É difícil achar uma palavra para definir 2014, o ano que insiste em não acabar e parece que até os últimos minutos vai nos surpreender com as mais diversas notícias. O ano da Copa do Mundo no Brasil, do 7 X 1, da morte de Eduardo Campos, de uma das eleições mais envolventes da história, dos amigos e familiares que brigaram por ideologias políticas diferentes, da morte de grandes nomes como Roberto Gómez Bolaños (grande Chaves!), da seca em São Paulo, do Banco do Brasil suspendendo o patrocínio do vôlei, do anúncio do final do Embargo a Cuba pelos EUA, da saída de Jorge Hage da Controladoria-Geral da União (CGU), do Sarney se despedindo do Senado e do Maluf considerado Ficha Limpa. 2014 provou que tudo é possível.
Se parar para analisar friamente, a gente pira, desiste da humanidade e foge pra Marte. Muitas vezes é difícil encontrar forças para seguir na luta, mas não é impossível. Por isso, decidi deixar todos os fatos desoladores de lado e encerrar minha última coluna de 2014 de forma um pouco diferente, trazendo uma história que demonstre que nosso país não é tão terra de ninguém assim como imaginamos e que é possível mudar. Afinal, acho justo podermos respirar um pouco de esperança.
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Nos últimos dois anos participei da Marcha Contra a Corrupção e Pela Vida, no sertão do Piauí, um dos estados mais pobres e secos do Brasil. Não, não é uma manifestação como a Marcha da Maconha, a Marcha das Vadias ou a Marcha pela Família. A tal da Marcha do Piauí acontece sempre em julho, período de férias escolares, por 15 dias durante os quais os marchantes caminham por cerca de 150 km fiscalizando obras públicas. Sim, isso mesmo que você leu: cerca de 150 km caminhando.
Claro, não foi tão fácil assim me convencer de participar dessa aventura. Durante muitos anos eu achava a ideia uma loucura. Imagina só, andar 150 km durante 15 dias debaixo do sol do sertão piauiense fiscalizando as contas públicas de lugares por onde eu jamais tinha passado (e talvez jamais fosse voltar a passar). Mas como de médico, louco (e ativista) todo mundo tem um pouco, me programei, agitei um grupo de amigos tão retardados quanto eu e partirmos para Teresina.
Lá fomos recebidos por Arimateia Dantas, advogado e ativista desde sempre. Mora em Teresina com sua filha Victória e seu filho Gandhi, em uma casa confortável que conseguiu conquistar ao longo da vida. Vida essa que também lhe fez observar com atenção a forma como as políticas públicas e projetos públicos anunciados não passavam de faz de conta. Ari, desde pequeno não entendia porque ele tinha comida em sua casa e um menino da rua, que ele sempre via pedindo comida, não tinha. Em determinado momento decidiu que precisava agir, apesar de morar na capital, ter água encanada em sua casa e um nível de vida confortável. É ele o louco idealista responsável pela Marcha Contra a Corrupção e Pela Vida, que já acontece há 13 anos, e criador da Força Tarefa Popular (FTP), movimento pela correta aplicação dos recursos públicos que atua em todo o Estado do Piauí.
Todos os anos, os voluntários da FTP realizama Marcha. Os marchantes visitam cidades, povoados e comunidades e fiscalizando obras públicas. As cidades são escolhidas previamente pela FTP, que organiza todo o roteiro, logística, hospedagem e alimentação para os voluntários. São 15 dias durante os quais dormimos em igrejas, escolas, creches, sindicatos e casa de moradores, imersos na realidade local.
Realidade essa muito triste e dolorida. O racionamento de água e os caminhões pipas que começamos a ver em São Paulo neste ano são uma realidade muito antiga e bem mais agravada por lá. A seca já colocou em situação de emergência 199 dos 224 municípios do Estado. Apesar dos inúmeros projetos e do volume de recurso público destinado à região, o desenvolvimento por lá é quase nulo. O motivo, de acordo com a população: a corrupção.
