Alvo de representações no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a desembargadora Marilia de Castro Neves Vieira, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), pediu desculpas “à memória” da vereadora fluminense Marielle Franco (Psol), executada no Rio de Janeiro em 14 de março, com “reflexão” estendida ao deputado Jean Wyllys (Psol-RJ). Acionada no CNJ por ter divulgado mentiras sobre a parlamentar, a quem chamou de “cadáver comum” e acusou de envolvimento com bandidos, Marilia publicou uma carta (íntegra abaixo) dirigida à professora Débora Araújo Seabra, de 36 anos, que é portadora de Síndrome de Down e há 13 dá aulas em um colégio particular em Natal (RN). Em outra postagem na rede social, a magistrada havia questionado a capacidade de Débora em lecionar.
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Depois de ofendida, Débora escreveu uma carta para a desembargadora por meio da qual responde qual é sua capacidade. “Eu ensino muitas coisas para as crianças. A principal é que elas sejam educadas, tenham respeito pelas outras, aceitem as diferenças de cada uma, ajudem a quem precisa mais. […] O que eu acho mais importante de tudo isso é ensinar a incluir as crianças e todo mundo pra acabar com o preconceito, porque é crime”, escreveu Débora em 19 de março último.
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Agora, Marilia se diz arrependida, pede desculpas também à professora e diz ter aprendido com o episódio. “Estou escrevendo para agradecer a carta que você me mandou e lhe dizer que suas palavras me fizeram refletir muito. Bem mais do que as centenas de ataques que recebi nas últimas semanas. Desculpe a demora na resposta, mas eu precisava desse tempo. Tenho sofrido muito desde que fui atropelada pela divulgação de comentários meus, postados em grupos privados – restritos a colegas da magistratura. Mas alguém resolveu torná-los públicos. Alguns haviam sido postados há tanto tempo que eu nem me lembrava deles. A repercussão foi imensa”, diz a magistrada.
Na postagem que lhe rendeu as representações no CNJ, Marilia classifica Marielle Franco como “cadáver comum” e a acusa de engajamento com o crime. Além disso, Marilia acusa a vereadora do Psol de ter sido eleita pelo Comando Vermelho, uma das principais facções criminosas do país, e depois ter descumprido “‘compromissos’ assumidos com seus apoiadores” – uma fake news (notícia falsa) que ganhou as redes sociais após a execução da vereadora. Como reação a estas mentiras, um site foi criado para repôr a verdade e rebater cada uma delas.
Há mais de um mês em destaque, os comentários de Marilia tiveram repercussão nacional e revoltaram setores da sociedade, inclusive no âmbito da magistratura (leia mais abaixo). Em seu blog no jornal O Globo, o colunista Ancelmo Gois faz menção à carta da desembargadora e faz a seguinte anotação: “Há quem acredite que a magistrada escreveu a mensagem apenas para amenizar o problema enfrentado no CNJ. Como foi publicado aqui na coluna há uma operação ‘abafa’ para que ela não seja punida. A conferir”. Ancelmo lembrou ainda que a desembargadora alterou a foto de seu perfil no Facebook.
Homofobia
Na menção a Jean Wyllys, em que a acusam de homofobia, Marilia diz o seguinte, sempre naquela rede social – a desembargadora, aliás, parece ter como alvos preferenciais os parlamentares do Psol. “Eu, particularmente, sou a favor de um ‘paredão’ profilático para determinados entes… O Jean Willis [sic], por exemplo, embora não valha a bala que o mate e o pano que limpe a lambança, não escaparia do paredão…”, escreveu a juíza. Seria apenas mais um caso de simpatia por violência não fosse o diálogo que se seguiu ao post.
“Concordo, nesse caso teria que ser via TSE [Tribunal Superior Eleitoral], pra evitar os Temer da vida…”, escreve um interlocutor, acrescentando conteúdo preconceituoso. “Quanto ao paredão, de costas, ele amaria.” Diante da ressonância, Marilia continuou: “Tenho dúvidas… O projétil é fininho…”, acrescentou, adicionando ao comentário uma figura (emoji) em gargalhada.
Histórico
Em 31 de março, o Congresso em Foco mostrou que Marilia tem causado polêmica no Rio de Janeiro há pelos menos 32 anos, quando foi presa por um capitão do 6º Batalhão de Polícia Militar. O caos foi noticiado numa época em que o jornalismo impresso era a grande fonte de informações do país – memes, gifs (vídeos de poucos segundos) e virais ainda sequer haviam sido imaginados.
