Luiz Alberto dos Santos*
Em artigo publicado no Estadão em 29 de dezembro de 2020, o economista Pedro Nery, consultor legislativo do Senado, aponta várias inconstitucionalidades na Lei Municipal que elevou o subsídio do prefeito de São Paulo a partir de 2022.
Segundo a Lei nº 17.543, de 23 de dezembro de 2020, resultante do Projeto de Lei nº 173/18, a partir de 1º de janeiro de 2022 o subsídio mensal do Prefeito do Município de São Paulo passa a ser de R$ 35.462,00 e do vice-prefeito no valor de R$ 31.915,80. Os Secretários Municipais passam a receber R$ 30.142,70.
Mas esses valores só entrarão em vigor em 2022. Diversamente do que diz o doutor em Economia, não há inconstitucionalidade alguma na Lei.
Primeiro, quanto à alegada questão do “vício” de iniciativa: a Constituição Federal, no seu art. 29, V, prevê que os subsídios do prefeito, do vice-prefeito e dos secretários municipais serão “fixados por lei de iniciativa da Câmara Municipal”, observado o teto de remuneração nacional (Ministro do STF) e na forma de subsídio em parcela única.
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O subsídio do prefeito, na forma do art. 37, XI, é o limite de remuneração para os servidores municipais. Na medida em que esse “limite” permaneça congelado, em afronta, aí sim, ao art. 37, X da Constituição, que prevê revisão geral anual para a preservação do poder aquisitivo, o que se tem é inconstitucionalidade por omissão, reconhecida mais de uma vez pelo STF, mas que se submete à disponibilidade orçamentária, como decidiu a Corte em 2019, no polêmico RE 905357.
Assim, não houve qualquer vicio na iniciativa do Legislativo, e o que se deveria questionar é o absurdo de uma norma legal dessa natureza submeter-se à sanção do chefe do Executivo. Trata-se de mais uma das “trapalhadas” da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, que, no Plano Federal, não é observada, visto que o subsídio do presidente da República, do vice-presidente e o dos ministros de Estado é fixado por Decreto Legislativo, não sujeito à sanção presidencial.
Mas a EC 19, de 1998, previu que o subsídio do prefeito seria fixado “por lei”, o que tem sido interpretado como lei em sentido formal e material, e não somente material, como ocorre no plano federal.
Quanto à vedação contida na Lei Complementar 173 e na própria LRF, não há também que se falar em “inconstitucionalidade”, pois a lei municipal que altera o teto não concede qualquer reajuste a nenhum servidor, mas tem efeito indireto, ao reduzir a “redução” de salários mediante a aplicação do teto. Se lei municipal anterior tiver fixado a remuneração de servidores, como fiscais, procuradores etc, acima do teto vigente, o novo teto apenas passa a permitir que o que a lei anterior concedeu seja aplicado, mas não tem efeito geral, como reajuste.
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E o que a LRF e sua irmã mais nova, a Lei Complementar 173 disciplinam é o aumento de vencimentos e subsídios dos servidores públicos e “membros de Poder”, e não dos agentes políticos. A redação do art. 8º da LCP 173 impede, até 31.12.2021, na hipótese de calamidade pública reconhecida pelo Poder Legislativo, “conceder, a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos e militares, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade pública”.
Ocorre que essa lei, sim, é claramente inconstitucional, não somente por invadir a prerrogativa dos entes subnacionais, como por negar vigência à própria Carta Magna, no que prevê o direito à correção inflacionária. Mas o STF ainda não se pronunciou sobre isso.
A vedação contida no atual art. 21, II da LRF, que considera “nulo de pleno direito” o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal nos 180 dias anteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão, refere-se a ato administrativo, e não a lei em sentido formal e material.
Já o inciso III, ao considerar nulo o “ato de que resulte aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão”, não se aplica ao caso, pois não se trata de reajuste “parcelado”, mas à vigência do novo subsídio.
