A volta do historiador paulista Douglas Belchior ao PT foi saudada pelo partido como uma reafirmação de seus compromissos antirracistas. Um dos líderes da Coalizão Negra por Direitos, composta por 200 entidades engajadas no enfrentamento ao racismo, ele é uma das apostas da legenda do ex-presidente Lula para ampliar a bancada petista na Câmara e amplificar seu diálogo com o movimento negro e a periferia.
Douglas Belchior passou 16 dos seus 43 anos no Psol, partido que deixou em setembro em meio a acusações de racismo institucional. A filiação do ativista ao PT, em dezembro, foi avalizada por Lula e assinada pela presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, e pelo ex-prefeito paulistano Fernando Haddad. Ele havia sido filiado à legenda entre 1999 e 2005.
Pré-candidato a deputado federal pelo PT de São Paulo, Douglas promete atuar como voz crítica interna. Em entrevista ao Congresso em Foco, o militante diz que a esquerda também é racista, que Lula tem sensibilidade para o assunto, mas ainda esbarra em limitações para enfrentar questões raciais, e que o voto negro e das mulheres será decisivo para impedir a reeleição de Jair Bolsonaro.
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Ele também critica a escolha de Geraldo Alckmin como candidato a vice de Lula, pelo histórico da violência policial das gestões do ex-tucano contra negros. “O Alckmin era, na nossa narrativa, uma pessoa que ocupava o lugar de genocida até a existência do Bolsonaro. O uso do conceito do termo genocida só ganhou publicidade no nosso campo agora, com o Bolsonaro, mas a gente usa isso desde sempre. E isso é indefensável”, diz o ativista.
Embora ressalte que considere uma “jogada de gênio” de Lula a aproximação do petista com Alckmin, Douglas Belchior admite que a aliança causa constrangimento em sua base eleitoral. “A campanha do Alckmin me constrange, eu vou ter que passar tempo da minha campanha me explicando”, ressalta. Para ele, Lula consegue, com uma única mexida de peças, abrir caminho para sua eleição ao Planalto, atraindo eleitores de centro e centro-direita, e, ao mesmo tempo, a de Fernando Haddad ao governo estadual.
Um dos criadores do movimento UNEafro Brasil, o historiador diz que, em um eventual novo governo, Lula terá de se adaptar a uma nova realidade para enfrentar as questões raciais. “O mundo capotou mil vezes desde que a Dilma tomou o golpe. Porque tem uma mudança cultural, o mundo era um quando o Lula era presidente e é outro agora completamente diferente. A dinâmica da política, das relações, mudou muito em pouquíssimo tempo. O debate que se fazia sobre a questão racial nos governos do Lula era um, hoje é totalmente outro. Então você tem esse buraco nessa história”, afirma.
Para ele, os assassinatos de Marielle Franco no Rio, em 2018, e de George Floyd, nos Estados Unidos, em 2020, mudaram o debate racial de patamar no Brasil e no mundo.
“O debate passa a ser de conhecimento dos partidos porque mataram uma pessoa do partido, alguém que é um quadro, uma mulher que discutia questão racial, que era da favela. Isso obrigou a agenda que se impôs. Não foram os partidos que fizeram isso, foi uma imposição da realidade brasileira que assassinou uma mulher”, observa. “A Marielle mexeu a placa tectônica da esquerda. O George Floyd mexeu a placa tectônica da sociedade de fora para dentro”, ressalta.
Douglas Belchior diz que setores que acusam a esquerda de ter sido “sequestrada” por pautas identitárias demonstram desconhecimento da realidade do país ao ignorar as demandas de mulheres, negros e LGBTs.
“Não se trata de um debate identitário, porque também forjaram um conceito equivocado sobre identidade para desqualificar nossas agendas. O setor que mais usufrui de identitarismo são os brancos, só que eles acusam a gente de defender pauta identitária”, observa. “Quando as pessoas tentam desqualificar nosso discurso dizendo ‘ah, mas você só fala de racismo, desse negócio de preto’, a gente não está falando sobre isso, estamos falando do todo. Falar de racismo é falar do todo, porque todas as políticas desdobram isso”, emenda.
Em 2018, Douglas Belchior chegou a ser anunciado como deputado federal eleito pelo Psol por algumas horas depois de ter recebido 46.026 votos. Mas, na contagem final das urnas, ficou na suplência devido a uma mudança no quociente eleitoral.
Agora, com a Coalizão de Direitos, ele projeta a eleição de uma bancada negra forte, nos moldes da “Black Caucus” do Congresso norte-americano. “Eles se reúnem para pensar coletivamente a agenda negra no Congresso americano. Então nós vamos fazer isso. A Coalizão vai ter candidaturas do movimento negro, que é diferente de candidaturas negras, em diversos partidos, em uma campanha nacional.”
