Lúcio Lambranho
A CPI dos Sanguessugas, a Polícia Federal, o Ministério Público e os demais órgãos que investigam as quadrilhas que fraudavam o orçamento federal não concluirão seu trabalho satisfatoriamente se não esclarecerem o papel desempenhado pela KM Empreendimentos Ltda. no fornecimento de equipamentos e serviços a instituições públicas.
De um lado, a empresa desenvolveu o protótipo do ônibus de inclusão digital que o Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) transformou em proposta-chave para ampliar o acesso dos brasileiros aos computadores e à internet. Do outro, são significativos os indícios de ligações entre o ex-ministro da pasta e atual deputado federal Eduardo Campos (PSB) e a KM.
Significativos e bastante antigos. Documentos aos quais o Congresso em Foco teve acesso e que fazem parte das investigações do Tribunal de Contas do Estado (TCE) de Pernambuco mostram que a KM manteve relacionamento comercial com o governo de Pernambuco ainda na última gestão do ex-governador Miguel Arraes (1995-1998), que morreu em agosto do ano passado. Na época, seu neto Eduardo Campos, herdeiro político do avô e principal liderança nacional do PSB, era secretário estadual da Fazenda.
Leia também
Volta no tempo
O ex-ministro do MCT e seu avô enfrentaram naquele mesmo período a pior crise política de suas vidas com o escândalo dos precatórios. Ambos foram denunciados por participação na utilização irregular de títulos públicos, fato investigado por uma CPI do Congresso que alcançou então grande repercussão. Ao final do processo, Eduardo Campos foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) das acusações de crime de falsidade ideológica e contra o sistema financeiro. Mas o desgaste causado pelo episódio contribuiu para a maior derrota eleitoral de Arraes, em 1998, quando ele não conseguiu a reeleição e Jarbas Vasconcellos (PMDB) elegeu-se governador de Pernambuco.
Quatro documentos aos quais tivemos acesso lançam luz sobre as relações entre a KM e o PSB pernambucano. Todos eles estão sob a investigação do TCE, que trabalha junto com os auditores da Controladoria Geral da União (CGU) no estado.
O primeiro deles é um recibo da empresa descrevendo a compra de quatro unidades móveis da KM pela então Secretaria de Trabalho e Ação Social, em dezembro de 1996. O valor recebido era R$ 600 mil (a preços da época, que hoje certamente passariam de R$ 1 milhão). "Tudo conforme nossa Proposta de Preços datada de 16/12/96", dizia o recibo.
O segundo é uma nota de empenho da Secretaria da Fazenda, comandada na época por Eduardo Campos, em favor da KM. O documento é datado de 20 de dezembro de 1996. O terceiro, uma nota fiscal da empresa do dia 26 de dezembro do mesmo ano, ou seja, seis dias após o empenho.
O quarto é a cópia de um cheque em favor da KM, no valor de R$ 600 mil. Ele tem a mesma data de um recibo da empresa citado antes, 27 de dezembro de 1996. O cheque é do Bandepe, banco estatal que terminou sendo privatizado.
As informações em poder do TCE e da CGU demonstram que não houve licitação para a contratação da KM, que vendeu duas unidades móveis na versão ensino básico, uma escola de informática e outra de balcão de serviços gerais. O governo Arraes alegou que a licitação seria desnecessária porque a KM tinha "notória especialização" na área.
O mesmo argumento de "notória especialização" foi usado pela KM recentemente para não ter que passar por licitações em prefeituras e órgãos públicos, principalmente no Nordeste, para a venda de ônibus de inclusão digital e outras unidades móveis.
CGU aponta irregularidade
Bem antes de ser revelado o esquema da máfia das sanguessugas, a KM chamou a atenção de técnicos da CGU. Isso ocorreu quando os auditores fiscalizavam as contas do município de Caaporã (PB), escolhido por sorteio para verificar a aplicação de recursos federais pelas prefeituras (trabalho que a CGU faz rotineiramente).
Novamente sem licitação, a KM vendeu duas unidades móveis para a prefeitura de Caaporã. Recebeu R$ 186 mil, pagos com verba do Ministério da Saúde. Para dispensar a licitação, a prefeitura se valeu de uma carta de exclusividade expedida em Pernambuco.
A CGU considerou o procedimento irregular. "A carta não abrange o fornecimento de unidades móveis de todos os fabricantes instalados no território nacional. No caso em questão, a exclusividade não ficou caracterizada", concluiu a Controladoria. Os auditores recomendaram no mesmo relatório de inspeção que a modalidade de licitação deveria ser a tomada de preços, exigindo a publicação de edital e concorrência aberta ao público.
