Edson Sardinha*
Passados 268 dias desde a entrevista bombástica do então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) à Folha de S. Paulo, a maior crise do governo Lula rendeu mais de 30 baixas na administração federal, derrubou a cúpula do PT e pôs pra fora da Câmara seis dos 19 deputados acusados de envolvimento no escândalo do mensalão. Mais do que isso: expôs a céu aberto o esgoto do financiamento de campanha eleitoral no Brasil e das relações pouco límpidas do Congresso com o Executivo.
A denúncia, feita por Jefferson, de que parlamentares estariam votando com o governo em troca de dinheiro também provocou a abertura de duas CPIs pelo Congresso e dois inquéritos – um pela Polícia Federal e outro pelo Ministério Público Federal –, que devem pedir o indiciamento de mais de 30 pessoas, entre políticos, lobistas, empresários, servidores públicos, publicitários e operadores de valores.
No rol das irregularidades já constatadas pelas investigações, despontam os crimes eleitorais, de sonegação fiscal, corrupção passiva e ativa, prevaricação, formação de quadrilha, tráfico de influência, lavagem de dinheiro e fraude em processo licitatório. Apesar da identificação desses atos ilícitos, ninguém foi preso ou condenado pela Justiça até agora.
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Julgamento político
Apenas dois deputados receberam a condenação política até o momento: Roberto Jefferson e José Dirceu (PT-SP). E por motivos aparentemente contraditórios. O petebista por não ter comprovado a existência do esquema que denunciou, ou seja, de que o governo teria comprado, com o pagamento de mesada, o apoio de parlamentares da base aliada em votações importantes no Congresso. Já o petista, depois de cair da Casa Civil, perdeu o mandato na Câmara sob a acusação de ter comandado todo o esquema de cooptação de parlamentares.
Entre os deputados acusados de envolvimento com o mensalão, quatro renunciaram ao mandato para escapar do processo de cassação e da perda dos direitos políticos: Paulo Rocha (PT-PA), Valdemar Costa Neto (PL-SP), José Borba (PMDB-PR) e Carlos Rodrigues (PL-RJ). Desses, só o último não receberá aposentadoria da Câmara. Todos podem disputar as eleições de outubro e voltar à Casa no próximo ano. Dois foram inocentados definitivamente pelos colegas: Sandro Mabel (PL-GO) e Romeu Queiroz (PTB-MG).
Outros seis aguardam a decisão do Plenário: João Magno (PT-MG), Professor Luizinho (PT-SP), Roberto Brant (PFL-MG), Wanderval Santos (PL-SP), Pedro Corrêa (PP-PE) e Pedro Henry (PP-MT). Entre eles, só Henry tem o parecer do Conselho de Ética pela absolvição. Nos demais casos, a recomendação é pela perda do mandato. O Conselho ainda vai examinar os processos contra cinco deputados: José Mentor (PT-SP), Josias Gomes (PT-BA), João Paulo Cunha (PT-SP), José Janene (PP-PR) e Vadão Gomes (PP-SP).
Mensalão
A 20 dias da conclusão de suas investigações, a CPI dos Correios ameaça lançar por terra a principal linha de defesa dos cassáveis: a de que o dinheiro a eles repassado pelo empresário Marcos Valério Fernandes de Souza, a pedido do ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, foi para saldar dívidas de campanha eleitoral.
Segundo o presidente da comissão, o ex-líder do PT no Senado Delcídio Amaral (MS), o cruzamento de informações concluído recentemente por técnicos da CPI deve confirmar que há coincidência entre as datas dos saques, as votações e o movimento de migração partidária.
"Fizemos uma filtragem em todas as informações e agora tem muito mais consistência (a tese do mensalão). É triste", afirmou. A existência do mensalão também é confirmada pelo relator, deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR). “O estudo está praticamente concluído e há realmente uma coincidência que leva à confirmação do mensalão", disse.
Até onde a CPI vai
O relator admite que a CPI ainda precisa concluir quatro linhas de investigação. A primeira delas é a que trata da movimentação financeira do publicitário Duda Mendonça, cujos dados sigilosos que estavam em poder da Justiça americana passam a ser analisados nesta semana por alguns dos integrantes da comissão.
A CPI dos Correios busca a origem dos recursos que abasteceram a conta do publicitário da vitoriosa campanha presidencial de Lula em 2002. No momento mais tenso da crise, em seu depoimento à CPI, Duda admitiu ter recebido cerca de R$ 15 milhões em caixa dois no esquema de Valério. Na época, a oposição ameaçou pedir o impeachment de Lula, mas desistiu da idéia, temendo a reação das ruas e apostando no sangramento do governo até o fim do mandato.