Para ele, os voto de mulheres e de negros serão votos de protesto contra Bolsonaro. “E quanto mais a gente incentivar essa agenda, mais esse voto vai ser determinante. Porque o governo Bolsonaro é um governo anti-negro, anti-mulher, anti-LGBT, anti povos indígenas. E ele não é um governo anti a essas agendas porque elas são identitárias ou artificiais, mas exatamente porque elas são poderosas e estruturantes”, critica. “O que mobiliza a juventude hoje a fazer luta política é a luta contra o racismo, contra o machismo, contra a homofobia e todas as fobias.”
Veja a entrevista:
Como o movimento negro, especialmente de São Paulo, vê a aliança entre Lula e Alckmin para a disputa presidencial?
Douglas Belchior – Sou um homem negro de 43 anos, então eu vivi a minha vida inteira, desde que eu me lembro, em governos do PSDB. A maioria deles de Geraldo Alckmin. Então eu apanhei da polícia por ser preto. E a minha militância inteira foi contra a violência policial em São Paulo, da polícia deles. Mas não contente com isso, não satisfeito, eu me formei professor e tem uma marca do Alckmin de bater em professor, de jogar cavalaria. Além das pautas da política, o cara é neoliberal pra caramba. O Alckmin era, na nossa narrativa, uma pessoa que ocupava o lugar de genocida até a existência do Bolsonaro. O uso do conceito do termo genocida só ganhou publicidade no nosso campo agora, com o Bolsonaro, mas a gente usa isso desde sempre. E isso é indefensável. Eu, Douglas, não o movimento, vou fazer a campanha do Lula seja qual for o vice, porque a gente não tem alternativa. E o Lula é, sem dúvida, o que a gente tem de melhor, ele acumulou para isso. O Lula é o Lula e acabou. Outra coisa são as opções dele, que aí a gente pode criticar. Mas o Lula é maravilhoso. Eu não concordo, não defendo e não faria, mas eu não tenho nenhum poder de incidência sobre isso.
Essa aliança traz mais resultados positivos ou negativos para a candidatura Lula?
Do ponto de vista estratégico, acho o Lula um gênio. Porque quando ele bota o Alckmin no jogo ele dá uma cartada de gênio no xadrez. Ele está pensando em governar depois, ele bota um cara que dialoga com a direita e com o centro, é um puta de um escudo em relação à direita para o governo, pensando na relação com o parlamento. Pensando em São Paulo, essa estratégia abre uma avenida para o Haddad virar governador, se a gente vai ter alguma chance na vida de ganhar o governo vai ser agora, e isso se confirma porque em uma tacada só ele tira dois caras que disputam a liderança, o Alckmin e o França. Eles vão ter o orçamento federal e o maior orçamento de estado, e isso para fazer a roda da economia girar para um determinado sentido, faz o país andar. Então o cara está jogando agora pensando em cinco ou seis jogadas à frente. Então, desse ponto de vista, eu acho que tem sentido a aliança. Mas podia ser outra figura e não o Alckmin pelos motivos que tocam São Paulo, o que, para nós, é indefensável.
Causa algum tipo de constrangimento a você?
Tem um efeito que é muito ruim para candidaturas como as nossas, candidaturas de movimento social. Somos aquelas candidaturas que vão ficar mais constrangidas com essa aliança. A presença do Alckmin na chapa do Lula desmobiliza qual base? Qual base social fica constrangida? Quem vai falar que terá menos motivação de levantar cedo para fazer campanha’? A base da minha campanha, que é de gente preta, movimento negro, de periferia, de mulheres. Constrange, intimida, tira potência de uma base social que a gente precisa muito na eleição, porque a eleição não está ganha. A base social do Bolsonaro é ativíssima e quentíssima o tempo todo. É 20% de maluco que não dorme fazendo campanha. E os nossos 20% que não dorme fazendo campanha? Quem seriam eles? Seriam exatamente essas pessoas que ficam desmotivadas com escolhas como essa do Alckmin. Então essa escolha desmotiva determinados segmentos, tira tesão da campanha, entendeu? Isso dói menos em candidaturas que têm menos pé no chão, menos base, que dependem menos de mobilização social. De novo, quem tem vantagem? Esses mesmos aí. Então a campanha do Alckmin me constrange, eu vou ter que passar tempo da minha campanha me explicando.
O governo Lula foi positivo para as questões raciais?
