Em meio às campanhas eleitorais a todo vapor, deputados e senadores têm 90 dias – prazo iniciado em 24 de junho – para votar um projeto de lei que mexe com interesses financeiros e de culturas tradicionais. Trata-se do projeto que, segundo o poder Executivo, pretende facilitar a realização de pesquisas com base em recursos genéticos da biodiversidade brasileira, como os microorganismos, plantas e raízes. Também de acordo com o Executivo, se a proposta, que tramita em regime de urgência constitucional, for aprovada, a nova lei vai evitar a biopirataria.
Uma das medidas previstas é a suspensão de R$ 221,6 milhões em multas já aplicadas contra pesquisadores e empresas por acesso ilegal ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado e por descumprimento no que tange à repartição de benefícios. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) diz que só será beneficiado com a medida quem “assinar um termo de compromisso” e “adotar medidas específicas”.
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Mesmo com Copa do Mundo e recesso parlamentar, deputados já apresentaram mais de cem emendas ao texto, o que confirma potencial polêmica em torno do projeto. A bancada ruralista vê potenciais prejuízos ao agronegócio e pretende mudar partes do texto. O presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), já criou uma comissão especial para analisar o projeto que, se não for aprovado dentro dos 90 dias, passará a trancar a pauta da Casa.
As questões envolvidas não são simples. A regulamentação do acesso ao patrimônio genético é uma demanda de pesquisadores e empresas, que reclamam do excesso de burocracia para usar recursos da biodiversidade. Mas, por outro lado, o projeto afetará os detentores do chamado conhecimento tradicional, basicamente povos indígenas e quilombolas.
Saulo Feitosa, um dos diretores do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), considerou “surpreendente” o envio do projeto ao Congresso. Isso porque, segundo ele, as comunidades tradicionais não participaram de discussão sobre a proposta. “E, em caráter de urgência, a tramitação [no Congresso] vai ser atropelada, o que também impede a participação dos principais afetados, as comunidades diretamente envolvidas”, disse ele ao Congresso em Foco. “Há questões muito complexas nesse projeto”. Ele reclamou que o tema não foi submetido a uma comissão de política indigenista do Ministério da Justiça, formada por representantes dos índios e de órgãos governamentais, além de organizações indigenistas.
“O Congresso anda a passos lentos em ano eleitoral. Não estávamos esperando movimentação ainda neste ano. É estranho que o governo não tenha submetido a discussão à comissão nacional de política indigenista, onde se discute os interesses dos índios. O projeto não foi discutido por essa comissão e em nenhuma instância do movimento indígena”, criticou Feitosa.
Mas a reclamação não se restringe à suposta pressa do governo. Na avaliação do Cimi e da promotora Juliana Santilli, do Ministério Público do Distrito Federal (MPDF), a proposta tem falhas significativas em relação à proteção dos direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais.
Pirataria legitimada
“Está claro que não há intenção de favorecer as comunidades indígenas e as populações tradicionais. Não há mecanismo nenhum de proteção a esses conhecimentos. Há um caminho para acessar, mas não está claro como vai se dar a proteção”, afirmou Feitosa. Ele argumentou que, “uma vez que o conhecimento é acessado, ele é praticamente usurpado das comunidades que o produziram”. Por isso, segundo ele, o texto, se aprovado como está, vai legitimar a biopirataria. “O texto é vago, não dá garantias”.
Atualmente, os pesquisadores têm de pedir uma autorização prévia para trabalhar com recursos genéticos brasileiros, o que demora de cinco meses até oito anos. Se as novas regras forem aprovadas pelos congressistas, pesquisadores e empresas terão apenas que fazer um cadastro. Mas ainda precisarão de autorização para comercializar produtos finais, como medicamentos e cosméticos.
Compromissos
A proposta do governo prevê mudança em relação a multas já aplicadas para pesquisadores e empresas. O Ministério do Meio Ambiente informou ao Congresso em Foco que o montante de R$ 221,6 milhões em multas foi aplicado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por acesso ilegal ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado e por descumprimento no que tange à repartição de benefícios da exploração da biodiversidade. Foram lavrados 471 autos de infração nos últimos anos. Hoje, não existe o crime de biopirataria na legislação brasileira, mas uma “infração administrativa” prevista em um decreto de 2005.
O ministério nega que se trata de uma anistia, que, segundo o órgão, ocorreria se houvesse o esquecimento do fato ou dos fatos criminosos que o poder público teve dificuldades para punir ou avaliou que seria prudente não punir. Em nota, diz que o projeto de lei propõe a “regularização”.
Ou seja, primeiro, o governo oferece às empresas e pesquisadores a suspensão de todas as multas para quem fizer um cadastro e se comprometer a fazer a correta divisão dos benefícios da exploração do meio ambiente com a comunidade. “O Ibama suspenderá a cobrança da multa se o infrator assinar um termo de compromisso com o ministério e adotar medidas específicas”, consta da nota.
Depois, se as medidas exigidas forem integralmente cumpridas, as infrações serão canceladas ou reduzidas em 90%. “Se o acordado não for cumprido, o Ibama cobrará as multas”, acrescentou o MMA. O governo poderá suspender multas aplicadas até a entrada em vigor da nova lei. Ou seja, é possível incluir futuras infrações e que ainda não aconteceram ou foram descobertas pelos fiscais.
