Luiz Cláudio Cunha *
Passava um pouco das 11h da manhã de um domingo sonolento, 12 de novembro de 1978. A jovem morena que aguardava um ônibus desde Montevidéu, no box 50 da Rodoviária de Porto Alegre, sente no braço a pegada firme de um homem de cabelos grisalhos e terno safari. A ativista uruguaia Lilián Celiberti, que disseminava no exterior notícias sobre as torturas da ditadura em seu país, estava sendo presa naquele momento pelo nome mais importante da repressão gaúcha, o delegado do Dops Pedro Seelig. Começava ali o sequestro dos uruguaios — Lilián, seus dois filhos, Camilo e Francesca, e Universindo Rodríguez Díaz —, uma incursão pioneira em solo brasileiro da Operação Condor, a secreta conexão multinacional das ditaduras do Cone Sul da década de 1970 que caçava, torturava e executava seus opositores. Os quatro uruguaios só não cumpriram o ritual de morte da Condor porque, alertados por um telefonema anônimo, dois jornalistas da sucursal da revista Veja na capital gaúcha — o repórter Luiz Cláudio Cunha, autor deste artigo, e o fotógrafo JB Scalco — surpreenderam os sequestradores e Lilián no cativeiro de seu apartamento na rua Botafogo, no bairro do Menino Deus.
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A operação clandestina flagrada pelos jornalistas teve que ser abortada pela Condor. Daí tornou-se um escândalo na mídia brasileira e no exterior. Os uruguaios sobreviveram ao sequestro, as ditaduras acabaram caindo sete anos depois, em Brasília e em Montevidéu, e a democracia voltou nos dois lados da fronteira em 1985.
Na segunda-feira, 12 de novembro de 2018, quatro décadas depois daquele domingo sonolento, o pesadelo e o sonho foram lembrados em Porto Alegre, com uma exposição de fotos e vídeo e um ato de homenagem do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia, que promoveram o reencontro da sequestrada Lilián Celiberti comigo na sala Múltiplos Usos do Memorial, na praça da Alfândega, no coração da capital. Um ato de cortesia e reverência à coragem e à resistência em tempos duros de arbítrio, no entanto, acabou mostrando agora, em plena democracia, uma faceta inesperada — e quase despercebida — de omissão, covardia e deselegância de quem sempre teve destaque na esquerda da política gaúcha justamente pelo protagonismo, destemor e impecável urbanidade: a deputada estadual Manuela D’Ávila (PCdoB), candidata a vice-presidente na chapa de Fernando Haddad derrotada em outubro.
Na condição de Procuradora Especial da Mulher na Assembleia Legislativa, a deputada convidou e assumiu em agosto passado a responsabilidade de trazer Lilián a Porto Alegre em novembro, bancando sua viagem e estadia pelo Parlamento gaúcho. Uma semana antes do evento, contudo, Manuela tirou a Procuradoria da reta. Não manteve sua palavra, forçando a exclusão da logomarca da Procuradoria dos cartazes do ato, e simplesmente escafedeu-se. Lilián, submetida há 40 anos à suprema grosseria do sequestro em solo gaúcho, era exposta agora à grosseira descortesia de Manuela. Coligou-se ainda à deputada do PCdoB, nessa bancada da grossura institucional, a administração do MDB do governador José Ivo Sartori. Antes animado com o evento, a ponto de pedir espaço para discursar na cerimônia com Lilián, o secretário estadual da Cultura, Victor Hugo Alves da Silva, de repente arrepiou-se. Retirou o apoio oficial da secretaria, desistiu do discurso e da presença e só não pode apagar todos os vestígios do Estado no ato porque o Memorial do RS, responsável central pela homenagem, é diretamente subordinado à Secretaria da Cultura. Um baita vexame, tchê!
A convidada paga?