O Mário Teodoro está lançando um livro agora pela Companhia das Letras. Ele é um economista negro, maravilhoso. Ele faz um estudo pela Perseu Abramo, que, quando eu estive com o Lula pela primeira vez para discutir a minha filiação, eu até imprimi o documento e levei pra ele. O Teodoro fez um estudo de dez anos do governo petista, de 2003 a 2013, se não me engano. E aí o que ele vai identificar nesse estudo é que no momento de maior crescimento econômico do país, aquele momento em que o Lula e o governo dele tiram uma grande parte das pessoas da extrema pobreza e tem aquela multidão que vai pra linha da classe média, ali naquele momento a participação de negros entre os mais pobres aumentou 10%. Então, no melhor momento da história econômica do país, no momento em que houve o maior avanço em relação à pobreza, os pretos ficaram mais pobres.
Por quê? Há quem diga que a esquerda está presa em questões identitárias. Como você responde a esse tipo de crítica?
Entreguei o estudo para o Lula e disse que ele tinha de ler e entender que o Brasil é esse país. Nós temos que olhar pra isso. Não se trata de um debate identitário, porque também forjaram um conceito equivocado sobre identidade para desqualificar nossas agendas. O setor que mais usufrui de identitarismo são os brancos, só que eles acusam a gente de defender pauta identitária. E o Mário Teodoro mostra isso no documento: “olha, negros são maioria, mulheres são maioria, então nós estamos fazendo um debate sobre direitos de maioria”. Se você não olha pra isso, nenhum projeto econômico, nenhuma política pública vai dar conta de atender.
É preciso abraçar todas as pautas como sendo do movimento?
Estou falando isso porque para nós, a Coalizão de Direitos, acompanhamos aqui em Brasília não só os PLs que trazem no enunciado o debate racial, mas todos os assuntos. Quando as pessoas tentam desqualificar nosso discurso dizendo “ah, mas você só fala de racismo, desse negócio de preto”, a gente não está falando sobre isso, estamos falando do todo. Falar de racismo é falar do todo, porque todas as políticas desdobram isso. Qual é a liderança do movimento negro que fala sobre os efeitos das políticas do Guedes? Você não tem essa leitura. Porque as políticas do Guedes, na ponta, atingem o nosso povo. Então você tem na cobertura da mídia, porque isso não é visto com essa lupa, com essa lente, de que discutir o racismo é discutir o todo, não é discutir parte. Nós não somos parte do processo, nós somos o todo do processo, em relação a todo o debate.
O Brasil está atrasado nesse debate?
Só nos últimos três ou quatro anos a gente discute racismo com o debate ambiental, antes não discutia. Mas isso é absurdo em relação ao tema, porque tudo que diz respeito a impacto de mudanças climáticas bate pior nos negros. Por que então a gente não discute isso? Fica parecendo uma pauta de classe média branca, e não é. Economia a mesma coisa, todos os temas. Só que existe uma construção narrativa de que a gente discute qual o debate específico temático como se ele não tivesse relação com o todo. Vamos discutir previdência, vamos discutir reforma tributária, sendo que a política bate desgraçadamente na gente. O resultado dela diz respeito à nossa vida. Mas a gente não é chamado a elaborar, opinar e pensar sobre isso. E nós temos elaboração, não é ausência de elaboração. Se a gente quisesse ter um ministro da Economia negro, comprometido com essa agenda, a gente teria. Não é ausência de quadros, de formuladores de pensamentos críticos sobre isso. É que isso é ignorado, desqualificado, desmerecido.
O que falta para ter uma bancada negra de fato representativa no Congresso?
Acho que isso é, para mim, o grande papo sobre se a gente elege uma bancada negra para o Congresso Nacional agora, que é o que a gente quer fazer, então existem as diversas bancadas que nos fazem como alvo, nós queremos ter a nossa bancada. A nossa Black Caucus, que nos EUA existe há décadas, que é uma associação que reúne parlamentares negros dos diversos partidos. Eles se reúnem para pensar coletivamente a agenda negra no Congresso americano. Então nós vamos fazer isso. A Coalizão vai ter candidaturas do movimento negro, que é diferente de candidaturas negras, em diversos partidos, em uma campanha nacional.
Quantos candidatos a Coalizão deve lançar?
Vamos ter candidato em quase todos os estados. Devemos ter 40 ou 50 candidaturas, a federais e estaduais. Senado menos, governo bem menos. Porque o foco mesmo é o Parlamento. E a gente vai eleger uma bancada que vai ser maior que essa. E mais do que ser maior, ela vai surgir com esse pressuposto. Porque na última eleição a gente fez campanha casada eu, Áurea, Talíria, Patrícia, lá de Pernambuco, que era “um quilombo no Congresso”. Então a gente fazia materiais de divulgação da campanha em conjunto. E aí rolou, alguns se elegeram, outros não, e a gente já tinha no exercício desse mandato um pouco essa experiência de mandatos que são muito próximos da nossa agenda. Tanto que, quando o Bolsonaro vence, ele toma posse, tem uma deputada do PSL da Bahia que propõe a revogação da Lei de Cotas, de 2012.
