*Yamila Goldfarb
Uma das estratégias da reprodução do capital é esconder as relações sociais imbricadas entre economia e política. Não à toa, nos governos mais conservadores os espaços e mecanismos de transparência, de controle social e de participação da sociedade civil são obstruídos, desintegrados ou eliminados. O caso da extinção do Consea no dia seguinte após a posse de Jair Bolsonaro é talvez um dos melhores exemplos.
Diferentes são as estratégias que o capital (ou, se preferirem, grandes empresas, grupos econômicos e financeiros) utiliza para moldar a política aos seus interesses. Nós temos chamado essas estratégias de captura corporativa. Trata-se de uma série de mecanismos que, às custas do debate aberto, equitativo, transparente e democrático, impõem à toda a sociedade o interesse desses atores em detrimento do interesse público. Podemos resumir esses mecanismos como sendo o lobby, as portas giratórias e o financiamento legal ou ilegal de campanhas.
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Soma-se a esses mecanismos uma forte estratégia de captura ideológica muito bem pensada, planejada e arquitetada que, no geral, tenta convencer a sociedade de que o que interessa a esses atores interessa a ela também. E com isso muitos são convencidos de barbaridades como: sem agrotóxicos a população não terá alimentos suficientes; o agronegócio é quem alimenta o mundo; o sistema previdenciário está quebrado; o Estado brasileiro tem muito funcionário, empresas estatais são ineficientes e corruptas e por aí vai. É, portanto, uma disputa no campo da narrativa, que não é nova e que esconde crimes ambientais, pilhagem dos territórios, violações de direitos humanos e precarização do trabalho.
Vamos ver alguns exemplos de como esses mecanismos de captura, particularmente o lobby, têm ajudado a “passar a boiada” em questões ambientais e fundiárias no Brasil.
Reportagem da Agência Pública e do Repórter Brasil mostrou relação entre lobby do agronegócio e decisões da Anvisa em relação ao paraquat, um agrotóxico de alta toxicidade associado à doença de Parkinson e mutações genéticas e que já teve o uso banido na União Europeia e China.
Conforme relatado em detalhes na reportagem do De Olho nos Ruralistas, empresários representantes dos produtores de soja, milho e algodão, assim como o representante do Instituto Pensar Agro (IPA), instrumento de lobby da bancada ruralista, estiveram presentes em inúmeras reuniões com a ANVISA.
> Lobby no Congresso e na Anvisa prolonga uso no Brasil de agrotóxico proibido em 55 países
Controlando 48% das cadeiras na Câmara e no Senado, a bancada ruralista tem concentrado esforços em reverter uma decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que proibiria, a partir de 22 de setembro, a comercialização do paraquat. Vejam só: entre 21 de setembro de 2017, data de publicação da resolução nº 177, que proíbe o paraquat, e 08 de julho de 2020, dia seguinte à proposição no Senado de um projeto para suspender a proibição, os dirigentes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) participaram de, pelo menos, sete reuniões com a Anvisa para discutir regulação de agrotóxicos. Essas reuniões foram geralmente seguidas de sinalizações favoráveis do órgão em relação ao agrotóxico.
Este é apenas um exemplo da forte presença de determinados atores na política brasileira. Essa assimetria de representação na disputa por interesses se dá a partir do poder econômico de tais atores e coloca o interesse público de escanteio. Cada uma das 38 associações mantenedoras do IPA paga uma mensalidade de, pelo menos, R$ 20 mil cada uma – ou R$ 760 mil no caixa por mês e, com isso, ajudam a custear as atividades legislativas da bancada ruralista, segundo a reportagem De olho nos ruralistas.
