Sionei Ricardo Leão *
A polêmica entre a cantora Lauryn Hill e a TV Globo, por conta da passagem da pop star no Brasil, neste mês de junho, merece uma análise ou, no mínimo, uma atenção da imprensa brasileira, particularmente, para a futura Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Distrito Federal (Cojira DF).
Para quem não está a par, Lauryn Hill se apresentou entre os dias 12 e 16 deste mês em palcos de Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. Em razão dessa agenda, a Rede Globo de Televisão solicitou à norte-americana uma entrevista, cujo contato surpreendeu a redação, uma vez que a cantora concordou com a pauta desde que fosse abordada por um jornalista negro.
A Globo taxou Lauryn Hill de racista e, portanto, não concordou com os termos exigidos por ela. Divulgou que a empresa conta com os melhores profissionais do mercado e, dessa forma, não se via forçada a buscar um repórter identificado racialmente para a matéria. A cantora, por sua vez, não cedeu.
Ainda que o Brasil tenha uma trajetória riquíssima de imprensa negra, sobretudo, com o marco dos jornais paulistanos do início do século passado, essa prática não é vista com naturalidade, entre nós, sobretudo nas redações – dito de outra maneira, do ponto de vista empresarial, institucional.
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O episódio de Lauryn Hill serve de reflexão. Tenho reservas às analises de certos expoentes do movimento social negro que costumam denunciar uma conspiração expressa da imprensa contra as causas afro-descendentes. Em igual proporção, entendo que foi nefasto e antiprofissional o comportamento da Globo, nesse episódio.
Podemos interpretar, suponho, a postura de Lauryn Hill como a de alguém dizendo: “Quero falar da minha trajetória com um profissional que tenha sensibilidade com a história do meu povo e com a musicalidade em que estou imersa”. A da Globo, na vertente de uma voz que diz: “Não reconheço a especificidade da cultura e do povo negro, sobretudo de uma estrangeira.” Todos sabemos que a especialização é um fato na imprensa da atualidade. Jornalistas se especializam em Oriente Médio, cobertura de guerra, ciência, política, para ficar em poucos temas. Qual a heresia de reconhecermos que a cultura afro-descendente é uma pauta que requer, da mesma maneira, bagagem, sensibilidade, preparo?
Ocorre que o Brasil não são os EUA, cuja história passa pelo conceito de segregação, responsável pelo conceito “separados mas iguais”. A nossa, a pretexto de uma tese universal, trilhou o caminho da exclusão, da discriminação, do absenteísmo, do racismo institucional, de um massacre social, à margem da lei. Infelizmente, faz pouco tempo que trouxemos para o centro da agenda política assuntos como cotas, quilombos e anemia falsiforme, mas com muita dificuldade e resistências de variados segmentos.
Entre nós é, ou foi, um desafio conscientizar os negros de que podem lutar por suas causas, cultura, espaço no mercado de trabalho, cidadania, sem medo. É esse imbróglio que enfrentamos como nunca em todo nosso épico racial à brasileira. O episódio Lauryn Hill é mais uma página nessa robusta e inacabada publicação.
Killing me softly
Para atualização, quem sabe, de algumas pessoas pouco versadas em R&B, Lauryn Hill começou com o trio Fugees em 1996, na companhia dos rappers Wyclef Jean e Prakazrel “Pras” Michel.
O seu estilo é uma fusion de jazz, rap, R&B e reggae, caldo que lhe rendeu sucesso de crítica e em vendas de discos. O marco foi The score, basta lembrar da versão de Killing me softly (veja o clip no youtube), cantada originalmente por Roberta Flack – a mesma de The closer I get you.
*Sionei Ricardo Leão é jornalista e professor do Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb). Dirigiu seis documentários, entre eles, o Kamba’Race, que recebeu o Prêmio Palmares de Comunicação (2005) do Ministério da Cultura. Integra a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Distrito Federal (Cojira-DF).
Mais de Lauryn Hill:
Letra em inglês e português de Killing me softly with his song
Site oficial de Lauryn Hill
Trechos de músicas (para ouvir)
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