Professora Dayane Pimentel, que depois rompeu com Bolsonaro, né?
Isso, mas ela propôs naquele momento. Aí nós viemos para Brasília depois de anos sem articulação do movimento negro, e conseguimos sentar com Rodrigo Maia, ele tinha acabado de assumir a cadeira. Aí ele falou “sou contra cota racial, vocês sabem, mas vocês venceram esse debate. Enquanto eu for presidente isso não caminha aqui”, e aí a gente arranca dele esse compromisso. E ali já tem esses parlamentares que é o Bira do Pindaré, Orlando, Talíria, Áurea. Uma galera negra que adere à agenda da Coalizão. Nessa campanha a gente já vai eleger todos eles a partir da agenda. Então mesmo quem não é de origem, tipo o Orlando, a Talíria, o Bira, eles estão na nossa lista, e nós vamos fazer a campanha deles, enquanto movimento. Esse grupo que se elege, se elege enquanto um Black Caucus, como uma bancada negra no Congresso. Isso pra mim é uma puta novidade política, vai ser um negócio bonito.
Como será isso na prática?
A gente fez um encontro agora em Pernambuco em dezembro, nós reunimos 50 parlamentares em Olinda. Foi um encontro incrível com parlamentares do país inteiro pensando a agenda para este ano. Então, agora mesmo, tem uma comitiva da Coalizão que foi à Colômbia, que lá tem uma candidata a presidenta do movimento negro, a Alice. E de lá eles vão para o Chile para a posse. E a ministra dos Direitos Humanos do Chile, a Antônia, ela era da OEA, e ela quem fez uma agenda grande internacional nos últimos três anos. Ela sempre foi uma aliada nossa nas agendas e agora virou ministra dos Direito Humanos lá no Chile.
Em abril a gente deve voltar aos EUA, a gente deve ter uma agenda já marcada com a Stacey Abrams, e a gente vai pra lá pra fazer uma agenda com ela, da importância do voto, da regularização do voto, de levar a comunidade negra a votar, porque isso que fez o Trump perder a eleição lá, então isso tem que ser um elemento também aqui. Em que medida o voto da comunidade negra é importante, de mulheres é importante, para derrotar o Bolsonaro, fazendo um paralelo com Trump e Biden. E vamos lá tirar foto com ela, pegar entrevista dela e tal. Ela é aquela moça da Geórgia que conseguiu eleger um senador que deu a maioria pro Biden no Senado. Então tem essa conexão com eles lá, com o Black Lives.
É preciso voltar às ruas?
Se você pega, por exemplo, durante a pandemia, na virada do primeiro para o segundo ano de pandemia, tinha uma dúvida sobre manifestações de rua. E durante toda a pandemia a gente tinha manifestações nas ruas, nas favelas por causa de violência policial, da entrada da polícia nos morros do Rio, que depois gerou a ADPF que proibia a ação policial durante a pandemia no Rio, tudo isso a gente ajudou a fazer. Então em nenhum momento o movimento negro deixou de fazer manifestação, pela obrigação de fazer, porque pandemia foi vivida de um jeito por um grupo e de outras formas por outros na sociedade brasileira. E aí quando vira o ano as duas frentes de esquerda, a Povo Sem Medo e a Brasil Popular, que é PT e Psol, estavam discutindo “e aí, vamos pra rua ou não vamos?”, por conta do medo da pandemia e aí a gente, de novo, naquele lugar politicamente correto do ficar em casa, que eu concordo, também coloca a gente num lugar de fragilidade. E aí a gente tinha um grupo indo para rua sem poder escolher ficar em casa, e aquela narrativa toda.
Era algo só do movimento negro?
Mas aí em 13 de maio o movimento negro convoca uma mobilização nacional e vai para a rua em grande escala, e os caras estavam discutindo se iam pra rua ou não, e a desgraça acontecendo. E aí a gente vai pra rua e de alguma maneira as frentes são obrigadas a aderir, porque os protestos tiveram muita proporção, a mídia começa a dar notícia, aí as duas frentes de esquerda apoiaram a mobilização da Coalizão Negra, 13 de maio é nas ruas. E aí eles marcam um ato para o dia 28 daquele mês de maio, e aí que está, olha a narrativa: “Voltamos pra rua”. Aí você pega os artigos deles todos, o Boulos fez, o PT fez. Eles consideram que voltaram às ruas no 28 de maio, que é quando as estruturas brancas voltam às ruas.
Vocês não foram levados em conta por eles?
