Flávia Duarte *
É óbvio, mas nem sempre perceptível, seja por distração, seja por pura falta de sensibilidade: a vida é orquestrada pela harmonia da dualidade. E foi nesse devaneio que comecei a tentar definir a minha experiência de ter sido uma amadora rainha de bateria por um dia.
Com penas na cabeça e nas costas, mantive o equilíbrio em cima dos saltos por nove horas. Só não consegui coordenar bem o quadril. Dona de bunda farta, era peso demais para mantê-la contida em passos curtinhos, como pede o samba. Não me importei. Eu abri os braços, rebolei, sorri muito. Era isso que eu precisava. Nada mais faltava para mim. Disseram que eu era rainha e acreditei.
Meus pés ardiam no fim da noite. Minha cabeça estava dolorida por segurar aquele arranjo imenso, feito originalmente para uma miss. Precisava tomar um banho para me livrar do cheiro do suor misturado ao da fantasia guardada por um ano. Da produção, só restaram os cílios postiços azuis, em cima da pia do banheiro.
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Com o corpo exausto, percebi, já deitada em minha cama, que meu espírito e minha cabeça ainda estavam em ritmo do ziriguidum. Inquietos. Alvoroçados. Não consegui dormir. Comecei a chorar e só parei na tarde de ontem. Não, eu não estava triste. Era um misto de alívio, de felicidade e também de saudade. Resultado do antagonismo que é a vida.
Você sofre por ter sido tão feliz e isso acabar de virar passado. Agora só restavam as fotos e as cenas registradas na memória. Chorei por ter me permitido viver tal experiência, muito mais profunda do que um aparente exibicionismo. Eu tive coragem de me arriscar, de me expor, e senti prazer nisso. Eu me senti viva.
Eu estava anestesiada. Como dizia Osho, “a alegria é louca, e somente os loucos podem se dar o luxo de tê-la”. É um sentimento indomável, selvagem e que não conhece o controle. Assim ele definiu. E quem disse que minha euforia caberia em cabresto? Só alguns privilegiados se permitem e eu fui um deles naquela tarde.
De madrugada, chorei de emoção por ter sido acolhida pelos amigos, que, generosamente, compartilharam meu estado de êxtase. Sem críticas, sem julgamentos. Só me ofereceram elogios. Escolheram as hipérboles para se referirem a mim: “radiante”, “deslumbrante”, “diva” ou “deusa”. Assim eles me diziam. Como não chorar ao ter tanta gente amada alimentando sua felicidade?
Eu me emocionei por um gesto singelo, e também o mais pleno, que recebi nos últimos tempos. Um amigo especial, de longa data, enfrentou a nítida timidez — que lhe tinge o rosto da cor de sangue quando é o centro das atenções —, arranjou um tempo na agenda atribulada, deixou os filhos, a quem encontra em dias contados, só para me ver, por cinco minutos. Segundo ele, “porque sabia que era importante para mim”.
Chorei, e ele achou que era por falta de contentamento. Não, não era. Era por me sentir privilegiada por tamanho carinho, e, ao mesmo tempo, por lamentar não poder prolongar momentos como esse. Tudo é passageiro, afinal. Mas eu não trocaria a intensidade da emoção daqueles minutos por dias insossos e turbulentos, como costumam a ser as convivências diárias.
Minhas lágrimas também eram por ver meu pai ali, sem jeito, mas, ao mesmo tempo, envaidecido, pela filha aparecida, tão diferente da personalidade dele. Afinal, os pais nos amam mesmo quando corremos o risco do ridículo. Elas escorriam ainda pela minha mãe, que olhava tudo sentada no meio-fio e fazia uma viagem à própria juventude, quando também gostava de se apresentar em público, mas não teve a sorte de ganhar a autorização dos pais dela para um dia pular carnaval.
Chorei porque sorri demais. “Quando a dança surge, você se expande, escancara as suas portas, chama os amigos, os vizinhos, e diz: “Venham!”. Mais uma vez me lembrei do mestre espiritual. Os que gostam de mim estavam lá. Não me importa o que os demais pensaram. Quer dizer, só uma leitora que viu um vídeo no Instagram do nosso jornal e criticou o meu péssimo samba no pé. Ela até tem razão, mas tive que respondê-la que passista, eu não era, que não passava de uma jornalista feliz. Afinal, eu leio Osho, me esforcei para me libertar do olhar alheio, mas não tenho autocontrole de Buda.
* Flávia Duarte é jornalista e assina o blog In Confidências. Mas, neste Dia Internacional da Mulher, ela é também a dona desta coluna. Não o faço como mera homenagem, daquelas que trazem flores anuais por vezes malquistas, mas por puro gosto de retribuição. Como lidar com um texto em que a autora, mulher de carne e osso – e que tratei logo de transformar na personagem Duarte Colombina, para evitar um tom piegas no título deste registro –, descreve tão candidamente sua alegria tão rara e tão íntima? E ainda confessa, sem o mínimo zelo pelo coração alheio (contém ironia), ao se encaminhar para o final da alegoria de letras: “Chorei porque sorri demais”.
P.s.: às vezes o fato de uma pessoa não saber sambar torna ainda mais bela sua dança — não há remelexo que seja páreo para a graça genuína. Afinal, de que mais precisa a foliã com seu sorriso de céu?
P.s. 2: e chegamos ao décimo ano consecutivo… Todos os textos dos anos anteriores estão aí embaixo. Haja paciência para quem se dispuser a ler tudo. Alguém haverá de se dispor a tanto? Não creio. Bem, caso alguém queira se aventurar, eis a lista.
A mais pura das mulheres (2016)
Touché, Élora (2015)
Mulher com H (2014)
O azul onírico do plenário em verso e Rosa (2013)
A mulher quando as ruas eram de fogo (2012)
Mulher, a auto-homenagem (2011)
Sobre Iemanjá, Clarice e a “menina do pedido de criança” (as três marias) (2010)
Mais flores em vocês (2009)
Flores em vocês (2008)