Em fevereiro de 2008, o comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, realizou uma cirurgia para implantar uma lente intraocular no olho esquerdo. A cirurgia rendeu-lhe uma acusação de corrupção. Ele foi acusado de ter ganho como cortesia a lente e o procedimento médico para implantá-la, realizado pelo Centro Brasileiro da Visão, em Brasília, no valor de R$ 3 mil. Credenciado há mais de 15 anos junto ao Fundo de Saúde do Exército (FUSEx), depois da cirurgia do general, o Centro Brasileiro de Visão teve seu contrato renovado, com cláusulas mais vantajosas.
Leia outros temas de destaque hoje no Congresso em Foco
A denúncia contra o comandante do Exército foi feita pelo sargento Fernando Alcântara, e gerou um procedimento preparatório na Procuradoria da República no Distrito Federal, que iniciou a investigação em 5 de abril de 2010. Em 28 de maio de 2010, a procuradora enviou um ofício ao ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim, para pedir informações sobre os fatos relatados. O ministério tinha 30 dias para responder, mas o ex-ministro só encaminhou as informações em 26 de agosto do mesmo ano. A conclusão do ministro foi de que as informações eram infundadas e careciam de comprovação. A procuradora, então, arquivou o processo em 28 de setembro de 2010, por falta de provas suficientes que pudessem condenar o general.
Leia também
No mesmo documento apresentado como resposta, o ex-ministro da Defesa solicitou à procuradora que determinasse a apuração de responsabilidade em decorrência de oferecimento de acusações infundadas e falsas. O ofício que embasa a resposta do ministro foi assinada pelo General-de-Divisão Joaquim Silva e Luna, chefe do Gabinete do Comandante do Exército, subordinado direto do general Enzo Peri.
Para o autor da denúncia, a forma como a procuradora agiu na investigação dá margens para concluir que o procedimento não foi bem apurado. “Não houve inquérito policial, não existe nenhuma peça que se encontre de que a Polícia Federal foi chamada pela procuradora Raquel Branquinho, como deveria ser, para que realmente investigasse por meio de inquérito policial. Então são, dois pesos e uma medida. Se existe a capacidade de determinar que haja uma investigação contra quem prestou a notícia-crime, você deveria ter tomado o cuidado de investigar por meio de inquérito policial também contra aquele que foi acusado de cometer o crime. E isso não ocorreu no caso. Ou seja, o que leva a crer que houve uma articulação política”, afirma Fernando.
“Provas suficientes”
Para Raquel Branquinho, o Exército apresentou provas suficientes para a conclusão do procedimento e a determinação de seu arquivamento. Em sua defesa, o Exército garante que as lentes foram pagas pelo convênio de acordo com todas as regras.
Ocorre que, apesar das alegações do Exército e das conclusões de Raquel Branquinho, houve a admissão do próprio gerente de relacionamento do Centro Brasileiro de Visão, Leonardo Carvalho Aguiar, de que a lente e o procedimento cirúrgico foram um presente. Em 2008, foi gravada uma conversa de Leonardo com o subtenente Davi Reis. Apresentando-se como funcionário do gabinete do comandante do Exército, Davi Reis perguntou: “Vocês fizeram uma cortesia para o general Enzo?”. E Leonardo respondeu: “Foi”. Em seguida, Leonardo diz que a razão para o agrado foi o relevante cargo do general.
Ouça aqui o áudio da conversa entre Leonardo e Davi Reis
Entenda a cirurgia
O general Enzo Peri realizou uma facectomia, procedimento que consiste na extração do cristalino doente e posterior colocação de uma lente artificial em seu lugar. A lente implantada é da empresa Alcon, modelo WFIQ, que consta na tabela de preços do CBV com o valor de R$ 3 mil. Segundo o gerente, esta não é a lente mais cara que existe, mas é a que tem maior valor na clínica. Ele explica que o tipo de lente a ser usada depende das necessidades do paciente, que devem ser atestadas por um médico.
A lente em questão diminui a ocorrência de problemas visuais decorrentes de alterações na córnea. Ela é indicada para pacientes que apresentam irregularidades na córnea, astigmatismos que não podem ser corrigidos por uma lente intra-ocular, pacientes previamente submetidos a cirurgias refrativas e pacientes que tenham problemas de visão em baixa luminosidade. Uma lente normal possui apenas proteção para raios ultravioletas (UVA e UVB).
Ao longo da conversa, Reis diz que a razão da conversa era entender como o procedimento cirúrgico foi feito, pois outros generais queriam usufruir da mesma benesse. Segundo ele, dentre os que se sentiram desprestigiados estava o general Adhemar da Costa Machado Filho, que à época era o Comandante Militar do Planalto. Ele teria pleiteado a mesma cirurgia, mas não foi atendido. Davi Reis afirma que Adhemar ficou sabendo da cirurgia e quis uma também. Além dele, o ex-ministro do Superior Tribunal Militar, general Max Hoertel, também teria pedido tal “cortesia”.
