Airton Florentino de Barros *
Por imposição do artigo 37 da Constituição Federal, deveria a Justiça eleitoral acabar com a festa dos partidos políticos sem existência legítima, utilizados como propriedade vitalícia de políticos profissionais e instrumento de corrupção. No centro do turbilhão caótico da política nacional, decorrente do uso criminoso dos partidos, entretanto, o TSE faz de conta que tudo corre bem, preferindo gastar tempo e dinheiro público em campanhas publicitárias em defesa da confiabilidade e segurança da urna eletrônica.
Ora, não é o partido político mero clube fornecedor de fichas de filiação, homologador de candidaturas a cargos públicos ou negociador de legenda para coligações espúrias e propagandas políticas enganosas. Há pressupostos para a existência legítima de um partido político.
Primeiro, deve ele corporificar uma ideologia única, no cotejo com as ideias dos partidos já existentes. A etimologia (partido significa dividido) já aponta para o fato de que se cuida de uma ideia dissidente das demais. A coexistência de ideologias diversas torna efetivo o pluralismo político (CF, artigo 1º, V). Mas não se admite a pluralidade de partidos com idênticas ideias, sendo vedado o plágio, a começar pela denominação, siglas e símbolos (Lei 9.096/1995, artigo 7º, §3º), visto que confunde o eleitor, facilitando o engodo.
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Segundo, a ideologia do partido há de constar precisa e claramente em seu estatuto, não podendo ser vaga ou duvidosa. Já foi o tempo em que democracia, república, liberalismo, capitalismo e socialismo ainda eram conceitos distantes das práticas governamentais e até do alcance popular. Desmandos do absolutismo incitaram a defesa da democracia. Como o absolutismo estava muito presente nas monarquias, passou-se a defender a república. As mazelas do capitalismo estimularam campanhas pelo socialismo e vice-versa. O liberalismo, de outro lado, fez o socialismo admitir o livre mercado e o capitalismo, por sua vez, a função social da propriedade. Mais recentemente, o neoliberalismo misturou todos esses conceitos filosóficos num só pacote, substituindo-os pela linguagem puramente econômica.
Democracia e república são princípios hoje consagrados universalmente como direitos da humanidade. E na Constituição brasileira são uma imposição (artigo
1º). Chamar-se hoje, então, um partido de Democrata ou Republicano é o mesmo que nada.
Na verdade, é o partido político uma congregação de pessoas que comungam a mesma ideologia, traduzida, em seu estatuto, por meio de rol de políticas públicas claras e objetivas que promete implementar caso chegue ao poder (orçamento mínimo vinculado para saúde, fixação de determinado currículo básico padrão para educação e segurança pública de tolerância zero, por exemplo), devendo seu programa esclarecer como, quando e onde agirá na realização de tais políticas.
Assim, ao votar num candidato, o eleitor não elegerá uma pessoa, mas uma ideia. Por adesão às cláusulas do estatuto do respectivo partido, estará outorgando poderes especiais ao referido candidato, a fim de que concretize fielmente as políticas públicas que sua agremiação, por meio de seu estatuto, prometeu implementar caso chegasse ao poder.
Daí dar-se à eleição a nobre condição de mandato popular.
Terceiro, a ideologia assim lançada no estatuto partidário tem força vinculante. Pessoas sem partido político não têm identidade ideológica. O partido político mal definido também torna o candidato sem identidade e, ao desprezar a existência de qualquer vínculo ideológico, libera-o de qualquer compromisso com o eleitorado, que se torna vítima de estelionatários se dizentes salvadores da pátria, que se apresentam mais por suas características pessoais do que pelas ideias (candidato coronel Fulano, delegado Beltrano, bispo Cicrano).
A maior virtude do partido político, sem dúvida, é identificar o candidato vinculando-o às ideias de políticas públicas que propaga a partir do objeto social estatutário. Daí a obrigatoriedade de filiação partidária aos candidatos a qualquer cargo público eletivo (CF, artigos14, §3ª, V, 77, §2º) e, bem assim, a imposição de fidelidade partidária (CF, artigo 117, §1º), que vincula tanto o eleito frente ao seu partido, como o partido frente ao seu eleitorado, com as responsabilidades decorrentes.
Quarto, a finalidade social do partido há de revelar licitude. Não pode anunciar, por exemplo, uma política cristã ou anticristã num Estado laico. Há de garantir, pois, políticas públicas gerais, destinadas a todos igualmente e não a interesses restritos, de pessoas ou grupos, vedada a discriminação.
Quinto, embora de natureza privada, sendo o partido político ente de finalidade social, incumbido da defesa da democracia, além de ser subsidiado por recursos públicos, incluindo a propaganda gratuita em rádio e televisão, deve obediência aos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade e eficiência (CF, artigo 37). É inadmissível que seja constituído e mantido como propriedade de diretores vitalícios, como tem ocorrido.
É inquestionável que a estrutura interna dos partidos políticos deve inspirar-se no regime democrático, com a imposição, em curtos períodos, de alternância no comando e rotatividade dos filiados nas candidaturas.
