Ricardo de João Braga e João Aurélio Mendes Braga de Sousa *
Fracasso, essa a inescapável conclusão sobre a situação brasileira atual. Será possível aceitar passivamente o retrocesso econômico e social, a total falta de exemplo moral, ético e de responsabilidade vinda da maioria das autoridades? Pode-se ter esperança no futuro quando a política é feita da forma baixa, interesseira e alienada como agora, quando a coisa pública é pilhada sem escrúpulos? Do mapa desse fracasso vale a pena apresentar seus picos e vales.
A inflação em 2015 ignorou a meta do governo de 6,5% e atingiu 10,67%. Maior inflação desde 2002. E segue ruim, pois para 2016 prevê-se novo estouro da meta. A taxa de desemprego para as regiões metropolitanas (PME-IBGE) está dando saltos, passando de 7,6% em janeiro para 8,2% em fevereiro – números muito altos e crescentes. Segundo estimativas, 1,5 milhão de postos de trabalho sumiram no ano passado, totalizando 9,1 milhões de desempregados. Nunca houve tanto desempregado no Brasil.
A atividade econômica brasileira encolheu 3,71% no último ano e a produção industrial diminuiu 7,8% só em 2015, um cenário de catástrofe. Nosso desempenho entre 2015 e 2016, a se concretizarem as previsões, será o péssimo inédito, nunca antes tão ruim. Em dois anos o nosso Produto Interno Bruto (PIB) per capita deverá cair algo próximo a 10%.
Ao mesmo tempo, o Brasil segue ostentando a maior taxa real de juros do planeta. A taxa básica de juros, a Selic, seguirá ao redor dos atuais 14,25%. E os bancos seguem batendo recordes de lucratividade. Itaú-Unibanco, Bradesco e Santander lucraram R$ 47,8 bilhões no ano passado, um crescimento médio de 15% ante 2014, cobrando juros ao redor de 270% ao ano no cheque especial e 430% no cartão de crédito.
Junto com isso, sofremos o maior desastre ambiental de nossa história. O rompimento da barragem de rejeitos de minério da mineradora Samarco, controlada pela Vale do Rio Doce (Vale) e pela BHP Billiton, disparou um tsunami de 55 milhões de metros cúbicos de lama tóxica sobre o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, região central de Minas Gerais. A lama formou um rio de 700 km de dejetos. Foi o maior desastre do gênero da história mundial nos últimos 100 anos, segundo estudo da Bowker Associates. A Vale do Rio Doce conseguiu matar o Rio Doce. A presidente Dilma sobrevoou as áreas atingidas apenas sete dias depois do desastre. O Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) aponta que há mais 24 barragens de alto risco no país.
Quando a natureza age, o Brasil não tem condições de lhe fazer frente. Em 2015, o Ministério da Saúde registrou recorde de casos de dengue no Brasil, mais de 1,6 milhão. Agora têm-se três doenças em um só vetor, pois não conseguimos lidar com ele desde sempre. Aumentam as mortes e as sequelas na população.
No plano político, o partido no poder, o Partido dos Trabalhadores, se desfaz em praça pública. Dois ex-presidentes nacionais presos, dois ex-tesoureiros presos, dois marqueteiros confessaram ter recebido dinheiro ilegal (caixa dois) para tocar campanhas eleitorais, o ex-líder do governo no Senado estava preso até recentemente e o ex-líder do governo na Câmara é alvo de inquérito aberto pela Polícia Federal. E ainda dois ex-membros da Mesa da Câmara encontram-se presos. Dia 17 de março, foi instalada na Câmara de Deputados a comissão especial responsável por analisar o pedido de impeachment da presidente Dilma.
“O PT não tem mais discurso”
O PT foi eleito para acabar com o jogo sujo da política brasileira, mas replicou o que atacava. Depois de uma década no poder, surgem diariamente notícias de corrupção praticadas para enriquecimento pessoal. Os fatos não permitem a antiga escusa de que “foi pelo projeto”. Não há como apelar a “contradições” necessárias a viabilizar as reformas de base, a indulgente justificativa que só cabe na régua frouxa do pragmatismo da realpolitik. Trata-se de enriquecer, e ponto. O PT tem razão em se dizer igual aos outros, mas só ele jogou fora uma oportunidade construída com décadas de militância e esperança.
Uma vez no poder, o partido jamais mostrou disposição para avançar em reformas capazes de sanear nosso sistema político-eleitoral. Neste momento, a militância minguante está ao desabrigo de qualquer proposta transformadora capaz de encorajar utopias, não dispõe de pauta econômico-social apta a enfeixar as forças produtivas num pacto de desenvolvimento nacional. E o pior: o partido no poder só pode debater ética se valendo de cegueira seletiva e contorcionismo verbal. O PT não tem mais discurso.