Lilián, acostumada a castigos físicos no passado da ditadura, não se intimidou diante da tortura moral da democracia no presente. Apesar do vergonhoso desaparecimento do apoio de Manuela e do Governo gaúcho, a uruguaia convidada e desdenhada manteve sua palavra: bloqueou sua pesada agenda de compromissos internacionais para não desistir de sua promessa de viajar para o evento de Porto Alegre. Como responsável desde 1985 pela principal ONG feminista do Uruguai, o Cotidiano Mujer — que abrange uma revista, uma rádio digital e uma intensa pauta dedicada à perspectiva política da mulher em temas como aborto, direitos sexuais e reprodutivos, além de um festival anual de cinema e direitos humanos —, Lilián é uma ativista muito requisitada para seminários e conferências internacionais, especialmente no âmbito da ONU. Na condição de convidada oficial, como recomenda os bons costumes da etiqueta, ela é sempre agraciada com as passagens aéreas e hospedagem correspondentes.
Não foi o que aconteceu, infelizmente, em Porto Alegre. Em vez de receber a cortesia de uma passagem aérea, estadia e diária, como lhe caberia no papel de convidada, Lilián teve que comprar do próprio bolso uma passagem de ônibus Montevidéu-Porto Alegre, ida e volta, para ela e seus dois filhos, Camilo e Francesca, não convidados mas também vítimas do sequestro em 1978. Privada pela Procuradoria de um voo de cortesia de 54 minutos entre as capitais uruguaia e gaúcha, a desconvidada Lilián submeteu-se voluntariamente a uma viagem rodoviária de quase 12 horas para vencer a distância de 804 km entre as duas cidades. Como não tinha hospedagem nem anfitrião, Lilián hospedou-se por conta própria num hotel de Porto Alegre que ela mesmo reservou e pagou. Os filhos se alojaram na casa de um amigo de Camilo. Elegante, a uruguaia não quer falar sobre isso. Mas, uma rápida consulta ao site da EGA, a Empresa General Artigas, que faz a linha de ônibus entre Brasil e Uruguai, informa que uma única passagem, num só trecho, custa 3.580 pesos (cerca de R$ 420). Lilián desembolsou o valor de três passagens, ida e volta. Resumo dessa inacreditável, trágica ópera gaúcha: Lilián Celiberti pagou para ser homenageada nos 40 anos do sequestro!
Esse surpreendente festival de boçalidade, que deve constranger todo gaúcho educado, aconteceu de repente, nas duas últimas semanas que antecederam o evento do Memorial. A ideia de uma exposição e um debate sobre o sequestro nasceu em abril passado, na cabeça de uma jovem e aguerrida historiadora, Ananda Simões Fernandes, que trabalha no Arquivo Histórico, subordinado à Secretaria de Cultura. A proposta ganhou corpo e apoio nos meses seguintes, na Assembleia e no governo estadual, até ganhar a adesão da Procuradoria de Manuela, no final de agosto. O que aconteceu de errado para desfazer, na véspera do evento, todo aquele entusiasmo oficial do início? O único fato novo foi a eleição presidencial, duas semanas antes, sagrando a vitória de um capitão de pensamento autoritário e nostálgico da mesma ditadura que perpetrou o sequestro dos uruguaios, quatro décadas antes. O perverso “Efeito Bolsonaro” no Rio Grande, avassalado pela onda do conservadorismo, parece ter corrompido consciências, interditado coragem e diluído biografias, como se verá a seguir.
O fake news da deputada
Indagada sobre este vexame de Porto Alegre, a deputada Manuela D’Ávila me respondeu por e-mail na segunda-feira, 19, exatamente uma semana após o evento que ela deserdou e sequer presenciou: “É um verdadeiro absurdo o que fizeram e a ideia de que eu pudesse desrespeitar alguém dessa maneira. A única coisa que soube da vinda dela foi o esforço feito para que tivéssemos passagens. Não tive nenhum envolvimento, se não as conversas burocráticas para ajudar a materializar a vinda. Tens razão. Os tempos de Bolsonaro são marcados também por fake news como esta. Vou me comunicar com ela (Lilián) para esclarecer que eu seria incapaz de saber de sua vinda e não recebê-la”. O fato é que todo o Rio Grande sabia da exposição, aberta de 1º de novembro até 2 de dezembro, e do debate com Lilián Celiberti. Manuela, que sabia, não estava lá, no painel de 12 de novembro, para receber gentilmente Lilián no Memorial e ouvir sua palestra. Isso, é bom lembrar, não é fake news. Vamos então ao fact-checking para ver quem está contando a verdade.