A lupa do racismo é isso, eles não consideram a nossa experiência. O que a gente faz não tem o mesmo nível de importância. Então é como se toda a mobilização social política de esquerda ou progressista brasileira tivesse ficado em casa e só tivesse voltado pra rua quando eles voltaram. É muito grave! É inadmissível! Porque é racismo o nome disso, porque isso nos coloca em outro lugar de consideração da nossa humanidade, a nossa experiência não tem valor, só tem valor quando eles fazem.
Só voltando um pouquinho aqui, você falou que entregou lá o estudo pro Lula. E o que ele falou pra você?
Ele dá muita atenção e ele tem lido muito sobre. Eu organizei uma reunião de movimento de periferias com o Lula, e aí só tinha gente ácida, só os militantes. E aí a gente achava que ia ser uma reunião dura, que os caras iam pra cima do Lula. Quanto tempo isso durou? Até ele entrar na sala. Quando ele entrou na sala isso acabou. Tem um efeito Lula nas pessoas, é bizarro.
O que é preciso cobrar dele?
Na relação com ele nós precisamos cobrar tudo o que tem que cobrar. Então, ele se mostra muito antenado com o assunto, mas demora para incorporar, não domina conceitos, entendeu? Quer falar uma coisa e usa a palavra errada. Por exemplo, agora ele parou, porque ele foi intimado a parar, mas ele deu duas entrevistas ruins quando foi tratar de questões raciais, uma pro Mano Brown e outra pro Podpah. Aí ele usa a palavra ‘vitimismo’ e isso ofende as novas gerações do movimento negro. Mas o que ele quer dizer é o seguinte, que o povo negro é o que mais sofre com as desigualdades, e a gente por ser esse povo a gente tem que ser mais fortes e temos que ir à luta e vencer. Mas ele fala assim ‘ah, tem que parar de vitimismo e ir pra luta’, como se a gente não fosse. Então tem hora que ele formula usando conceitos equivocados porque ele é alguém que não acompanhou, está acompanhando agora esse processo. Então acho que tem uma tendência de sensibilidade nele muito grande sobre esse assunto. O quanto isso vai ser concretizado é a dúvida.
As coisas nesse sentido estão mudando muito rapidamente, né?
O curioso é que o mundo capotou mil vezes desde que a Dilma tomou o golpe. Porque tem uma mudança cultural, o mundo era um quando o Lula era presidente e é outro agora completamente diferente. A dinâmica da política, das relações, mudou muito em pouquíssimo tempo. O debate que se fazia sobre a questão racial nos governos do Lula era um, hoje é totalmente outro. Então você tem esse buraco nessa história.
O que provocou essas mudanças tão rápidas?
Tem dois acontecimentos históricos para pauta racial no Brasil e no mundo: o assassinato da Marielle e o assassinato do Floyd. Um em nível nacional, que muda tudo, muda as relações, muda patamar. O debate passa a ser de conhecimento dos partidos porque mataram uma pessoa do partido, alguém que é um quadro, uma mulher que discutia questão racial, que era da favela. Isso obrigou a agenda que se impôs. Não foram os partidos que fizeram isso, foi uma imposição da realidade brasileira que assassinou uma mulher. E isso obrigou, desde aquele momento as coisas começam a mudar, porque precisa se falar, não dá pra não falar, então você é obrigado a dizer. E, ao dizer, você compra briga com quem sempre disse. Então, por exemplo, a gente protocola pedido de impeachment em julho de 2020 contra o Bolsonaro, e nós usamos o termo “Bolsonaro é genocida”. A esquerda começa a usar depois. E com o George Floyd botou em outro nível porque a Marielle mexeu a placa tectônica da esquerda. O George Floyd mexeu a placa tectônica da sociedade de fora para dentro. O George Floyd é assassinado em junho de 2020. O que está acontecendo naquele primeiro semestre de 2020, setores médios, artistas, jornalistas, inclusive que apoiaram o Bolsonaro, caem na real e percebem a merda que fizeram. Então começam a surgir grandes frentes de defesa da democracia. Então isso está ocupando muito a cena política, ganha muito espaço na mídia. E aí explode o assassinato do George Floyd e esses grupos democráticos se sentem constrangidos a se solidarizar e se manifestar publicamente, porque o mundo está se manifestando. O Jornal Nacional ficou duas semanas discutindo racismo com a morte do George Floyd. Então esse setor médio foi obrigado a fazer isso, por uma agenda externa.
Isso forçou um paralelo entre a realidade americana e a brasileira?
Mas como é que eu vou fazer isso e não falo de um George Floyd a cada 23 minutos no Brasil? Isso gera um constrangimento. Na Coalizão a gente faz um manifesto “enquanto houver racismo, não haverá democracia”, justamente como um contraponto aos movimentos de defesa da democracia que estavam acontecendo porque perceberam que o governo Bolsonaro é um governo antidemocrático, autoritário. Aí a nossa pergunta é: que democracia é essa que vocês estão defendendo? Porque para nós nunca houve. Então eu acho que isso é um marco que muda tudo.