A indústria da seca surge com a escassez de água e, além de ser lucrativa, é utilizada pelos políticos para compra de votos, uma vez que são eles que decidem quais as comunidades que irão receber os caminhões-pipa. A água virou, de forma descarada, moeda eleitoral.Nessa realidade, inúmeras obras de adutoras, fontes e cisternas são projetadas e aprovadas no nível estadual e federal, porém, nem sempre o recurso chega ao seu destino.
A estratégia utilizada pelos marchantes para verificar o desvio de recursos públicos é simples. Com informações retiradas do Portal de Transparência, além de pedidos de informação feitos previamente resguardados pela Lei de Acesso à Informação, os marchantes fazem visita aos locais de cada obra, onde na teoria, deveriam ter cisternas, adutoras, escolas, hospitais, creches, quadras, entre outros. Além disso, eles ensinam os cidadãos a fazerem o controle social, através de aulas de cidadania, e dão suporte àqueles que querem denunciar abusos e criar grupos fiscalizadores em suas cidades.
Nunca vou me esquecer, por exemplo, do pequeno povoado de Cajueiro, pertencente ao município de Guaribas, onde depois de percorremos cerca de 30 quilômetros fomos recebidos por um grupo de mulheres e crianças com diversos cartazes pedindo acesso à água e à informação. Uma das jovens que conheci, chamada Elizabete, contou que tem o sonho de ser médica e que o desejo surgiu da revolta, uma vez que o povoado só recebe a visita de um médico uma vez por semana, com atendimento limitado a 15 pacientes. “Quero ser médica para atender quem tiver necessidade, independente de quantidade. Se houver pessoas doentes, trabalharei dia e noite”, contou.
Ao percorrermos as obras sempre sentia um misto de aperto, tristeza e revolta. Nem a melhor universidade do mundo seria capaz de me ensinar tanto quanto essa experiência.O volume de recursos públicos enviados para a região é enorme. São diversos projetos, a maioria justificada pela seca. Porém, as obras que deveriam estar concluídas há anos e fariam uma diferença enorme na vida da população nunca saíram do papel. Encontramos inúmeras obras que sequer foram iniciadas, estavam fora do prazo, atrasadas ou concluídas com materiais de péssima qualidade, já exigindo novos investimentos.
Tudo é registrado em formato de denúncia e então é levado aos órgãos de controle do Estado e sua apuração é monitorada pela Força Tarefa Popular, que nas treze edições realizadas já tem bons motivos para comemorar. Desde 2001 muitas fraudes já foram descobertas,escolas precárias ganharam novos equipamentos, câmaras de vereadores que nunca tinham sido abertas ao povo foram palco de fiscalização popular, obras foram concluídas e a água pode chegar a locais onde o desvio e a ineficiência de recursos públicos não permitiam.
Dessa forma, sem holofotes e somente com seu caminhar, a Força Tarefa Popular tem transformado a vida de muitas pessoas. E por quê? Simplesmente porque eles decidiram não se calar, não se omitir e não deixar o medo censurá-los. Decidiram seguir em frente, tomar uma atitude, investigar e denunciar. Os marchantes demonstram da forma mais pura e simples que, apesar de árduo, o caminho é possível. Não são deputados ou vereadores, não possuem força política nos termos tradicionais, não possuem recursos. São seres humanos simples, assim como nós, que fazem coisas que eram para ser comuns, como o simples ato de fiscalizar o dinheiro que é de todos.
No fim dessa jornada entendi que lutar pela cidadania é não ter medo de nada. É enfrentar dragões. Não há nada mais trágico neste mundo do que saber o que é certo e não fazê-lo. Não adianta somente se dizer contra a corrupção, é preciso sair do sofá e ser contra ela de fato. Talvez não tenhamos conseguido fazer o melhor, mas lutamos para que o melhor seja feito. Como disse o Arimateia uma vez, a corrupção é obra humana. E se ela é obra humana o ser humano consegue acabar com ela. É da natureza humana, mas é da natureza humana ser honesto também.
Por um 2015 com mais marchantes construindo um futuro mais participativo, ético, íntegro e transparente!
Clique aqui para saber mais sobre essa história e assistir o documentário “Sede de Ser”.
Boas Festas!
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