Sobre isso, Leonardo afirma: “Rapá (sic), mas será que isso não vai ficar ruim para a gente? Agora todo general vai querer a lente agora não, cara? De cortesia? Quê isso, se todo mundo querer (sic) usar, ótimo”.
O general Adhemar é o mesmo que fez declarações homofóbicas contra o casal de sargentos Laci Marinho de Araújo e Fernando Alcântara. Ao longo da conversa, o militar ressalta que é contra a instalação de inquéritos para investigar denúncias de corrupção, “porque fugiriam ao seu controle”. Ele também afirma sentir saudades dos tempos da ditadura militar em que se podia empregar métodos nada ortodoxos, como invadir o apartamento do casal, sem mandado judicial, “para dar uma surra”.
Militar pode ser expulso por homofobia de general
De acordo com a conversa, o presente era de conhecimento de vários oficiais altamente graduados da força terrestre. “Pois é, realmente… porque todo mundo está sabendo, né (sic)?”, afirma Leonardo na conversa.
“Os convênios não autorizam”
Leonardo revela ainda que o Fundo de Saúde do Exército cobre a implantação de lentes intra-oculares convencionais no valor aproximado de R$ 300. O gerente do centro oftalmológico explica ainda como foi feita a negociação com o Exército para incluir os procedimentos mais caros no rol de procedimentos do convênio militar. Ele diz: “Na época, a gente ofereceu esse pacote para o coronel Guedes, que tava lá, a gente tentou formalizar o pacote desde a lente básica até a lente mais superior. Dependendo do fato da necessidade do paciente, então o paciente ia ser encaminhado pro médico do Fusex pra ver se realmente tinha necessidade de usar aquela lente melhor, lente de primeira linha. E aí, ele retornaria e diria ‘tudo bem, esse daqui tem condições, perfil para utilizar essa lente’, ou o próprio convênio, o próprio Fusex autorizava esse material. Aí não sei em que situação tudo isso poderia chegar, se a gente poderia tentar continuar com essa proposta, ou não, não sei se há interesse. Porque realmente, é uma coisa superior, isso ultrapassa aquilo que normalmente os convênios pagam. O convênio paga aquilo que é necessário pro paciente. Então essas lentes são mais que necessárias, ela dá um conforto maior, um luxo maior, então é uma coisa mais sofisticada, e normalmente os convênios não autorizam. Aí teria que sentar para negociar”.
No final da conversa, o subtenente Reis explica que o general Adhemar junto com outros oficiais fez uma visita ao CBV meses antes da cirurgia ser realizada. Na época, o centro mantinha contrato de prestação de serviços com o Exército, mas passava por um período de diferença de contrato, porque o CBV tinha valor mais alto que os demais centros credenciados. A comitiva foi conhecer os serviços que o centro oferecia. Na época, o convênio foi renovado e o CBV conseguiu inserir procedimentos que não estavam previstos no contrato.
Motivações para a denúncia
Apesar de ter informado que era funcionário do gabinente do comandante do Exército, Davi Reis servia no Batalhão de Polícia do Exército de Brasília e é ex-integrante do quadro de funcionários do Hospital Geral de Brasília (HGeB), atual Hospital Militar de Área de Brasília.
A denúncia veio à tona quando o subtenente Davi Reis revelou o esquema ao responder a uma série de inquéritos instaurados pela Justiça Militar. Ele estava sendo investigado por ter gravado uma conversa sua com o general Adhemar, na qual o superior faz declarações homofóbicas contra o casal de sargentos gays Laci Marinho de Araújo e Fernando Alcântara. Em um dos inquéritos, Davi foi acusado de corrupção passiva e enriquecimento ilícito. Ele era integrante de um time de futebol de funcionários do Hospital Militar e teria pedido patrocínio para a compra de material esportivo e camisetas para o grupo.
“Eles consideraram corrupção esse pedido de patrocínio, mas não há nada de irregular nisso. Eu não pedi em nome da instituição, eu não usei o meu cargo para pedir nada. Simplesmente entrei em contato com alguns patrocinadores para saber quem tinha interesse. E para nós, o patrocínio só servia se fosse com propaganda, porque se não, fica inexplicável. Diante disso, foi nomeado um capitão, que foi transferido do Centro de Inteligência do Exército para a PE [Polícia do Exército] com o objetivo específico de presidir o inquérito. Esse cara devastou a minha vida toda, mas o inquérito é totalmente irregular, ilegal, cheio de parcialidade, obtenção de prova por meio ilícito, tudo irregular. Mas sabendo da maldade, da parcialidade, do direcionamento que ele estava dando, eu tinha conhecimento que o comandante do Exército, general Enzo, ele tinha recebido de cortesia essa lente de R$ 3 mil. Então, fui atrás da história, porque ele receber uma lente desse valor não é corrupção, mas eu pedir patrocínio para o time de futebol é?”, questiona Davi Reis, em entrevista ao Congresso em Foco.
Leia também:
Ministério Público arquivou denúncia
Saiba mais sobre o Congresso em Foco (2 minutos em vídeo)
Deixe um comentário