O projeto começou a andar em abril passado, quando a historiadora Ananda Fernandes procurou a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia para viabilizar a presença dos dois palestrantes, Lilián e Cunha. A comissão topou a ideia, mas disse que poderia financiar a vinda de apenas um dos convidados, o jornalista. Informada do evento, a Procuradoria Especial da Mulher se ofereceu para trazer Lilián, com a ideia de que ela pudesse fazer no dia seguinte, 13 de novembro, uma palestra na Assembleia sobre o tema de sua especialidade, o feminismo. A Procuradoria pensou em agregar à palestra de Lilián a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), que ocupa no Senado o cargo equivalente ao de Manuela, Procuradora Especial da Mulher
A Secretaria de Cultura do Governo Sartori se encarregou de pagar a exposição e abrir espaço no Memorial RS, reservado ao sequestro para todo o mês de novembro.
Em 21 de agosto, Ananda mandou este e-mail para Manuela, aos cuidados de sua coordenadora, Fabiane Dutra:
À Procuradora-Geral da Mulher da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul
Excelentíssima Deputada Sra. Manuela D’Ávila
Venho, por meio desta, apresentar o projeto “O sequestro dos uruguaios em Porto Alegre: 40 anos depois”, realizado pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (Secretaria de Estado da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer) e pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a ser executado no mês de novembro de 2018.
O referido projeto contempla uma exposição sobre o caso dos militantes uruguaios Lilián Celiberti, seus dois filhos e Universindo Rodríguez Díaz, sequestrados em novembro de 1978, na cidade de Porto Alegre, no marco da Operação Condor, que ocorrerá no prédio do Memorial do Rio Grande do Sul. A exposição ainda conta com o desenvolvimento de uma ação educativa, voltada a escolas de ensino básico.
O projeto também contempla a realização de um seminário com os(as) protagonistas desse evento, dentre elas, a própria Lilián Celiberti, nos dias 12 e 13 de novembro de 2018, no Auditório do Memorial do Rio Grande do Sul. Assim, solicitamos o apoio à Procuradoria-Geral da Mulher da vinda de Lilián Celiberti, proveniente de Montevidéu, na condição de hóspede oficial do Estado. Devido à sua destacada atuação em coletivos feministas, além da participação no seminário proposto, Lilián poderia contribuir com sua experiência na luta contra as desigualdades de gênero na América Latina.
A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia se responsabilizará pela vinda do jornalista Luiz Cláudio Cunha, quem denunciou o sequestro dos quatro uruguaios realizados conjuntamente entre os aparatos repressivos brasileiro e uruguaio.
Encaminho anexo o presente projeto e coloco-me à disposição para contato.
Apresentando-lhe meus agradecimentos, subscrevo-me muito cordialmente.
Ananda Simões Fernandes
Historiadora
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
Já no dia seguinte, 22 de agosto, a Procuradoria respondeu a Ananda, informando que Manuela havia aprovado a proposta. Em 18 de setembro, a Procuradoria acrescentou que havia solicitado à Mesa Diretora da assembleia a vinda de Lilián como hóspede oficial do Legislativo. Em 22 de outubro, Ananda recebeu da assessoria de Manuela, por e-mail, a logomarca da Procuradoria que deveria ser exibido nos cartazes e banner da exposição que ela oficialmente patrocinaria. No texto, estão definidos os quatro promotores do evento: o Arquivo Histórico, a Assembleia, a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos e a Procuradoria da Mulher, com destaque para o nome de Manuela D’Ávila. No pé do cartaz, sob o rótulo de “Realização”, estão as logomarcas das cinco organizações que assumem o evento: a Assembleia, a Comissão de Direitos Humanos, o Arquivo Histórico e o Governo do Estado, todos ladeando a logomarca colocada exatamente no centro — a da Procuradoria Especial da Mulher, a suposta fake news pela qual Manuela jura não ter qualquer envolvimento.