Em reportagem publicada no dia 12 de agosto deste ano, o repórter Jamildo Melo, do tradicional Jornal do Commercio, afimra que a carta foi um instrumento fundamental para a KM vender sem licitação seus produtos para órgãos públicos, tornando-se imbatível na região, a ponto de receber o apelido de "Planam de Pernambuco", como declarou o próprio Luiz Antônio Vedoin, sócio da Planam.
A matéria revela que a carta de exclusividade em favor da KM foi apresentada por outra empresa pernambucana, a Guararapes Equipamentos Rodoviários Ltda. O curioso, segundo a reportagem, é que "o sócio majoritário da empresa é o engenheiro Hamilton Guedes de Miranda, que se apresenta como diretor técnico da KM, embora não tenha participação oficial como sócio". Ou seja, um diretor da KM deu para a KM o documento que lhe permitiria atuar como fornecedor de instituições públicas sem precisar de disputar os contratos com outras empresas em certames públicos.
"Questionada pelo JC", diz a matéria, "a diretoria da KM informou que já esclareceu o caso, sem entrar em detalhes. Segundo o advogado, Eduardo Trindade, não há ilegalidade e a empresa já se colocou à disposição do Tribunal de Contas do Estado (TCE). A Junta Comercial de Pernambuco (Jucepe) suspendeu, há dois anos, a forma de expedição das cartas de exclusividade, para evitar que prefeituras pequenas fossem enganadas com a nuance. ‘O órgão público não pode dizer quem é o único fornecedor. Não expedimos mais cartas de exclusividade como se a Jucepe estivesse chancelando essa situação. Informamos que consta um documento nestes termos’, explica o secretário-geral da Jucepe, Roberto Tavares. A carta está guardada desde outubro de 2002 nos arquivos da Jucepe."
A família Campos e a KM
Eduardo Trindade, o advogado da KM citado na matéria, exerce uma função já foi desempenhada por Antônio Campos, irmão do ex-ministro Eduardo Campos. Antônio Campos disse que defendeu a KM de 1999 a 2001. Em entrevista ao Congresso em Foco, ele negou que tenha assessorado a empresa nas áreas pública e de licitações, pautando sua atuação "dentro dos limites da advocacia".
A ligação da família Campos foi apontada pela primeira vez pelo deputado Fernando Gabeira (PV), um dos sub-relatores da CPI dos Sanguessugas. "Em sua lógica do absurdo, o deputado distorce os fatos ao afirmar que a KM forneceu equipamentos e ônibus para a agência Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), ligada à pasta, ou ao Ministério da Ciência e Tecnologia".
De fato, não há provas de que a KM tenha feito qualquer venda direta ao MCT ou à Finep. Mas é público que a prefeitura de Maceió utilizou recursos do ministério para comprar da empresa um laboratório móvel de inclusão digital. Segundo matéria da Folha de S. Paulo do último dia 6 de setembro, o MCT liberou R$ 305 mil para a aquisição da unidade.
"Em apenas um dia, o coordenador-geral de Recursos Logísticos do ministério, Luiz Augusto de Cardoso Pinto, encaminhou ofício para a liberação do dinheiro ao subsecretário de Planejamento, Djalmo de Oliveira Leão, que o repassou ao ministro Eduardo Campos, que autorizou o pagamento à prefeitura", narra o repórter Leonardo Souza.
Mas há grande mistério em relação até mesmo ao controle da KM. Em matéria publicada no último dia 10 de agosto, o Jornal do Commercio forneceu novos elementos intrigantes. Segundo os repórteres Jamildo Melo e Jorge Cavalcanti, a KM tem como sócios formais um pecuarista e um comerciante que são inteiramente desconhecidos nos endereços registrados na Junta Comercial de Pernambuco (Jucepe).
Veja o relato do jornal: "O majoritário, Sebastião Justiniano de Macedo, nascido em Cuité (PB), seria morador da zona rural de Gravatá. Mas, no quilômetro 10 da Estrada de Mandacaru, endereço residencial indicado, ninguém o conhece. O segundo sócio, Domingos Ferreira Gomes, teria nascido no Recife e seria morador da Rua do Progresso, no Bairro de Jardim Jordão, em Jaboatão. No entanto, na rua, localizada em uma comunidade pobre, a vizinhança o desconhece. O número sequer existe, conforme constatou o JC."
De acordo com os jornalistas, essa prática foi utilizada porque os engenheiros e irmãos Carlos Joubert Guedes de Miranda e Hamilton Guedes de Miranda, que se apresentam com o diretores técnicos da KM, não poderiam aparecer como sócios do empreendimento. Isso porque ambos foram sócios da Guararapes Diesel S.A, empresa com "mais de uma centena de processos judiciais e execuções fiscais na Justiça Federal e Estadual, desde 1992", revela a reportagem.