Para Feitosa, as “multas flexibilizadas perdem efeito intimidatório”. Já a promotora afirmou que o projeto poderia prever anistia para instituições que agiram de boa-fé, devido às divergências e ambiguidades na interpretação da atual legislação. “Mas não de forma tão ampla como foi feito”.
Divisão
De acordo com a proposta, quando a pesquisa se tornar um produto, 1% dos lucros deverá ser direcionado para um fundo nacional e, posteriormente, caberá à União fazer a distribuição entre as comunidades detentoras do conhecimento tradicional. A repartição dos ganhos também poderá ser feita de forma não monetária. Por exemplo: uma empresa que desenvolve um produto com base no conhecimento de uma comunidade poder construir um hospital ou escola no local.
Sócia-fundadora do Instituto Socioambiental (ISA) e professora direito ambiental, a promotora Juliana Santilli avalia que um dos “principais problemas” é que o projeto estabelece que a modalidade de repartição de benefícios em decorrência da utilização dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais seja escolhida exclusivamente pelos usuários [empresas ou instituições de pesquisas], “sem que os provedores de tais recursos participem da decisão”. Segundo ela, a convenção da diversidade biológica estabelece o princípio de que o acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados depende de “termos mutuamente acordados” entre os provedores, que são os países de origem e as comunidades locais, e os seus usuários.
“A previsão do projeto, de que cabe exclusivamente aos usuários escolher a modalidade de repartição de benefícios, é inadmissível e viola os princípios da convenção da diversidade biológica”, disse Santilli. A convenção é um tratado da Organização das Nações Unidas (ONU) e é considerada um dos principais instrumentos internacionais relacionados ao meio ambiente.
Outra questão considerada negativa pela promotora é que o projeto não prevê a participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais no conselho de gestão do patrimônio genético, o CGEN, ligado ao Ministério do Meio Ambiente. Segundo ela, a composição do conselho deverá ser definida na lei e não por regulamento, como previsto no projeto. “Isso não pode ser relegado a um decreto. O CGEN tem diversas atribuições importantes, como a de definir diretrizes para a aplicação dos recursos destinados ao fundo nacional de repartição dos benefícios. A participação de povos indígenas e comunidades tradicionais, de organizações da sociedade civil, de instituições de pesquisa científica e de empresas de biotecnologia, com direito a voz e a voto, é fundamental para que o conselho possa atuar como instância de mediação de interesses potencialmente conflitantes e para que haja efetivo controle social sobre a sua atuação”.
Ainda conforme a avaliação da representante do MP, a definição de uma alíquota única para repartição monetária de benefícios é também um ponto negativo. “A legislação deve ter flexibilidade para assegurar uma negociação simétrica entre usuários e provedores em torno dos valores. Também considero negativo que o projeto preveja a não obrigação de repartição de benefícios decorrente do uso comercial de conhecimentos tradicionais associados por microempresas ou microempreendedores”, acrescentou.
O projeto de lei também diz que “a concessão de direito de propriedade intelectual pelos órgãos competentes sobre processo ou produto obtido a partir de acesso a patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado fica condicionada ao cadastramento ou autorização, nos termos desta lei”. Contudo, para a promotora, o simples cadastramento não é suficiente.
“Qualquer concessão de direito de propriedade intelectual deve estar condicionada à prévia autorização do CGEN, após consulta às comunidades detentoras de recursos e conhecimentos utilizados para o desenvolvimento de novos produtos, passíveis de serem patenteados”, disse Santilli. Para ela, o projeto deveria incluir a obrigação de que toda vez que fossem solicitadas patentes ou outros direitos de propriedade intelectual sobre processos ou produtos desenvolvidos a partir do acesso a recurso genéticos e/ ou conhecimentos tradicionais associados, o órgão competente deveria exigir dos requerentes a comprovação da origem lícita de tais recursos e/ ou conhecimentos.
Agricultura
Por falta de consenso entre os ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, questões referentes à agrobiodiversidade foram excluídas do projeto de lei, o que, na avaliação da promotora Juliana Santilli, configura uma das falhas mais graves. “A agrobiodiversidade inclui todos os componentes da biodiversidade que têm relevância para a agricultura e alimentação”.
Mas, apesar da exclusão, parlamentares ruralistas já estão reagindo ao texto do projeto. Dizem que, se aprovado com a redação atual, parte das empresas do setor agropecuário será obrigada a repartir benefícios com o governo e com o proprietários das áreas de exploração dos recursos, como comunidades indígenas e quilombolas. A ideia é que fiquem apenas as indústrias de fármacos e comésticos.
Contatado pelo Congresso em Foco, o MMA não deu retorno, até o momento, sobre as críticas ao projeto. O site também procurou outras entidades ligadas ao tema do projeto. O Greenpeace disse não ter embasamento para se posicionar em relação à proposta. O Instituto Socioambiental e a WWF Brasil afirmaram que estão estudando o projeto. O Instituto de Estudos Socioeconômicos não deu retorno.
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