Um capitão no horizonte
Fui convidado por Ananda em 23 de agosto e aceitei no mesmo dia. Uma semana depois, a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos formalizou o convite, declarando que eu seria hóspede oficial da Assembleia com direito a hospedagem e diária para alimentação, além das passagens aéreas desde Brasília, onde moro. Abri mão do hotel e das diárias. Bastava agora votar a proposta na comissão e, daí, submeter à aprovação final da Mesa Diretora da Assembleia. Os trabalhos tiveram uma pausa por conta das eleições. Os deputados estavam na reta final da campanha e o assunto seria retomado só depois do segundo turno, no final de outubro. Em agosto, Jair Bolsonaro era apenas uma miragem no horizonte, o campeão de rejeição que, em todas as pesquisas, seria derrotado por qualquer adversário.
Em outubro, a miragem Bolsonaro transformou-se em ameaça, mas continuava a aposta das pesquisas de que ele seria atropelado no segundo turno. No dia 15, ainda otimista, a Procuradoria de Manuela formalizou, por e-mail enviado a Montevidéu, o convite a Lilián:
De: XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
Asunto: Seminário y Exposición en Porto Alegre
Fecha: 15 de octubre de 2018, 10:38:44 GMT-3
Para: Lilián Celiberti
Estimada Lilián,
XXXXXXXXXX, trabajo en la Procuraduría Especial de la Mujer de la Asamblea Legislativa de Río Grande del Sur y estamos junto al Archivo Histórico de Río Grande del Sur en la organización del Seminario y Exposición “O sequestro dos uruguaios em porto alegre: 40 anos depois” que se realiza el día 12/11/2018.
Junto a eso y a nombre de la Diputada Manuela D’ávila, nuestra Procuradora Especial de la Mujer, la invitamos a realizar una charla organizada por la Procuraduría sobre Mujeres en América Latina, aprovechando su estada en Porto Alegre. Nos honraría muchísimo oírla sobre el tema.
Pensamos que, como el Seminario y apertura de la Exposición en el Archivo Histórico se realizan el día 12/11, esta charla podría ser realizada el día 13/11 en la Asamblea Legislativa.
(…)
Me quedo a su total disposición para cualquier duda u otra información que necesite.
Saludos muy cordiales,
xxxxxxxxxxxxxx
Procuraduría Especial de la Mujer – ALRS
Em agosto ainda, sem Bolsonaro no radar das ameaças eleitorais, o governo Sartori parecia empolgado com o evento do sequestro. Além de pagar os banners, a secretaria pediu um espaço para uma fala do secretário Victor Hugo Silva. No dia 20 de agosto, Ananda enviou ao Departamento Administrativo da secretaria um e-mail com as medidas, material e quantidade de cartazes necessários: 25 com tamanho 90×130 cm, um de 100×160 cm e outro, maior, de 200x500cm, todos em lona, com quatro cores. A licitação foi feita e vencida pela empresa Slim Produções&Eventos, que produziu e entregou a encomenda. Tudo parecia bem, mas Bolsonaro estava melhor ainda. O capitão cresceu nas pesquisas, ganhou corpo e virou uma alternativa considerada viável pelos dois candidatos ao governo estadual, Sartori (MDB) e Eduardo Leite (PSDB), o emedebista mais entusiasmado (ou angustiado) do que o tucano. De repente, o fervor de Sartori pelo evento que condenava a ditadura glorificada pelo capitão-candidato virou um terror a ser sufocado.