O PT se adequou a esses novos movimentos?
E o PT está no pior momento da vida dele no momento dessa mudança, está pra baixo, sendo alvo de toda a desgraça que impuseram. Tem uma parte que a culpa é de responsabilidade dele próprio, pelos seus erros, mas a maior parte não é, é a elite brasileira colocando como alvo seu inimigo histórico, que é o PT. O PT é o maior inimigo da elite brasileira, isso não tem dúvida, e continuará sendo. Eles gostam do Psol, porque é muito mais fácil ser aliado do Psol do que do PT. Não é à toa que o Psol tem muito mais alianças com a classe média, muito mais afloradas, e com setores como o mercado, banco, e o PT não. Eu conheço pessoas lá em São Paulo, gente rica, que odeia o PT e vota no Psol, porque o Psol conversa com esse momento mais fresco da política. E o PT não, eles têm ranço histórico e de tudo o que foi construído em torno deles. Então nesse momento de mudança, de transição, que pra mim é uma mudança cultural na política, o PT está em declínio, vivendo seu pior momento, e o Psol explode, porque conversa com a agenda. Mas agora eu acho que as coisas voltam, porque é um momento de desequilíbrio. Eu preciso acreditar que o PT vai oxigenar.
As pesquisas apontam que a maior parte dos negros não votam no Bolsonaro, mas ainda tem uma parte significativa que vota, assim como homossexuais e outros grupos. Como você vê isso, porque isso acontece? Acha que isso vai se repetir com a mesma intensidade das eleições passadas? E o que você acha do Sérgio Camargo?
A Zélia Amador, que é professora da Universidade Federal do Pará, diz o seguinte: que no Brasil raça informa classe. Raça primeiro. E isso é uma ofensa para a nossa tradição de esquerda. A tomada de consciência racial ela é necessariamente uma tomada de consciência de classe, não tem margem. Porque os pretos são os de baixo, acabou. A consciência de classe ela tem uma mescla de classe, inclusive ela é tomada primeiro pelas classes abastadas, pela classe média. Não somos nós operários, os mais pobres, que alcançamos essa consciência em uma maior escala, e eu acho que a gente está avançando na tomada de consciência de classe. O que a gente tem nos últimos anos é o aumento da identidade racial no Brasil, da reivindicação. Quando você vê a juventude, as meninas parando de alisar o cabelo e assumindo o crespo, é uma tomada de identidade racial. Isso elevado à política aumenta a consciência também do voto negro.
Isso tende a ser mais forte este ano?
O voto de mulheres e o voto negro, sem dúvida, vão ser um voto de protesto ao Bolsonaro. E quanto mais a gente incentivar essa agenda, mais esse voto vai ser determinante. Porque o governo Bolsonaro é um governo anti-negro, anti-mulher, anti-LGBT, anti povos indígenas. E ele não é um governo anti a essas agendas porque elas são identitárias ou artificiais, mas exatamente porque elas são poderosas e estruturantes. Então mais uma prova de que nós somos fundamentais e estruturantes da realidade brasileira e da necessidade do povo brasileiro é de que quem elege essas agendas como alvo é a extrema direita, em todas as suas manifestações, narrativas e nas ações políticas. Então eu não tenho dúvida de que quanto mais as campanhas de esquerda explorarem essas agendas, mais vai mobilizar as pessoas a votar contra o Bolsonaro e mais vai provocar ele a falar sobre isso também. Tem algo que eu disse duas vezes para a Gleisi (Hoffman) quando estive com ela: o que mobilizava a juventude nos anos 80, naqueles anos de construção do PT, naqueles anos de organização sindical, eram valores relacionados ao resgate da democracia, ao fim da ditadura, direito ao voto, eleições diretas, e os valores da esquerda, socialismo e aquela coisa toda. Isso é o que tocava os afetos, sobretudo da juventude, o imaginário revolucionário ligado a essas agendas. O que é que toca os afetos e mobiliza hoje a juventude não são esses aspectos. O pressuposto do revolucionário para a juventude hoje não é mais, como era nos anos 80 e 90, a experiência de resistência à ditadura. Quais foram as experiências revolucionárias que o nosso país tem para servir como inspiração para a luta política hoje? Para aquela geração era a reação à ditadura, para essa geração não é, para geração de agora é a luta histórica pelo direito das mulheres. Os protestos mais quentes, mais vivos, mais pujantes, com a elaboração mais radical vêm daí. O que mobiliza a juventude hoje a fazer luta política é a luta contra o racismo, contra o machismo, contra a homofobia e todas as fobias.