E, quanto ao inciso IV, que considera nula “a aprovação, a edição ou a sanção, por chefe do poder Executivo, por presidente e demais membros da Mesa ou órgão decisório equivalente do poder Legislativo, por presidente de Tribunal do poder Judiciário e pelo chefe do Ministério Público, da União e dos Estados, de norma legal contendo plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público, quando resultar em aumento da despesa com pessoal nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores ao final do mandato do titular do poder Executivo, ou resultar em aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular do poder Executivo, tampouco se aplica ao caso da fixação de novo valor a título de subsidio, que, por definição constitucional, é o teto remuneratório no município. Não se trata quer de alteração de remuneração de qualquer cargo efetivo ou carreira, e as condições subsequentes (resultar em aumento de despesa com pessoal) são expressamente vinculadas ao conteúdo da lei (plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público). Nenhuma dessas condições está presente, no caso.
Além disso, a Prefeitura de SP, até outubro de 2020, teve receitas correntes líquidas de R$ 49,5 bilhões, e uma despesa total com pessoal e encargos de R$ 18,1 bilhões, comprometendo com essa despesa 36,6% de sua receita líquida. A LRF fixa como limite máximo 50%, ou seja, o novo subsídio do Prefeito, ainda que tenha reflexos sobre a remuneração de parcela dos servidores, está muito longe de afetar a situação fiscal do município.
Por outro lado, a Lei Orgânica do Município de São Paulo prevê no seu art. 14, VI que compete privativamente à Câmara Municipal “fixar, por lei de sua iniciativa para viger na legislatura subsequente até 30 (trinta) dias antes das eleições, os subsídios do prefeito, vice-prefeito, secretários municipais e vereadores” e “respeitadas as disposições dos artigos 37, X e XI, 39, §4º e 57, §7º, da Constituição Federal”, considerando-se mantido o subsídio vigente, na hipótese de não se proceder à respectiva fixação na época própria, atualizado o valor monetário conforme estabelecido em lei municipal.
Assim, a LOM de São Paulo homenageia o princípio da revisão geral, duplamente, e prevê que, mesmo sem a fixação de novo subsídio, o seu valor deve ser atualizado monetariamente.
Embora tenha tido o cuidado de afastar a aplicação do novo “teto”’ no inconstitucionalmente fixado período de “defeso” da Lei Complementar 173, contornando, ainda, qualquer óbice quanto ao igualmente inválido art. 21 da LRF, o reajuste concedido apenas fixa novo valor que considera uma correção menor do que a inflação verificada desde 2012, quando foi definido o valor ainda em vigor (R$ 24.117,62). O menor dos índices de inflação apurado, acumulado desde então, elevaria o subsídio do Prefeito para R$ 38.125,13, mas por força do art. 37, XI da CF, o valor fixado observou o limite de 90,25%, que é o teto aplicável a todos os servidores estaduais (subsídio dos desembargadores).
Esgrimir a Constituição requer alguns cuidados. Não se pode usar a Carta Magna, desrespeitada diuturnamente quando convém aos governos e seus apoiadores, economistas ou não, como uma “ameaça” contra ela mesma. Interpretar o sistema com serenidade, sina ira et studio, é imperativo.
O sistema constitucional, já complexo, vem sendo deturpado por emendas mal construídas, como a EC 19/98, e a recente EC 103/2019 – a “reforma” da Previdência. Essa anarquia produzida pelos “reformistas-fiscalistas” não requer o auxilio luxuoso dos que interpretam equivocadamente o sistema para gerar ainda mais confusão.
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Buscar argumentos contra o aumento do subsídio não demanda usar o “terrorismo jurídico” dos que defendem o fiscalismo acima de tudo, e o mercado acima de todos. Ser contra o aumento do subsídio é uma posição política, mais do que administrativa ou econômica, num contexto de grave crise fiscal que congela o salário da esmagadora maioria dos agentes públicos, e em que o aumento desse subsidio pode até ser visto como privilégio, quando baseado em reposição de perdas inflacionária que atingiram a todos os servidores, e não somente o prefeito e seus secretários.
Mas, se o debate é “jurídico”, inconstitucionalidade na aprovação da Lei paulista não há, a não ser a omissão que comete ao protelar a sua vigência e ter alcance limitado a agentes políticos.
Luiz Alberto dos Santos é advogado, mestre em Administração (Unb), Doutor em Ciências Sociais. Consultor Legislativo do Senado Federal e Professor colaborador da EBAPE/FGV.
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