Ananda já havia mandado o material de divulgação para a Secretaria de Cultura com os créditos devidos ao Governo, Secretaria e Arquivo Histórico. Era assim:
Realização
Governo do Estado do Rio Grande do Sul
José Ivo Sartori
Secretaria da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer
Vitor Hugo
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
Dilmar Portela
Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul
Marlon Santos
Comissão de Cidadania e Direitos Humanos
Jefferson Fernandes
Procuradoria Especial da Mulher
Manuela D’Ávila
O medo em off
À medida que cresciam as chances eleitorais de Bolsonaro, porém, aumentava a aflição do governo Sartori. Ananda foi informada por um funcionário da Comunicação da Cultura que o secretário, arrependido, havia determinado a retirada das marcas e registros do Governo do Estado e da Secretaria da Cultura dos cartazes e material de divulgação. Na internet, a página da Cultura informava burocraticamente sobre a exposição de fotos, aberta dia 1º de novembro. Sobre a palestra de Lilián Celiberti no dia 12, nenhuma linha.
Nenhum convite fora expedido ainda porque a vinda de Lilián era cada vez mais incerta. A Mesa Diretora acabou aprovando em 6 de novembro, cinco dias antes da data da palestra, o convite oficial a mim, sob responsabilidade da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos. A vinda de Lilián, no entanto, aos cuidados da Procuradoria de Manuela, estava empacada porque nenhuma solicitação fora feita à Mesa da Assembleia. Embora tenha enviado a logomarca para o material de divulgação, a Procuradoria da Mulher não fez o básico: formalizar o convite a Lilián junto à direção do Parlamento. Prova de que mudou de ideia no meio do caminho. Um emissário do Arquivo Histórico procurou, preocupado, a chefe de gabinete da deputada, Mara, que só deu evasivas e nenhuma informação concreta. Frustrado, o emissário procurou Manuela pessoalmente no plenário da Casa, quando acontecia uma sessão plenária. Esclarecendo que falava em off, jargão da imprensa para fonte que não quer ser identificada, Manuela, jornalista de formação, confessou:
“Eu estou com muito medo. Eu e minha filha (Laura, 3 anos) estamos recebendo ameaças de morte, andamos pela cidade de carro blindado. Não quero me envolver nessas questões no momento…”
Manuela ainda pediu que as referências à Procuradoria da Mulher, como realizadora do evento do sequestro, fossem retiradas do material de divulgação dos 40 anos do sequestro. Mais tarde, uma assessora da deputada, Sofia, informou que não sabia se Manuela teria alguma agenda no dia 12 de novembro, data da palestra de Lilián que ela nem chegou a assistir — ao contrário do deputado Jefferson Fernandes, presidente da Comissão de Cidadania, que foi lá e fez uma elegante saudação à uruguaia sequestrada.
Diante do inevitável, Ananda tratou de fazer o que a Procuradoria de Manuela não fez: teve a gentileza de avisar Lilián do inesperado impasse na Assembleia, mas a uruguaia reafirmou sua decisão pessoal de viajar a Porto Alegre por sua conta. A historiadora do Arquivo Histórico tratou, então, de apagar outro incêndio: esconder a logomarca da Procuradoria dos cartazes do evento que ela abandonou no meio do caminho. O material já impresso trazia a logomarca no canto inferior direito, e Ananda escamoteou o registro da Procuradoria cobrindo a logomarca com uma fita adesiva branca. Sobreviveram no cartaz os outros quatro realizadores e, no meio, um inusitado espaço em branco, quebrando a unidade visual da peça. O banner maior, de 2x5m, estendido na fachada do Memorial, também traz o apagão inusitado, que o distinto público que circulava pela praça — congestionada pela tradicional Feira do Livro — não percebeu. Veja o cartaz e o banner remendados:
O jacaré do adesismo
O surpreendente e errático comportamento de Manuela D’Ávila, transformando em vexame e em velado constrangimento o que devia ser apenas um ato público de reverência à coragem e à resistência nos duros tempos da ditadura, é um bom exemplo dos dias turbulentos que vive a política gaúcha. Para muitos, é desconcertante o peso esmagador da vitória do capitão Jair Bolsonaro e sua retórica autoritária justamente no Rio Grande do Sul, alvo preferencial do golpe de 1964 como seu reduto mais oposicionista. O Estado é berço das três principais lideranças do trabalhismo – Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola – e foi varrido nos anos 1960 e 1970 por uma severa onda de prisões e cassações das lideranças da oposição mais veemente ao novo regime. Para fugir do cárcere, muitos procuraram a proteção do exílio no vizinho Uruguai, como fizeram Goulart e Brizola.