Por meses, os integrantes da comissão tentaram obter a quebra de sigilo do marqueteiro junto à promotoria de Nova York. Os integrantes da Corte norte-americana relutavam em abrir os segredos de Duda à CPI, por entenderem que o órgão não se trata de um foro investigativo. Foi necessário que uma comitiva embarcasse rumo aos EUA para que o acesso aos dados fosse liberado.
Agora, com o sigilo nas mãos, a comissão tentará descobrir se o PT usou as contas do marqueteiro para lavar dinheiro no exterior. “Precisamos saber como se deram essas movimentações financeiras, como foram os recebimentos, de onde partiram os recursos para essas contas. Afinal, esses recursos saíram de e foram para onde?”, disse Delcídio.
A segunda linha é a indicação de novos nomes de deputados que teriam recebido recursos de Marcos Valério e de corretoras que operavam investimentos de fundos de pensão. O envolvimento das entidades fechadas de previdência complementar ligadas a estatais ao valerioduto é um dos pontos mais nebulosos das investigações. O relatório sobre os fundos de pensão apresentado na semana passada sofreu fortes críticas. A oposição suspeita de que alguns fundos direcionaram seus investimentos, em detrimento dos investidores, para os bancos Rural e BMG. As duas instituições financeiras emprestaram R$ 55 milhões a Valério, que, por sua vez, alega ter repassado o dinheiro, também na forma de empréstimo, ao Partido dos Trabalhadores.
Dinheiro público
Outro ponto a ser aprofundado pela CPI é o que diz respeito à participação da Visanet, empresa da qual o Banco do Brasil tem 32% do capital, no esquema de financiamento de parlamentares. Em outubro, ao divulgar suas conclusões parciais, o relator anunciou que, ao mesmo nesse caso, havia comprovado a utilização de recursos públicos no valerioduto. Agora, Serraglio admite que é preciso avançar na investigação de que cerca de R$ 20 milhões foram desviados da Visanet para favorecer o PT.
O montante identificado pela CPI fazia parte de uma antecipação de serviços de publicidade que seriam prestados pela DNA, empresa de Valério, em campanhas da Visanet. Uma semana depois de o empresário mineiro ter feito a aplicação no Banco do Brasil, a DNA transferiu R$ 10 milhões para o BMG. Quatro dias depois dessa transferência, o bancou aprovou um empréstimo no mesmo valor para a empresa Rogério Lanza Tolentino e Associados, que tem a participação de Valério.
Esse volume coincide com o valor de um dos empréstimos feitos por Valério e repassados ao PT. "Esse dinheiro vai para o (banco) BMG e ele empresta. Em outra oportunidade, um outro pagamento vai para o Banco Rural, que também empresta e não cobra", disse Serraglio, referindo-se à identificação de uma transação semelhante.
Uma auditoria feita pelo próprio banco confirma a existência de irregularidades no contrato da Visanet com a DNA, mas o documento, segundo o relator, tem informações contraditórias. "Precisamos chegar mais claramente à Visanet", afirmou Serraglio, que ameaça convocar os diretores da instituição caso suas dúvidas não sejam sanadas.
A quarta linha de investigação, aponta o relator, é a que diz respeito aos desvios de conduta na escolha das franquias dos Correios. Integrantes da comissão afirmam que essas franquias gerariam prejuízo de R$ 1 bilhão aos Correios por conta da migração de contas de grandes clientes para essas agências. A estatal, porém, contesta os dados.
Financiamento obscuro
A descoberta das fontes de financiamento do valerioduto tem sido o principal desafio da CPI dos Correios. A comissão conseguiu levantar evidências em torno de empresas, estatais e bancos que podem ter financiado o esquema. Além dos contratos de empresas públicas com o empresário, os parlamentares desconfiam de outras quatro possíveis fontes de recursos: empréstimos bancários, contas no exterior, investimentos de fundos de pensão e doações não declaradas de empresas privadas.
Após analisar documentos, dados de sigilos bancários e depoimentos, os integrantes da CPI detectaram uma lógica peculiar para a transferência dos recursos de Valério para o PT. Ao contrário da versão de que o caixa dois teria sido alimentado por empréstimos nos bancos Rural e BMG, como sustentaram o empresário mineiro e o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, a CPI desconfia que os recursos de publicidade do governo iam parar nas contas do PT, sem empréstimos, como no caso do Banco do Brasil.
Dinheiro vai, dinheiro vem
Os contratos eram assinados com empresas de Valério com valores superfaturados. As sobras serviam para alimentar o caixa dois do PT. Depois de viajarem por 68 contas diferentes em 13 bancos, todas em nome de Valério ou de suas empresas, elas iam parar nas contas da SMP&B no Banco Rural, em Brasília, onde os deputados e assessores parlamentares sacavam o dinheiro do mensalão.