Mecanismos como esse de captura não são novidade. Podemos dizer que a partir do momento em que o capitalismo passou a ser organizado pela hegemonia das grandes empresas, esses mecanismos de captura passaram a existir. No entanto, há momentos de aprofundamento desses processos, como foi o que ocorreu com o advento do neoliberalismo. Agora estamos diante novamente de um momento de grande intensificação desses processos, com a retomada do neoliberalismo associada a governos autoritários, com clara posição antidemocrática e anti equidade social. Tudo isso se agrava com as posturas negacionistas, extremistas, anticiência que somente ganham força porque interessam ao pensamento conservador e, portanto, ao capital. Se analisamos, ao longo da história, os períodos de surgimento e estabelecimento de pensamentos conservadores, vemos que estes sempre vêm acompanhados da postura negacionista.
O que estamos vivendo agora é fruto disso. Dessa captura corporativa, dessa supremacia dos interesses empresariais associada ao negacionismo científico. Cientistas já alertavam para a possibilidade de pandemias como a que estamos enfrentando. Pandemias zoonóticas são resultado de um sistema produtivo agroalimentar empresarial e industrial que não respeita a natureza, os territórios, o meio ambiente e os trabalhadores e trabalhadoras. Diversos artigos e estudos têm demonstrado essa hipótese e estamos presenciando a enorme contaminação de trabalhadores e trabalhadoras nos frigoríficos do país.
Outro mecanismo que tem ajudado a boiada a passar tem a ver com a atuação do Legislativo: no relatório Conflitos no Campo 2019 da CPT podemos ver como proposições de leis nocivas aos homens e mulheres do campo e à natureza têm sido feitas sistematicamente e em número recorde. Como afirmam os autores do artigo O Parlamento e o Executivo na luta contra a reforma agrária e a preservação da natureza, presente no relatório, essas proposições “caem como cascata das duas casas legislativas e vem imprimindo uma paisagem perversa e medieval para a produção de leis nesse país.” Os gráficos a seguir, retirados do artigo citado, nos ajudam a ter a dimensão dessa cascata.
De mudanças na demarcação de Terras Indígenas a alterações na noção fundamental de função social da terra, temos proposituras que legalizam a grilagem, que permitem a caça de animais silvestres, que flexibilizam a liberação de agrotóxicos, que extinguem importantes órgãos do Estado voltados à realização da Reforma Agrária e à fiscalização do desmatamento, entre outros. Só para fornecer mais um exemplo concreto, dentre os projetos de lei que atacam o meio ambiente, temos o PL 2362/2019 de autoria do senador Flávio Bolsonaro (PSL/RJ) em conjunto com o senador Marcio Bittar (MDB/AC) que visa isentar de punição o proprietário rural que desmata sua propriedade.
A ementa do projeto objetiva revogar o Capítulo IV – Da Reserva Legal, da Lei no 12.651, de 25 de maio de 2012, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa, para garantir o direito constitucional de propriedade; na explicação da ementa fica mais claro: “Revoga, no código florestal, as áreas de reserva legal, a fim de possibilitar a exploração econômica dessas áreas”. Assim de simples, sem rodeios. Como a faca e o queijo estão nas mãos dos ruralistas, eles conseguiram manter uma isenção fiscal de R$ 84 bilhões e ainda obter o perdão das dívidas do Funrural.
Poderíamos seguir com os exemplos. Os gráficos nos mostram que não são poucos. Mas o que importa aqui é trazer à luz como o lobby de grandes empresas fabricantes de agrotóxicos, como Bayer, Basf e Syngenta, frigoríficos, comercializadoras de grãos (as trades) e produtores de commodities (e não de alimentos) conseguem se apropriar da política e, por meio de uma violência legislativa, privatizar a democracia. A boiada está passando a passos largos e vai pisoteando também a própria democracia.
*Yamila Goldfarb é doutora em ciências humanas pela Universidade de São Paulo e integrante do Vigência, uma organização que integra a Plataforma pela Reforma Política.
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A ”captura coletiva” de hoje antigamente era chamada pela imprensa de ”governo de coalizão”. Muda de nome ao sabor dos interesses de quem noticia.