O capitão candidato, que no início, parecia apenas uma excrescência folclórica e nostálgica do passado autoritário de 21 anos, acabou dominando corações e mentes da maioria dos 8,3 milhões de eleitores gaúchos. Com 3,9 milhões de votos (63,24%), foi a nona maior vitória estadual de Bolsonaro, que venceu as eleições do segundo turno em 21 capitais e 16 dos 27 Estados brasileiros, incluindo os três do extremo sul, os de maior nível de escolaridade. Em Santa Catarina, segunda maior vitória nacional, o capitão superou os 75% dos votos, três de cada quatro eleitores. No Rio Grande do Sul, a onda bolsonarista mostrou-se um tsunami: o capitão venceu o seu adversário Fernando Haddad em 407 dos 497 municípios gaúchos no segundo turno, incluindo Porto Alegre, com vitória nas dez zonas eleitorais da capital. Em relação ao primeiro turno, Bolsonaro acrescentou mais meio milhão de votos no Estado.
Esse vagalhão eleitoral levou de roldão a coerência política, naufragou biografias e afogou a coragem que ainda flutuava ao sabor das ondas, como nesse aquoso episódio com Lilián Celiberti que empapou a biografia de Manuela D’Ávila. A coerência política do MDB do governador José Ivo Sartori, por exemplo, foi para o fundo do poço. Quando vislumbrou o tamanho da onda, Sartori tentou surfar na espuma bolsonarista. Abriu seu voto e colou-se como uma craca no rochedo do capitão. Na última semana antes do segundo turno, tentando um equilíbrio instável na onda conservadora com o seu jacaré de oportunismo eleitoral (apelidado de ‘Sartonaro’), o governador colou o seu vice, José Paulo Cairoli, no vice do capitão, o general Hamilton Mourão. Em apenas dois dias, os dois vices cumpriram roteiros conjuntos nas oito maiores cidades do Estado, incluindo Pelotas, Rio Grande, Santa Maria e Novo Hamburgo.
Não deu muito certo. O jacaré de Sartori perdeu o prumo e a eleição por pouco mais de 400 mil votos para o tucano Eduardo Leite, que também abriu o bico em favor de Bolsonaro. A legenda do MDB de Sartori, derrotada apesar do apoio ao capitão, foi no seu digno passado a trincheira da brava resistência democrática justamente contra a ditadura que o capitão-presidente tanto exalta. Não dá para esquecer, porém, que o MDB que um dia foi de Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela, Tancredo Neves, Alencar Furtado e Mário Covas hoje é o triste MDB de Michel Temer, Renan Calheiros, Romero Jucá, Geddel Vieira Lima e Eduardo Cunha — alguns deles já presos, outros ainda não. É também o MDB do Sartonaro, onde agora surfa, para espanto de tantos, um finado ícone do MDB velho de guerra, o ex-senador Pedro Simon, rijo e forte do alto de seus 88 anos.
No auge da ditadura, embora do MDB moderado, Simon ocupou o lugar de líder da oposição no Sul, vago com a ausência forçada do líder maior, Leonel Brizola, herdeiro do trabalhismo e exilado pelos generais no Uruguai. Fiel companheiro nos tempos difíceis do comandante Ulysses Guimarães, que dizia com clareza ter “ódio e nojo à ditadura”, Simon agora abjurou seu líder, esqueceu sua luta contra a ditadura e rasgou sua biografia, apenas três dias após o primeiro turno, ao anunciar ao surpreso povo gaúcho um estranho, envergonhado “apoio crítico” a Bolsonaro. O inesperado gesto de abjeto servilismo do ex-senador — que o ferino jornalista da Folha de S.Paulo Josias de Souza um dia pespegou como um ‘ex-Simon’ — não deu resultado para Sartori. Enquanto Bolsonaro recebia 63% dos votos no turno final, o governador ganhou apenas 46% dos eleitores, e perdeu a reeleição — prova matemática de que os gaúchos não acreditaram em Sartori e ainda desdenharam do apoio do ‘ex-Simon’.
