Jornalistas existem para incomodar. Incomodar principalmente o poder, pois, no exercício de seu ofício, jornalistas se investem na legítima condição de olhos do cidadão e fiscalizam permanentemente o poder e seus ocupantes, sejam eles de que matizes ideológicos forem. Por isso, é de se desconfiar de quem se diz jornalista mas se presta ao papel vergonhoso e subalterno de incensar os ocupantes do poder, dar-se à bajulação e com isso até obter favores pessoais ou vantagens financeiras muitas vezes travestidas de retribuição por trabalho publicitário.
Para que a prática jornalística se realize em sua plenitude é fundamental a ampla e livre liberdade de expressão. Liberdade que entrou em risco profundo neste momento delicado da vida política, com as restrições à atuação da imprensa na cobertura dos trabalhos da CPMI dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro. O presidente daquele colegiado, deputado Arthur Maia (União-BA), de uma canetada só abriu um perigoso precedente ao baixar um ato PROIBINDO a divulgação de “informações privadas ou classificadas como confidenciais pela Comissão Parlamentar de Inquérito sem expressa autorização”. O texto igualmente PROÍBE a captura de “imagens de conteúdo privado e de terceiros sem autorização”. O argumento para tal despautério censório é o de que se estaria protegendo a intimidade e a vida privada.
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Interesse público em primeiríssimo lugar
Ora, como dito lá na primeira linha, jornalistas existem para incomodar. Se querem evitar que fotógrafos capturem imagens de celulares ou de documentos impressos durante as sessões plenárias, que os preservem das lentes e/ou dos olhos dos jornalistas que participam da cobertura. Porque repórteres não têm obrigação alguma de se autocensurar a ponto de não divulgar informações de interesse público. Uma coisa é evitar a divulgação de imagens obtidas no interior de um hospital, por exemplo, que possam implicar na invasão da privacidade de pessoas em situação de vulnerabilidade. Ou de imagens que configuram puro e simples sensacionalismo, expondo a intimidade de uma pessoa famosa. Outra, bem diferente, é a divulgação de informações de real interesse público, como a daquele documento que permitiu ao país tomar conhecimento de que o ex-presidente Jair Bolsonaro embolsou a bolada de R$ 17,2 milhões doados por meio de pix pelos seus apoiadores, informação que constava de um relatório de inteligência financeira do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o COAF.
(Abre parêntese: Há 13 anos um grupo de denunciantes, tendo à frente o jornalista sueco Julian Assenge, revelou o conteúdo de 250 mil documentos diplomáticos dos Estados Unidos com denúncias de crimes de guerra cometidos pelos EUA. Entre eles, um vídeo da morte de civis e jornalistas em Bagdá, durante um ataque aéreo norte-americano. Informação do mais alto e relevante interesse público. No entanto, Assange continua preso em Londres, de onde pode ser deportado para os Estados Unidos. Entidades de defesa da liberdade de imprensa do mundo todo se movimentam pela libertação de Assenge. Fecha parêntese).
Jornalistas são jornalistas. Não estão jornalistas
O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF e a Federação Nacional dos Jornalistas soltaram uma nota dura e direta condenando o ato de Arthur Maia, cuja assessoria argumentou que não se trata de punir ou limitar o vazamento de documentos, mas de “foto de documento sigiloso”. Ora, se é sigiloso, que seja mantido em sigilo. Mas que não se obrigue um profissional de imprensa a negar ao conhecimento da opinião pública o conteúdo de um documento ou a troca de mensagens de relevante interesse nacional a pretexto de preservação da intimidade. Uma coisa é um fotógrafo flagrar um parlamentar em plenário visitando um site de pornografia. É direito dele, embora o local para tal prática não abarque tal direito. Outra coisa, bem diferente, é o flagrante de um acordo político capaz de trazer prejuízos ou danos a pessoas ou instituições. No primeiro exemplo, é apenas invasão de privacidade, por mais que locais públicos não sejam os indicados para quem quer assistir pornografia. No outro, é a simples, necessária e até meritória tarefa de revelar por meio de fotos ou documentos informações de interesse público.
Nas palestras por onde ando costumo dizer que não se deve deixar documentos comprometedores ao alcance dos jornalistas. Porque mesmo que eles não estejam no exercício profissional, continuam jornalistas. Pois SÃO jornalistas, não ESTÃO jornalistas. Inclusive de férias, nos finais de semana ou mesmo depois que se aposentam, jornalistas CONTINUAM jornalistas.
A nota do Sindicato em conjunto com a Fenaj adverte para o grave precedente que que se abre contra a liberdade de expressão com o ato de Maia, que considera uma extrapolação dos poderes que lhe são conferidos como presidente da CPMI.
Tudo começou com a divulgação feita pelo repórter fotográfico Lula Marques em suas redes sociais de uma troca de mensagens por celular durante uma das sessões da CPMI. “Fiz essa foto ontem, que para mim é extremamente importante. O senador Jorge Seif (PL), de Santa Catarina, explicando para uma repórter sobre a contratação que ele tinha feito de Jair Renan, filho de Bolsonaro”. Jair Renan recebe um salário mensal de R$ 7.642,84 e não consta que alguém já tenha encontrado com ele nas dependências do Senado.
Lula Marques, profissional sério, que conheço e aprendi a respeitar há muitos anos, foi proibido por Maia de ingressar no recinto da CPMI, a menos que se retrate pelo que fez. Ou seja: o que o presidente da CPMI quer é que Lula Marques simplesmente se humilhe e abdique da sua condição de jornalista. Se isso não for arbitrariedade e extrapolação dos limites do poder, será o quê?
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