A conclusão que se sucede é de que fomos traídos, de que o PT conquistou nossa esperança para apenas ter a sua vez no jogo sujo. A frustração represada é tamanha que vulnera a sensatez nacional. Para agir como aldeões com tochas, basta a nação se enlutar pela perda de um herói. O desembarque da tempestade só precisa de um disparo, de um grito, de um estopim, para nos engolfar em mórbido carnaval de ira. Em raros momentos a pátria dependeu tanto dos fiadores últimos da nossa paz, cabe a eles o dever de garantir que esse funesto disparo jamais ocorra.
É possível aceitar passivamente o fracasso coletivo que o Brasil experimenta? Pessoas normais vão dizer que não (normais aqui define os não-sociopatas, em oposição a todos aqueles que tem enriquecido pilhando a sociedade brasileira). Então, por que tanto imobilismo? Por que se aceita passivamente o retrocesso das condições sociais e políticas? Aqui nos deteremos em apenas uma razão: faltam-nos ideias porque o debate intelectual carece de coragem e de atitude.
Como já apontado por Nelson Rodrigues, a elite intelectual brasileira majoritariamente afirma que é esquerda. Notem bem, a elite intelectual é. “É” expressa mais do que uma convicção profunda; “é” identifica, define, fala do ser. Isso diz muito.
Quando as identidades pessoais decorrem de uma ideologia, as opiniões se tornam invulneráveis à razão. O conhecido grito de apoio ao governo chileno de Salvador Allende, “Este es un gobierno de mierda, pero es mi gobierno. Viva el gobierno”, segue há quarenta anos revelando como o sentimento de pertencimento encobre a capacidade de raciocinar. É a alienação dos politizados. E quando sair dessa identidade de carteirinha tem o custo pessoal de abandonar a própria individualidade, quando exige a coragem de repudiar compromisso de alma, de vivenciar a dor de sofrer um naufrágio de si mesmo, então, pensar pode ser um gesto difícil e doloroso como um parto. O problema é que esse parto é necessário para o nascimento da vida intelectual.
A liberdade intelectual, melhor, a liberdade da vida interior, mereceu de Tocqueville uma análise pela perspectiva maior da sacralidade:
“Quanto a mim, duvido que o homem possa suportar ao mesmo tempo uma completa independência religiosa e uma inteira liberdade política: e sou levado a pensar que, se ele não tem fé, tem de servir e, se for livre, tem de crer” (Democracia na América, Vol. 2, Primeira Parte, Cap. 5)
Tocqueville refere-se, ao nosso ver, a valores superiores, que podem ser humanísticos, não necessariamente à fé religiosa em sentido usual. Substituir essa referência superior pela fé em um partido, em um movimento político organizado, subordina a referências limitadas e restritas. Confundir estratégia e tática políticas com visão de mundo e valores é um erro – este é o erro de uma consciência que se subordina a um partido. Ser de esquerda, quando esquerda quer dizer um partido ou um movimento político apenas, é subordinar seus valores mais profundos a movimentos, posições, atitudes e declarações circunstanciais. Não há coerência que resista ou boa-fé que sobreviva. A própria atividade intelectual é ferida de morte nessa subordinação, porque não há liberdade nem amplitude para a crítica e nem oportunidade para o novo.
O que Tocqueville percebeu foi que a fome de absoluto não pode ser saciada no pragmatismo da arena pública, sob pena de multiplicarmos os devotos na política. O devoto político é alguém que tomou o pó rasteiro como sublime altíssimo e a isso se dedica em profissão de fé de uma religião civil. Quanto mais perde o rumo, mais dobra o passo, correndo sempre atrás de um caminhão de mudanças, do qual caiu e que não existe mais. Sofre de uma cegueira auto-imposta pela luz ideológica que assume como credo. Dispara ecos de certezas alheias por falta de coragem de pensar. Devotos políticos são genuinamente perigosos e, genuinamente, nada mais.
Os devotos servem como peles de cordeiros para os lobos de suas convicções políticas. Não se dão conta de que a esperteza dos que enriquecem a olhos vistos se legitima na ingenuidade dos que acreditam cegamente. E não poderão perceber essa relação de machado e sândalo enquanto permanecerem nas fases iniciais do luto (modelo psicológico de Kübler-Ross).
Esclarece-se assim também o segundo sentido da frase “a elite intelectual é de esquerda”. Esquerda aqui são o PT e os partidos satélites do mesmo campo ideológico. A esquerda identificada com as opções políticas da intelectualidade é o movimento imediato, pragmático, que se apresenta no Legislativo e no Executivo na quadra de 2003 até hoje. Nos termos da reflexão de Tocqueville, a esquerda identificada pelos intelectuais está postada no alto de um prédio de três andares, quando deveria ser um balão a flutuar na estratosfera. O partido, ao se legitimar com a secularização da adoração teológica, trocando glória por sucesso, depauperou não só a democracia, mas apequenou o humano dentro daqueles que lhe servem.
Como a política é um fazer no mundo, em que há incerteza sobre causas, modos e razões, o mais adequado para uma atividade intelectual digna do nome – isto é, livre e crítica – deveria ser aferrar-se menos a rótulos e procurar desvendar as substâncias. Um olhar menos sectário sobre a história humana mostra que avanços sociais e culturais não emanam exclusivamente de ideias e ações de esquerda ou de direita. A vida é mais complexa do que os rótulos.