O ético e o astrólogo
É difícil entender a inusitada flexibilidade ética de Simon, princípio do qual foi símbolo maior nos seus 24 anos como senador em Brasília, agora engolindo em seco a biografia autoritária de um capitão nostálgico da ditadura que o senador jurava combater. Mas, ex-amigos do próprio ex-MDB velho de guerra dizem que a conversão de Simon ao capitão-presidente tem um colorido mais pragmático: a reeleição do filho como deputado estadual. Em 2014, Tiago Simon estreou na política com uma suada eleição, conquistando a oitava e última vaga do MDB na Assembleia, com pouco menos de 33 mil votos. Foi o 47º entre os 55 deputados eleitos então. Agora, em 2018, subiu para 17º deputado estadual mais votado, elevando sua marca para quase 46 mil votos. O milagre desse progresso eleitoral, garantem, é o apoio – nada crítico – que ele deu desde o início a Bolsonaro. Muito antes de estrear na política, lá por 2010, Tiago circulava pelo gabinete do pai no Senado sem esconder seu deslumbramento com o pensamento vivo do astrólogo Olavo de Carvalho, que ninguém ainda suspeitava ser o guru intelectual do futuro presidente.
Poucos sabiam que Olavo, que agora se exibe como filósofo especializado em idiotas, foi comunista na juventude e depois muçulmano, hoje convertido como católico fundamentalista e guru da direita, padrinho (por enquanto) de dois impagáveis ministros do futuro governo, nas pastas do Itamaraty e da Educação. Algumas das frases mais brilhantes do astrólogo, que vocifera no YouTube usando palavrão no lugar de vírgula: “O general Geisel era comunista”, “cigarro não dá câncer”, “a Pepsi é feita com fetos abortados”, “o nazismo e o FMI são de esquerda”. Na sua típica sobriedade, que tanto fascina Bolsonaro e Tiago Simon, Olavo de Carvalho diz que Charles Darwin é o pai do nazismo, que Isaac Newton é burro e que Giordano Bruno e Galileu Galilei são charlatães. Infelizmente, não sabemos qual a opinião de Darwin, Newton, Bruno e Galilei sobre Olavo de Carvalho…
Os encantos bolsonaristas não se espargiram apenas sobre o ex-MDB velho de guerra do ex-Simon e descendente. Dois senadores do Rio Grande do Sul, de outras legendas, também sucumbiram. Três dias após a eleição do primeiro turno, em 10 de outubro, Lasier Martins (PSD), desculpou-se da tribuna para anunciar sua adesão: “Não é o candidato dos meus sonhos para presidente da República. No entanto, é o que acabamos de ter”. A senadora Ana Amélia Lemos (PP) abandonou uma reeleição segura para embarcar na chapa presidencial do tucano Geraldo Alckmin, que ficou em quarto lugar. No dia seguinte à derrota no primeiro turno, pelo twitter, Ana Amélia inflou sua vela bolsonariana com o vendaval antipetista que varreu as urnas do país: “Nas grandes decisões, os gaúchos não admitem neutralidade. Fui uma das maiores defensoras do impeachment de Dilma Rousseff e uma das vozes mais fortes no Senado contra o desgoverno do PT no Brasil. Não quero que o país corra o risco da volta do PT ao poder”.