Segundo matéria publicada pelo Jornal do Brasil em 27 de dezembro de 1986, Marilia, então promotora de Justiça, foi detida por ter estacionado seu carro irregularmente, segundo seu acusador, enquanto esteve em um salão de beleza. Depois, protagonizou uma verdadeira disputa de versões com o policial militar, que seria preso e processado por abuso de autoridade e lesão corporal. O capitão se disse injustiçado, alegou que apenas cumpriu sua função e disse que Marilia se negou tanto a retirar seu carro da vaga indevidamente ocupada quanto recusou apresentar a habilitação de motorista e a própria identidade.
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Como também mostra a reportagem, a postura da desembargadora tem envergonhado colegas de toga, embora seja raro que um deles venha a público reprovar a conduta dela ou ao menos comentar o assunto. Mas um deles, sob condição de anonimato, relatou ao Congresso em Foco o constrangimento e a vergonha que, internamente, Marilia tem provocado na categoria. Membro da diretoria de uma das dezenas de associações de magistrados, o juiz diz que Marilia não tem equilíbrio para a judicatura.
“No exercício da atividade e em suas expressões, principalmente nas redes sociais, ela demonstra muita exacerbação. Ela extrapola todos os limites do bom senso. É uma pessoas que não demonstra equilíbrio para o exercício da função”, declarou o magistrado, acrescentando que Marilia é alvo de queixas por seu comportamento na própria turma que compõe no TJ-RJ, e que sua postura tem causado mal-estar mesmo antes das descobertas das postagens no Facebook.
Na época em que reportagem foi publicada, o site entrou em contato com o gabinete da desembargadora no TJ-RJ, por telefone e e-mail, para que ela se posicionasse sobre as acusações que tem recebido e sua situação no CNJ. Depois de alguns dias sem resposta, a assessoria entrou em contato por e-mail para pedir a divisão dos assuntos em perguntas. Mais de um mês se passou sem que fossem enviadas as respostas da desembargadora.
Leia a íntegra da carta de Marília Castro Neves:
“Prezada professora Débora,
Estou escrevendo para agradecer a carta que você me mandou e lhe dizer que suas palavras me fizeram refletir muito. Bem mais do que as centenas de ataques que recebi nas últimas semanas. Desculpe a demora na resposta, mas eu precisava desse tempo.
Tenho sofrido muito desde que fui atropelada pela divulgação de comentários meus, postados em grupos privados –restritos a colegas da magistratura. Mas alguém resolveu torná-los públicos. Alguns haviam sido postados há tanto tempo que eu nem me lembrava deles. A repercussão foi imensa.
Desde então, decidi me recolher. Chorei, fui abraçada e pensei muito.
E, de tudo que li e ouvi a meu próprio respeito, foi de você, de quem em um primeiro momento duvidei da capacidade de ensinar, que me veio a maior lição: a de que precisamos ser mais tolerantes e duvidar de pré-conceitos.
Minhas posições pessoais jamais interferiram nas minhas decisões, conhecidas por serem técnicas e, por isso mesmo, quase sempre acompanhadas unanimemente pelos meus colegas de turma julgadora.
Hoje, contudo, percebi que, mesmo quando meu corpo despe a toga, a mesma me acompanha aonde eu for.
As opiniões pessoais de um magistrado, uma vez divulgadas, sempre terão peso, pouco importando ao tribunal das redes sociais que tenham elas sido ditas em caráter público ou privado e que opinião não seja sentença.
Magistrados também erram e, quando o fazem, incumbe-lhes desculparem-se. Esta carta é justamente isso: um pedido de perdão.
Perdão, Débora, por ter julgado, há três anos atrás, ao ouvir de relance, no rádio do carro, uma notícia na Voz do Brasil, que uma professora portadora de Síndrome de Down seria incapaz de ensinar. Você me provou o contrário.
Aproveito o ensejo para também me desculpar à memória da vereadora Marielle Franco por ter reproduzido, sem checar a veracidade, informações que circulavam na internet. No afã de rebater insinuações, também sem provas, na rede social de um colega aposentado, de que os autores seriam policiais militares ou soldados do Exército, perdi a oportunidade de permanecer calada. Nesses tempos de fake news temos que ser cuidadosos.
Estendo esta reflexão ao deputado Jean Wyllys. Sempre me oporei às suas ideias e às do PSOL, nada mudará isso, mas é evidente que não desejo mal a ninguém.
Obrigada, Débora, por ter me ensinado tanto.
Marilia de Castro Neves Vieira”
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