“Se o projeto de esquerda findou, o da direita não surgiu”
Abandonar o PT, para essa maioria intelectual, traz consigo inescapavelmente a entrega do país aos inimigos atávicos, à direita travestida falsamente de social-democrata e aos patrimonialistas fisiológicos. Veja que a grande maioria dessa esquerda sempre demonstrou desconforto com as alianças do PT com o PMDB, este último servindo como o culpado universal para o amontoado de ilusões perdidas e traídas pelo presidente Lula e sua sucessora.
Assim, impedidos de abandonar o PT, a história e a identidade que construíram para si mesmos no debate, sobra-nos o imobilismo daqueles que não querem, aliás, não podem admitir o fracasso do projeto de esquerda (se é que a esquerda merece ser associada de forma tão direta ao PT e seu governo). Seguem apenas marchando pelo itinerário psicológico do luto.
Diante da falta de autocrítica da esquerda e de sua alienação da realidade, a direita apenas se postou no papel reativo de moralista, de defensora dos valores tradicionais da sociedade. Se o projeto de esquerda findou, o da direita não surgiu. Enquanto um teima em não enterrar os mortos, e seguir para novas ações, o outro apenas aguarda como um urubu.
Nossa direita tem a estatura de um sectário ignorante. Reflexões presas ao imediato, conservadores sem visão de tradição, partidos sem nexo programático, políticos sem organização. São humanistas contra o amor, cristãos que criminalizam crianças. Advogam liberdades individuais cultuando caciques; são liberais viciados em benesses estatais, bancam a pauta pseudo-moral com dinheiro cuja origem é exatamente aquela que pensamos que seja. Ridículos aquém do humor.
Nossa direita discute direitos humanos sem compreender as ideias de liberdade e liberalismo. Por isso, é uma direita de “casa grande e senzala”, não uma direita moderna. Não discute programas sociais que gerem autonomia (que são antes de mais nada bom ensino fundamental, médio e superior), não tem coragem de enfrentar a reforma da Previdência, porque no fundo quer defender seus privilégios. Critica programas como o Bolsa Família como se fosse possível não perceber a nossa absurda dívida social. Nossa direita oferece respostas ilusoriamente simples para problemas realmente complexos.
Apesar de grandes nomes individuais, como José Guilherme Merquior, o pensamento de direita não tem sede prática no Brasil. Há poucos porta-vozes na arena pública, nas discussões a céu aberto. Na política formal, não há propostas. Faz-se só atacar o PT com um discurso ralo de moralidade, o que é hipócrita e promete apenas um vazio.
Sinal claro dessa incipiência intelectual, da ausência de um debate rico entre esquerda e direita é a longevidade de barreiras ao crescimento do Brasil, que provavelmente é o país com mais oportunidades de investimento no mundo. Não há um projeto de liberalismo econômico, com manejo realista das contas públicas, implicado na liberação da atividade empresarial com quebra de monopólios, concessões de serviços públicos e criação de incentivos à inovação e ao empreendedorismo. Sequer se consegue explicitar que um projeto econômico assentado nos marcos do capitalismo pode sim ser vetor de desenvolvimento inclusivo, ambientalmente sustentável e plenamente forjado no reconhecimento do papel estratégico do Estado na coordenação econômica vocacionada à efetivação do interesse nacional. Exemplos disso não faltam no mundo, mas nós teimamos em ignorá-los.
Nossa direita sequer enxerga essa discussão. Talvez não enxergue também as forças políticas que apoia e as que combate.
O imobilismo é o ensurdecimento do debate, impossibilita a qualquer dos lados evoluir. Isso se deve a uma esquerda que vela um corpo em putrefação a céu aberto e a uma direita que espera que também aquele que vela morra e lhe entregue o espólio do Estado.
Ambos os lados parecem presos a rótulos e incapazes de notar que a real separação brasileira é entre os que estão e os que não estão sujeitos às leis. E nisso reside o mérito histórico da Operação Lava Jato, de levar viço aos alicerces da democracia e finalmente nos igualar perante as leis. E com isso descortinar um futuro pronto a radicalizar a democracia. Radicalizar a democracia num Brasil a ser unido numa esperança que não é espera, mas é combustível da vida. Radicalizar a democracia atentos ao que as ruas afirmam – a esperança não é ninguém; a esperança é todo mundo.
Enquanto não houver coragem para abandonar um projeto fracassado e atitude para criar novas ideias, o Brasil permanecerá no imobilismo, pois a raiz de toda ação de sucesso são ideias adequadas. É preciso pensar em mudar. É preciso pensar para mudar.
* Ricardo de João Braga é doutor em Ciência Política e servidor público. Engenheiro civil e bacharel em Direito, João Aurélio Mendes Braga de Sousa – joao.aurelio@gmail.com – presidiu a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (Anesp).
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