Ambos jornalistas, estrelas de TV da RBS, o maior grupo de comunicação do extremo sul, Lasier e Ana Amélia sempre foram admiradores ostensivos de Leonel Brizola, o ex-governador e líder trabalhista cassado e caçado pela ditadura celebrada, sem rebuço, pelo capitão-presidente e seus ministros. Na quinta-feira, 22, Ana Amélia foi chamada para uma conversa de uma hora, fora de agenda, com Bolsonaro no QG da transição. Saiu de lá negando ter sido convidada para a pasta das Comunicações do novo governo. “Não estou postulando cargo”, esclareceu.
A ilusão das retiradas
A crise econômica endêmica que deprime o Rio Grande e seu povo há décadas faz o aparelho do Estado soluçar financeiramente, levando ao humilhante parcelamento de salários de servidores, às vezes poucas centenas de reais por quinzena, quebrando a cadeia produtiva e a autoestima, acumulando dívidas pessoais e estatais e aumentando incertezas no cenário da economia. Um Estado em desequilíbrio crescente, amparado apenas na força inquebrável do agronegócio, mas atravessado pela violência e vilipendiado pela corrupção, gera uma reação de repúdio que, nas urnas, acaba se traduzindo em soluções populistas de força e autoridade. Prosperam aí os Bolsonaros e seus milicianos, ancorados em um militarismo renovado e um fundamentalismo religioso que interditam o conhecimento, estimulam a mediocridade, disseminam o medo, subvertem princípios, quebram lealdades e instilam o temor e a desestímulo ao pensamento crítico.
O Rio Grande do Sul, muito antes do vigor econômico, perdeu força política no cenário nacional. Foi centro vital de renovação desde a Revolução de 1930, com a chegada de Getúlio Vargas ao poder. Depois dele, o Rio Grande só teve na presidência João Goulart, derrubado pelo golpe de 1964 que o revisionismo de Bolsonaro agora quer ensinar, nas suas angelicais ‘escolas sem partido’, como um simples ‘contragolpe’. No regime militar, os gaúchos tiveram três dos cinco generais-presidentes: Costa e Silva, Garrastazú Médici e Ernesto Geisel. A partir da retomada do ciclo civil da democracia, em 1985, nenhum gaúcho foi levado ao Planalto. O Rio Grande apequenou-se, perdeu espaço e prestígio por conta de uma classe política cada vez mais medíocre, salvas raras exceções, incapaz de responder pelos problemas cada vez mais graves no Estado e, por isso, incapaz de equacionar as questões ainda mais amplas da Federação. O Rio Grande desmotivou-se, murchou, acovardou-se – ou, como dizem os gaúchos mais críticos, “acadelou-se”.
Assim, de repente, em circunstâncias variadas, seus líderes perdem a coerência, renegam a biografia, assumem grosserias impensáveis, como aconteceu no Rio Grande nas últimas semanas. Todos, aqui e ali, por uma ou outra razão, abdicando de suas responsabilidades perante a História, ignorando o fato de que é preciso coragem para reagir, para dizer não. Conformar-se com o uso de carro blindado e falar sobre ameaças em off não é suficiente para repor a segurança e repelir a intolerância, ainda mais na situação de uma parlamentar de prestígio e respeito que tem voz, tribuna e imunidade para denunciar o arbítrio, em qualquer circunstância. Em 1940, diante do massacre iminente da Força Expedicionária inglesa cercada pelas Divisões Panzer de Hitler em Dunquerque, no litoral francês, uma improvisada frota de botes, pequenos barcos de pesca e iates cruzou o Canal da Mancha para uma operação improvável de resgate. Assim, quase milagrosamente, salvaram-se mais 300 mil soldados britânicos. Contrariando a euforia que arrebatou o Reino Unido, o primeiro-ministro Winston Churchill ensinou: “Não se ganham guerras com retiradas!”. Seria sensato que Sartori, Pedro Simon e Manuela D’Ávila revisitassem Churchill para aprender o valor perene de princípios como a coerência, a lealdade, a coragem e a elegância.
* Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é autor de Operação Condor: o sequestro dos uruguaios (L&PM, 2008).
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