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil.
A OAB questiona o fato de estarem sendo abrangidos na anistia de 1979 também crimes comuns praticados pelos agentes da repressão, como torturas, estupros, atentados violentos ao pudor, homicídios e ocultação de cadáveres. A AGU, na contramão da ONU e do entendimento que já é consensual no mundo civilizado, opina que foi colocada uma pedra em cima das atrocidades perpetradas pela ditadura de 1964/85.
A AGU repetiu a posição tomada num processo movido por procuradores de Justiça contra os ex-comandantes do DOI-Codi/SP Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, tentando responsabilizá-los pecuniariamente pelas indenizações que a União teve de desembolsar com os sobreviventes daquele centro de torturas e as famílias dos falecidos (os que foram ali assassinados, aqueles para cujas mortes concorreram as sequelas dos maus-tratos e os que morreram por outros motivos nas longas décadas transcorridas até o reconhecimento dos seus direitos).
Em outubro de 2008, o Parecer Brilhante Ustra recebeu críticas veementes do ministro da Justiça, Tarso Genro, enquanto Paulo Vannuchi, titular da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, ameaçou deixar o governo.
É óbvio que o novo sapo não será digerido tão facilmente.
Os pareceres da AGU não determinam as sentenças dos juízes, mas as influenciam fortemente. Então, em cada processo que for movido contra os torturadores, seus advogados tendem doravante a requerer a manifestação da AGU, pois sabem que lhes será favorável. Daí o empenho de Genro e Vannuchi em evitar que o governo tomasse o partido dos carrascos.
Um passo atrás e dois adiante
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Mas, como se dizia antigamente, não adianta chorarmos sobre o leite derramado.
Há outra batalha em curso, pela liberdade de um perseguido político e para que o instituto do refúgio humanitário não sofra uma limitação que o desfiguraria. Até que seja derrotada essa articulação das forças mais reacionárias da Itália e do Brasil, garantindo-se a Cesare Battisti o direito de residir e trabalhar em nosso país, não convém a abertura de uma nova crise no Governo Lula.
E, já se pensando no day after, cabe uma reflexão: vale a pena a esquerda continuar insistindo nessa guerrilha judicial ou terá chegado o momento de dar um passo atrás, para poder dar dois passos adiante?
O objetivo original de Genro e Vannuchi era a revogação da Lei da Anistia que os verdugos concederam a si próprios, em 1979, e as vítimas foram obrigadas a engolir para que se abrissem as portas das prisões e fosse permitida a volta dos exilados.
Encontrando um obstáculo intransponível na ala conservadora do governo Lula, capitaneada pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, eles acreditaram que pudessem contorná-lo com um expediente engenhoso: transferir a refrega para os tribunais, com a abertura de ações incriminando os torturadores por crimes comuns.
Essa prática tinha, de cara, dois inconvenientes: só alcançaria os praticantes das atrocidades, não os seus mandantes; e os trâmites judiciais são tão lentos no Brasil, possibilitando tantas manobras protelatórias que, dificilmente, a sentença definitiva chegaria antes da morte dos réus, idosos e combalidos em sua maioria.
Agora há um terceiro: o posicionamento da União no sentido de que os torturadores foram anistiados.
Entulho autoritário
Então, como o atalho levou a um beco sem saída, o jeito é voltarmos à estrada principal: a revogação da anistia imposta pelos tiranos e a sua substituição por uma Lei de Anistia decidida em liberdade.
Isso só poderá ser conseguido se mobilizarmos a sociedade para pressionar Executivo, Legislativo e Judiciário, no sentido de que sejam corrigidos os erros do passado.
O Brasil ainda precisa ser passado a limpo, nem tanto para perseguir culpados, mas sim para extirpar-se de uma vez por todas o entulho autoritário que impregna nossas instituições.
Provavelmente, continuará não existindo tempo hábil para ainda se punirem os torturadores e os poderosos que lhes arrancaram as focinheiras e apontaram os alvos.
Mas, pelo menos, legar-se-ia às futuras gerações um conjunto de princípios que nortearia as ações do Estado brasileiro face a quaisquer ameaças de recaídas autoritárias.
Como o de que nada justifica, em hipótese nenhuma, a derrubada de um presidente legítimo, o fechamento do Congresso, a intimidação do Judiciário e a suspensão das garantias constitucionais. Não existem contragolpes preventivos. O que aconteceu (e poderá tornar a ocorrer, se não nos acautelarmos) foi, única e simplesmente, usurpação do poder.
E o de que, face à instauração do arbítrio, todo cidadão tem o direito, e até o dever, de resistir à tirania, pelos meios que se fizerem necessários.
Essas são as verdades que deveriam estar traduzidas na anistia, de forma a deixar bem claro quem foi vítima e quem foi algoz. A de 1979, pelo contrário, igualou os algozes às suas vítimas.
* Celso Lungaretti, 58 anos, é jornalista e escritor. Mantém os blogs O Rebate, em que publica textos destinados a público mais amplo; e Náufrago da Utopia, no qual comenta os últimos acontecimentos.
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