O texto do jornal também traz uma declaração de Antônio Campos: "A Guararapes Diesel passou por dificuldades financeiras e quebrou com os juros altos", justificou o advogado. A empresa vendia no atacado peças e acessórios para veículos da marca Agrale. Entre seus principais credores, segundo a reportagem, estariam o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Nordeste.
Ouvido pelo Congresso em Foco, Antônio Campos não quis comentar a o uso de pessoas desconhecidas como sócios da KM, fato ocorrido quando ele ainda trabalhava para a empresa. E insistiu: "Nunca mexemos na área pública e, sim, na área privada. Não existe nenhuma ilegalidade nisso. Estou no estrito cumprimento da advocacia e qualquer outra ilação seria absurda. Seria calúnia", disse Antônio, que é sócio do escritório Campos Advogados, que existe há 16 anos.
O que diz Eduardo Campos
O Congresso em Foco tentou, sem êxito, falar com o deputado Eduardo Campos. Quem se pronunciou em seu nome foi o assessor de imprensa, Evaldo Costa. Ele rebateu as suspeitas que envolem o relacionamento entre seu chefe e a KM dizendo que os governos de Jarbas Vasconcelos (PMDB) e de Mendonça Filho (PFL), candidato à reeleição e adversário de Eduardo Campos no segundo turno das eleições estaduais pernambucanas, comprou também sem licitação mais de 200 unidades móveis da KM para as secretarias de Saúde, Fazenda e Segurança Pública. "Isso faz parte do embate eleitoral e só vamos falar quando aparecerem os documentos que comprovam as compras na KM feitas pelo governo Jarbas", disse o assessor.
Nádia Ferreira, secretária de comunicação do governo de Mendonça Filho, nega categoricamente a versão de Evaldo Costa. Ela afirmou ao Congresso em Foco que todas as compras feitas com a KM passaram por licitações ou pregões eletrônicos, prática criada ainda no início do atual governo. "O problema não são as compras, mas sim como foram feitas. No governo Arraes não houve licitação, mas no nosso aconteceu esse processo", enfatizou.
Oficialmente, a CGU informa que, por enquanto, existem apenas indícios contra a KM, mas que não existe uma investigação específica, pois o órgão de combate à corrupção no governo federal não teria pessoal suficiente para executar o trabalho.
Mas obtivemos informações de que a CGU já enviou à CPI das Sanguessugas relatório sobre pelo menos duas operações de venda de unidades móveis de saúde realizadas pela KM para as prefeituras de Tamandaré e São José do Belmonte, ambas em Pernambuco.
Em Tamandaré, a unidade móvel médico-odontológica foi comprada na gestão do ex-prefeito e atual presidente da Câmara Municipal de Tamandaré, Paulo Guimarães, do PSB. O veículo foi comprado por R$ 155,5 mil, sendo R$ 144 mil oriundos do Ministério da Saúde e o restante correspondente à contrapartida municipal.
Em São José do Belmonte, a unidade móvel médico-odontológica foi adquirida em 2004 na gestão do ex-prefeito Manoel Gomes de Carvalho Pires, do PFL. O equipamento foi adquirido por R$ 100 mil, sendo R$ 80 mil repassados pelo Ministério da Saúde, ainda na gestão do ex-ministro Humberto Costa (PT-PE). O contrato com a KM foi assinado no dia 7 de março de 2004, 20 dias antes do repasse oficial do convênio com o MS.
Nos dois casos, relatórios da CGU apontam irregularidades nas compras, questionando a inexibilidade de licitação alegada pelas prefeituras para a contratação da empresa. Conforme o relatório, a inexibilidade da licitação pela prefeitura de Tamandaré não tem nenhuma sustentação legal. O documento volta a tratar da carta de exclusividade:
"A exclusividade de fornecimento que fundamenta a contratação tem como base uma carta de exclusividade na qual a empresa Guararapes Equipamentos Rodoviários Ltda. declara tão-somente que a KM Empreendimentos Ltda. é distribuidora exclusiva de seus produtos para todo o Brasil, conforme discorre o gestor municipal em suas justificativas. Para a contratação por inexibilidade, faz-se necessário comprovar que em todo o território nacional não haja outro fornecedor do produto, o que não foi comprovado pela prefeitura Municipal de Tamandaré. No relatório, registramos inclusive que, em consulta à internet, encontramos anúncios de outros fabricantes de unidades móveis médico-odontológicas"
A CGU também considerou indevidos os procedimentos adotados na aquisição feita em São José do Belmonte: "A documentação comprobatória da exclusividade da KM Empreendimentos, enquanto distribuidora do produto licitado, além de inconsistente, não é suficiente para justificar a inexibilidade de licitação, uma vez que não caracteriza inviabilidade da competição pela inexistência de outros fabricantes para o veículo pretendido. Em consulta à internet, encontramos anúncios de outros fabricantes de unidade médico-odontológica, como Saúde sobre Rodas e Motor Trailler do Brasil, por exemplo".