A comissão chegou a essa conclusão depois de comparar os valores das sobras do contrato do Banco do Brasil com a DNA e o montante aplicado no BMG por Valério. As instituições bancárias, segundo a CPI, serviam apenas para esquentar o dinheiro que era pago a mais nos contratos.
Para convencer os bancos a entrarem no esquema, era necessária uma contrapartida, que teria vindo, segundo suspeitam alguns parlamentares, de investimentos de fundos de pensão. Daí a importância que eles dão aos investimentos feitos pelas entidades de previdência em instituições de pequeno porte, como os bancos Rural e BMG.
Afora o caso BB/Visanet, que a CPI associa à alimentação do caixa dois do PT, os parlamentares ainda demonstram cautela quanto à indicação de outros possíveis financiadores do mensalão. “O que levantamos nos dá margem para fazer uma série de suposições”, afirma o sub-relator de Contratos da CPI dos Correios, deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP).
Segundo ele, algumas informações obtidas até agora com a quebra de sigilos bancário e telefônico trazem à tona fortes suspeitas acerca de quatro grandes empresas. Juntas, elas depositaram mais de R$ 240,3 milhões nas contas de Valério nos bancos Rural e do Brasil. As conclusões (e os nomes das empresas), no entanto, só chegarão depois da análise dos contratos assinados pelas agências do empresário – a SPM&B e a DNA –, que estão a cargo de auditoras contratadas pela CPI.
Os recursos dessas empresas para o caixa dois petista seriam uma espécie de contrapartida, segundo a CPI. As empresas supostamente injetavam dinheiro nas campanhas e, em troca, o partido liberava o caminho para que elas fechassem contratos de prestação de serviços com a União e com estatais ou, simplesmente, obtivessem favores do governo federal.
No caso do Opportunity, por exemplo, sabe-se que o seu principal interesse era garantir para si o controle da Brasil Telecom e de outras empresas nas quais o banco de Daniel Dantas trava há anos uma disputa societária com os fundos de pensão.
Uma CPI não tem o poder de punir empresas privadas. Pode, contudo, apurar e enviar informações ao Ministério Público e à Polícia Federal, para que sirvam de base à abertura de inquéritos policiais e, se for o caso, de processos criminais. Se ficar comprovada a participação de alguma empresa no esquema, ela poderá responder por sonegação fiscal, enriquecimento ilícito e crime contra as ordens tributária e financeira.
Gênese do escândalo
Por mais que as denúncias tenham estilhaçado a imagem do governo Lula, as investigações também respingaram nos tucanos. O relatório final da CPI dos Correios, que deve ser votado até o próximo dia 21, deve dedicar algumas páginas à ligação de Marcos Valério com o PSDB em Minas Gerais. O empresário contou à comissão que repassou R$ 10 milhões para a campanha do hoje senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) à reeleição em 1998. Azeredo perdeu a disputa e não quitou a dívida, num esquema de caixa dois parecido ao operado por Valério com os petistas.
A base governista suspeita que o empresário apenas reproduziu, no plano federal, o esquema de financiamento irregular de campanha que ele já operava em Minas para os tucanos. O relator da CPI já anunciou que vai citar Azeredo e o presidente Lula em seu relatório final. Segundo Serraglio, os dois tinham conhecimento das irregularidades assumidas por seus assessores.
A batalha em torno da responsabilização do ex-presidente do PSDB e do presidente da República deve ser o último capítulo, ao menos no Congresso, de uma guerra iniciada com uma imagem que, de corriqueira, poderia ter sido só mais um flagrante de corrupção no país. Gravação audiovisual reproduzida pela revista Veja em maio mostrava um funcionário dos Correios cobrando R$ 3 mil de propina para favorecer um empresário em uma licitação na estatal.
Na fita, o servidor público Maurício Marinho atribui o comando do esquema de corrupção na estatal a Roberto Jefferson. O dinheiro da propina, segundo ele, tinha como objetivo reforçar o caixa do PTB. Uma semana depois, a revista denunciaria a cobrança de uma mesada de R$ 400 mil no Instituto de Resseguros do Brasil (IRB). O favorecido, mais uma vez, de acordo com a reportagem, seria o PTB.
Acuado pelas denúncias, Jefferson decidiu detonar a maior crise política do país desde o processo de redemocratização, há mais de 20 anos. No dia 6 de junho, em entrevista à Folha, Jefferson acusa o então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, de pagar uma mesada de R$ 30 mil a deputados do PL e do PP em troca de apoio nas votações de interesse do governo no Congresso. A prática, segundo Jefferson, teria vigorado entre 2003 e janeiro de 2005. E só teria sido interrompida após o presidente Lula tomar conhecimento do fato, por iniciativa do próprio petebista.
(*) Colaborou Diego Moraes
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