A esquerda tem dificuldade de entender isso?
Como que os caras não entendem isso? Eu fico desesperado. Porque assim, você vê um cara como o Lula dizer ‘ah, vocês têm que parar com essa agenda identitária aí, nós temos que falar das coisas gerais’. Então ele não entendeu nada, porque isso é o geral. Você quer alguma coisa mais geral do que a agenda pela vida das mulheres? Que toca todas as dimensões de existência, desde um parto humanizado até a creche, a escola pro filho, a segurança que ela vai ter de que o filho vai sair e vai voltar, não vai ser morto pela polícia, até o acesso à escola ao trabalho, é toda a dimensão da vida na agenda das mulheres.
Na agenda racial a mesma coisa?
Se você pega lá o estudo que mostra que mulher negra recebe menos anestesia que mulher branca no parto. Aí você pega todo o ciclo da vida, porque é na hora do parto e na hora da morte, e pega todos os índices de mortalidade, em todas as motivações de morte, não só morte pela polícia. Assim, em 80% que a polícia mata é preto, é terrível? É. Mas a sociedade pode ser melhor que isso, e não é. Porque os índices de morte violenta promovidas pela polícia são os mesmos de mortes generalizadas. A sociedade mata preto tanto quanto a polícia mata. Se você armar essa sociedade, você está armando a sociedade que mata pessoas negras. É impressionante, porque as mortes fora da ação do Estado também afetam mais a população negra, 70% na proporção. A proporção 70/30 se repete nas duas pontas. Então é uma espelho da outra. Então em todo o ciclo da vida, raça e gênero são fundamentais no exercício e na possibilidade da plenitude da vida de um indivíduo de um grupo ou de outro. E qual a novidade política? É que existe uma percepção maior disso. E a percepção na sociedade, isso em todos os temas, ela primeiro acontece na sociedade, depois que ela reflete nas instituições. Então as instituições estão sempre atrasadas. Você tem a mobilização, você sabe que a sociedade quer, mas demora a virar regra, demora a virar lei. E depois que vira lei demora a virar cultura.
A sociedade percebe isso?
Mas quem tem que perceber isso primeiro somos nós, os partidos de esquerda, é nossa obrigação. Porque quem enuncia a sua existência a partir da lógica da igualdade, somos nós, então nós temos que ser coerentes. Quem diz isso é a Sueli Carneiro, ela diz que entre esquerda e direita ela continua preta. Mas em que contexto ela diz isso? Em um contexto de cobrança da esquerda. Porque ela diz “da direita eu não espero nada. Não vou esperar que a os fazendeiros, os latifundiários, os escravocratas queiram justiça para nós”. Porque quem prometeu parar isso foram vocês de esquerda que trabalham pela igualdade, pela justiça, pelo socialismo, então façam. A questão é que no Brasil a questão da igualdade passa por nós. Democracia passa por nós. Então ela está cobrando que sejamos coerentes com nosso discurso. O que é ser coerente num país como o nosso, com 56% de pessoas negras e que tem menos de 10% de negros em universidades, que tem 5% de negros ocupando lugares de gerência no mundo corporativo? Não tem, é tudo mentira.
Como você a presença de negros como Hélio Negão e Sergio Camargo no governo Bolsonaro?
Sociologicamente não tem nenhuma novidade nisso. A pergunta é a seguinte: a polícia da Bahia é majoritariamente negra, e a polícia da Bahia mata negros. Isso não é uma contradição? Não. Porque quem morre são negros. Eventualmente você tem uma mudança no sujeito que promove na ponta a violação. Mas você nunca ou quase nunca tem uma inflexão no alvo. Então assim, pouco importa se o gestor público é preto ou branco. O que importa é que a política é anti-negro. O Clovis Moura, na Sociologia do Negro Brasileiro, diz que um policial negro no seu trabalho ordinário, na prática da sua função, naquele momento ele é sociologicamente branco. Porque naquele momento ele está prestando um serviço para a hegemonia do poder branco no Brasil, da supremacia branca. E a supremacia branca coloca negros a seu serviço. Se quiser fazer uma leitura marxista, está fácil fazer greve no Brasil? Se chamar um piquete, a gente vai ter na fábrica? Não vai, porque falta consciência de classe. O operário trabalha muito para virar encarregado, pra depois pisar no operário, é a dinâmica dessa sociedade, que nos coloca para nos oprimir, e nós prestamos esse serviço. Quem mata no campo não é o fazendeiro, é o jagunço dele, a serviço daquele poder estabelecido. Então essa é uma falsa polêmica criada para desqualificar o nosso argumento. Isso não invalida a nossa tese, pelo contrário, ela reafirma. Porque você tem um sistema, um senso ideológico que coloca toda a sociedade a serviço de uma hegemonia política, ideológica, cultural.