Sexto, a denominação do partido não pode ser utilizada como mero instrumento de marketing, mas como uma importante e útil informação ideológica a auxiliar a escolha do eleitor. Só assim constituído, pode o partido político cumprir sua função, dando a certeza de ser o resultado da eleição a mais fiel expressão da vontade geral. Aliás, ao atender tais pressupostos, certamente o partido contribuirá para a redução do custo de campanhas eleitorais individuais.
A propósito, de acordo com a lei, destina-se o partido político a “assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na CF” (Lei 9.096/1995, artigo 1º).
Entretanto, os partidos políticos hoje registrados no TSE, em sua quase totalidade, tendo em conta a não observância dos referidos pressupostos de regular existência, não cumprem sua finalidade institucional, servindo mais para confundir do que auxiliar a escolha do eleitor.
Basta ver que os partidos políticos registrados, no capítulo do objeto social (finalidade social da agremiação) constante de seu estatuto, sem exceção, preferem fazer constar referências vazias ou inúteis, como por exemplo “defender o regime democrático, os direitos fundamentais do cidadão, estimular a igualdade regional e coibir a discriminação, princípios que já são impostos constitucionalmente a todos eles.
Alguns líderes partidários chegam ao acinte de lançar como programa frases mais adequadas para dogmas religiosos, como “vamos substituir a velha política por uma nova política; a má política por uma boa política. Uma parte diz não querer que o segundo fique e a outra defende que o primeiro não volte. Sem debate de conteúdo efetivamente político.
O certo seria que a Justiça Eleitoral não admitisse o registro do partido político sem clara identificação ideológica no estatuto (defesa de Estado-mínimo, privatização, tributação de grandes fortunas e de dividendos societários, concentração bancária, financiamento privado da previdência social, por exemplo).
Do contrário, continuará a acontecer o que ocorreu nos últimos trinta anos, período em que todos os governos, sem exceção, de partidos de centro-esquerda, esquerda e direita, adotaram a face mais cruel das recomendações do Consenso de Washington de 1989. E assim aprovaram e mantiveram a lei de responsabilidade fiscal, limitando apenas investimentos públicos em ações sociais e a folha de pagamento do funcionalismo público, livrando, entretanto, de qualquer restrição o pagamento de juros e o serviço da dívida pública (bueiro que leva as economias do povo inteiro aos cofres dos banqueiros). Esqueceram da contrapartida, isto é, de aprovar eficaz lei de responsabilidade social.
Instituíram ainda o Estado-mínimo para os pobres, praticamente ausente para as mais legítimas necessidades sociais, mas frequentemente invocado pelos megaempresários a lhes conceder anistias, isenções e incentivos fiscais. Apenas a título de exemplo, no período do autointitulado governo de esquerda, de 2004 a 2014 o orçamento público nacional destinou R$.4 trilhões aos bancos e 350 bilhões de política compensatória aos mais pobres, numa inversão assustadora da finalidade do Estado.
Além disso, mantiveram o regime tributário, de um lado, tirânico para o minguado consumo dos miseráveis e, de outro, paternalista para o extremo luxo dos bilionários. E ainda, sob o chamado neoliberalismo financeiro, autorizaram e até estimularam a concentração bancária, em que cinco bancos, só três privados, concentram 85% das operações de crédito no país. Por isso falta financiamento ao setor produtivo da sociedade, único capaz de reverter a situação de elevado desemprego popular.
Realizaram uma política de privatização a caracterizar verdadeiro assalto ao patrimônio público. Chegaram até a anunciar a privatização do SUS, salvador da maior parte da população brasileira nos dois anos de pandemia do Covid-19.
Não foi só. Mesmo antes da recente lei da autonomia do Banco Central, ficou ele livre para perseguir a meta de inflação por meio da elevação da taxa de juros, corrosiva de todo o sistema público e privado de produção de vagas de trabalho, ao passo que nações mais estáveis economicamente defendem a meta de inflação necessariamente vinculada ao pleno emprego.
De rigor que a Justiça eleitoral cumpra o seu papel, exercendo o poder jurisdicional e regulamentar de que dispõe, exigindo melhor identificação ideológica dos partidos políticos em seu registro ou nunca favorecerá o debate de conteúdo de modo a melhor informar o eleitor.
Se isso não ocorrer continuará o país enfrentando essa tragédia de ver governo após governo, sob o comando de diversas correntes partidárias, adotando invariavelmente idênticas políticas, sob a cartilha do neoliberalismo do indigitado Consenso de 89, de forma a garantir a eterna e imutável destinação do orçamento público nacional aos bilionários e condenar à miséria vitalícia a maior parte da população.
E o que resta ao eleitor?
Receber periodicamente uma estatística de suposta intenção de votos, que numa macabra monotonia estampa em polarização os únicos autorizados a vencer, encomendada por banqueiros que, financiando por motivos óbvios as campanhas eleitorais do denominado “centrão”, sempre se contentaram com as mencionadas políticas socioeconômicas, caracterizadas por secretos desvios orçamentários. E, assim, desinformado, ficar entre a abstenção e o reprovável voto útil.
Airton Florentino de Barros é advogado, professor de Direito Comercial, fundador e ex-presidente do Ministério Público Democrático.
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