Novas vendas da KM
Com base em argumentação semelhante, mesmo assim, as prefeituras pernambucanas de Paulista e Cabo de Santo Agostinho também dispensaram licitação para comprar unidades móveis da KM Empreendimentos. No caso de Paulista, o prefeito Ives Ribeiro (PPS) pagou R$ 880 mil por dois ônibus. Em Cabo, Lula Cabral (PTB) comprou três unidades, por R$ 750 mil.
De acordo com os técnicos da CGU, o material enviado para a CPI contém informações provenientes de fiscalizações realizadas a partir dos sorteios públicos criados em 2003. "Foi em 2003 que a CGU começou a descobrir a atuação da máfia das sanguessugas. Até então, não se tinha a dimensão das fraudes. Eram casos isolados", revelou um técnico do órgão.
O Congresso em Foco apurou que outros 16 municípios pernambucanos e a própria Universidade de Pernambuco fecharam contratos da mesma maneira com a KM. Em alguns casos, os valores foram descritos em publicações no Diário Oficial do Estado. São eles: Santa Cruz do Capibaribe (R$ 175 mil), Ribeirão (R$ 167 mil), Flores (R$ 260 mil), Bonito (R$ 700 mil), Paulista (R$ 880 mil), Cabo de Santo Agostinho (R$ 750 mil) e Universidade de Pernambuco (R$ 315 mil).
Em relação ao município de Exu, não foi possível apurar nem o valor da compra nem o objetvo do contrato. Nas cidades de Altinho, Cumaru, Orobó, Goiana, Vicência e Caetés, também não foi divulgado o valor pago à empresa, mas constatamos que as compras foram para ônibus de inclusão digital.
Ao fazer uma consulta ao Sistema de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), o Congresso em Foco verificou que não foi só por meio de prefeituras que a KM conseguiu vender seus produtos. Unidades da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) nos estados do Maranhão, Bahia, Minas Gerais e Goiás também compraram veículos especiais da KM.
Entre março e outubro de 2005, a empresa pernambucana recebeu cinco parcelas de R$ 122.395,00 da Funasa nessas unidades. Sobre o assunto, a Funasa informou a este site que não recebeu até o momento da CGU ou do Tribunal de Contas da União "qualquer parecer" sobre possíveis irregularidades. Também esclareceu que os processos são todos anteriores a 2003 (leia a íntegra das explicações da Funasa). Mas uma coisa é certa: se a negociação dos contratos vem de longe, há outros pagamentos feitos durante a administração Lula. O Siafi mostra que houve o último deles, no valor de R$ 46.180,50, foi feito no dia 6 de julho deste ano pela unidade da Funasa no Maranhão.
Eduardo Trindade, atual advogado da KM, declarou ao Congresso em Foco que a empresa está à disposição das autoridades para prestar os esclarecimentos necessários. Ele admitiu que a KM pode ter usado a carta de "notória competência" para vencer licitações nas citadas unidades da Funasa. "Sem dúvida que esse documento é usado quando se participa de licitação", afirmou.
Trintade completou: "O que foi divulgado na imprensa é justificado pelo momento eleitoral por que o país passa, mas até aqui não foi instaurado nenhum inquérito por enquanto". Ao ser confrontado com a informação de que CGU já enviou relatório sobre a atuação da empresa para a CPI em Brasília, o advogado disse que todas as compras foram feitas com base na lei de licitações.
"A lei permite a inexibilidade em casos específicos, como é o caso da KM. Essa carta de notória especialização entre outras coisas", argumentou. "Reafirmamos que não existe nenhuma irregularidade nos veículos comercializados pela KM, que é uma empresa apartidária e que vendeu para vários governos ", acrescentou.
Trindade também justificou as dúvidas sobre quem são e onde vivem o pecuarista Sebastião Justiniano de Macedo e Domingos Ferreira Gomes, os sócios da KM que não foram encontrados nos endereços registrados na Junta Comercial de Pernambuco: "Um deles vai normalmente todos os dias trabalhar na empresa e o outro está doente há mais de um ano. Não fornecemos o endereço deles para confirmar porque eles não querem ser incomodados pela imprensa. Não há nada de estranho nisso", declarou o advogado.
Deixe um comentário