Mesmo num Estado governado pelo PT há muitos anos?
Mesmo num Estado governado pelo PT há muito anos. É que no caso da Bahia é um caso especial. É porque realmente o Rui (Costa) é um absurdo. Ele não reconhece. Agora mesmo a polícia matou três garotos lá na Gamboa, repercutiu. E hoje, como eu estou no PT, eu tenho pontes. Eu conversei com interlocutor, lá de São Paulo, a gente estava atendendo as famílias da Gamboa pela Coalizão. Eles não conseguem falar com o governador, eles não têm ressonância dentro do governo. Aí eu falei que a gente não pode aceitar’ isso, é um governo do PT, e aí os caras falaram “esquece, já tentamos, não adianta’. As próprias pessoas do PT. O cara não tem um pingo de sensibilidade, não adianta. O Felipe Freitas é incrível. Sabe que a vanguarda da intelectualidade brasileira é negra, né. Falei pro Haddad ‘você precisa usar isso, cara. Porque você tem parte nisso’. Os governos do PT colocaram em prática políticas recuadas que o movimento sempre reivindicou. E o fruto disso hoje é uma vanguarda intelectual negra. Quem mais vende livro, e os temas, são todos nossos, e o Freitas é um deles, ele é fora da curva total, precisa ser ouvido e aproveitado.
Há uma cobrança sobre líderes do movimento negro para que não sejam agressivos na luta?
Acho que isso vale pra tudo, mas existe um problema nesse raciocínio: a gente ser cobrado disso. Porque se tem um povo que tem motivo pra ter raiva somos nós. De vez em quando eu posso adoçar, mas é um direito meu de fazer, agora se eu não quiser, não pode ser uma cobrança. Agora que, sem dúvida, o que diz respeito à linguagem, o lastro da mensagem, isso é técnica até de comunicação, e tem coisas que funcionam melhor. Mas não nos cobre isso porque não seria justo.
No Twitter, você fez um paralelo entre a comoção criada em torno da guerra em Kiev e do assassinato de jovens negros na Gamboa, em Salvador. Você acha que as pessoas se chocam mais com a guerra lá fora do que com as nossas guerras?
A síntese é a seguinte: é absolutamente nobre esse afeto que nos toca quando a gente vê um ser humano sendo violado, na sua dignidade, ser violentado, ser vítima de atrocidade. Então é incrível que a sociedade se comova com o que acontece agora na guerra. Qual é o problema? É que essa comoção é seletiva, a gente não sente da mesma maneira a mesmíssima violação a outros corpos, a outros grupos. Isso deveria ser motivo de terapia coletiva nacional. É disso que se trata. Por que isso é racismo? O que é o racismo, conceitualmente? É o sistema político econômico de dominação, mas ele pressupõe, para se manter de pé, a ideia de que existe um grupo que detém menos humanidade do que o outro. O que é o racismo se não a ideia de que existe um grupo humano detentor de humanidade superior às demais. É a ideia de superioridade de um grupo sobre outro, o racismo não é a ideia de inferioridade. É a tese de que brancos, arianos, anglo-saxões, são mais perfeitos frente à imperfeição dos demais e a ausência de humanidade em outros, e não o contrário. Então a gente está contaminado por esse racismo apto a sentir as dores de quem a gente reconhece a humanidade e não sentir em quem a gente não reconhece. Então é um horror olhar para aquela guerra e ver aquelas pessoas sendo mortas, mas tudo bem o Moïse, os meninos da Gamboa. E tudo bem as guerras na África, os bombardeios no continente africano que estão em guerra, ou os sírios. De alguma maneira ele serve de primeiro chão para a organização das demais opressões, porque você parte de um pressuposto. O que justifica uma mulher receber menos anestesia do que outra? É o mesmo paralelo, o mesmo pressuposto. Nos animalizam o tempo todo, descredibilizam a nossa formulação, a nossa produção o tempo todo. Isso é o racismo, é o resultado dele. Primeiro enquanto um organizador do pensamento e do sentimento. Então o paralelo com Kiev é esse.
É uma questão mundial?
Mas não é no Brasil, é no mundo. Tem quantas guerras acontecendo no mundo e a gente só está falando dessa? E não é coincidência, não é só a economia, não é só interesse geopolítico que determina, que é o que a gente está dando atenção. Porque todas as guerras têm motivação econômica e geopolítica. Então o que diferencia essa das outras, no final das contas? E olha o identitarismo branco aí, são brancos se matando entre si. E quem não pode passar são os pretos. São muitas camadas. Então eu acho que é discutir mesmo o conceito de humanidade, porque, no final das contas, racismo é sobre isso. Racismo é sobre plenitude de humanidade.
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