Sou Helena Theodoro de Oiá, professora do Programa de Pós-graduação em Filosofia do IFCS/UFRJ e tenho um prazer muito grande de estar aqui com vocês para falar das nossas tradições ligadas ao conhecimento das ervas e da preservação da vida e da cura na comunidade.
Falar da tradição do povo preto é falar do princípio dos saberes fundamentais da humanidade, já que tudo começou lá atrás, há dez mil anos no Egito, na Etiópia. Com base nesses conhecimentos da vida em diferentes territórios, o povo preto chegou à compreensão do que sejam as energias da natureza e o comportamento humano. O que temos em nossas comunidades terreiros de candomblé e de umbanda trazem para nós essa memória ancestral, esse conhecimento que veio, vamos dizer assim, nos tumbeiros – nos navios negreiros, que tem que ser entendido não apenas por uma chegada aqui, mas pelo conhecimento que vem de lá, das culturas africanas. Temos, assim, um conhecimento muito grande em cada um de nós, oriundo do território de origem, de nossa ancestralidade africana.
Esta relação nos dá o entendimento de que, se eu estou numa região de savana, o tipo de animal, o tipo de clima e o tipo de alimentação, de vida que eu vou ter é um, mas se eu estou numa região de mar, eu vou ter outro tipo de clima, outro tipo de animal, outro tipo de alimentação, outro tipo de vegetação.
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O entendimento dessas diferenças faz com que nós possamos, ao estudar cada um dos orixás, que são as energias da natureza, porque nós somos energias da natureza, nos permite, então, que nos conheçamos mais. É importante entender que na nossa tradição cultural africana, nós somos ar, pela respiração; somos água, no sangue e hormônios que correm em nosso corpo. Somos, também, terra, que compõe a nossa pele e os nossos órgãos. Concluindo, temos o fogo, do calor gerado pelos batimentos cardíacos e movimento dos nossos órgãos que nos dão 36 graus e meio de temperatura. Sendo assim, não temos a divisão que é feita na tradição cristã de humanos de um lado e de natureza do outro. Nós somos natureza. Nós somos o que comemos. Nós somos o que entendemos de integração com o meio ambiente. Para isso, quando olhamos uma folha, a gente vai entender qual é o seu papel, vamos descobrir qual é a sua função! Porque a flora é resultado do crescimento de uma semente. Todos nós entendemos que deveremos ser semente boa. Por que semente boa? A semente boa é aquela que cria elementos básicos para chegar ao desenvolvimento pleno, como flor ou como fruto. E nós somos frutos de sementes boas.
Pensar no futuro humano nos leva ao encontro do princípio masculino com o princípio feminino que, através do movimento e da alimentação, gera novas vidas. Cria flores humanas. Por isso, a grande importância de entender que as folhas, os frutos, os legumes e flores compõem a nossa vida, a nossa sobrevivência. Entender que tipo de folha corresponde a um determinado orixá, se ele é do ar, água, terra ou fogo, nos dá uma relação do território em que vivemos e uma consciência de que eu posso ou não posso comer.
Aqui no Brasil, no mês de dezembro, não deveríamos comer as mesmas coisas que as populações da Europa, que estão no inverno e que têm outro tipo de território e alimentos disponíveis. Durante muitos anos nós fomos acostumados a ver todo um processo que vem da Europa como sendo os nossos remédios, como sendo a nossa maneira de sobrevivência. Na verdade, o que eles chamam de cura quando se usa uma erva, um chá ou um tipo de procedimento ligado à comunidade terreiro, de umbanda ou de candomblé, eles querem questionar como sendo feitiço ou curandeirismo, quando na verdade é um saber ancestral. Como se fazem os remédios? Quando verificamos os remédios oriundos dos laboratórios, eles são provenientes de folhas, eles são provenientes de frutos e flores, eles são provenientes de elementos da natureza.
Quando nós usamos as nossas folhas para fazer os nossos chás, trazemos um saber que nos foi passado pela ancestralidade, entendendo qual é a folha que faz bem para aquela pessoa, qual é a folha que nos ajuda na digestão, qual é a folha que é boa para preservar os nossos pulmões, para diminuir o cansaço, para influenciar nas nossas terminações nervosas! Ao tomarmos um banho de folhas, acalmamos diretamente as dendrites que estão na superfície da pele e ficamos mais calmos, mais serenos! Não há nada de diferente nem de feitiço nisso, é simplesmente conhecimento ancestral. Precisamos aprender a lidar com o preconceito gerado pela literatura eurocentrada em relação ao uso dos nossos chás. Não entender como as benzedeiras conseguem salvar crianças que foram desenganadas no pensamento europeu, se liga ao desconhecimento dos nossos saberes que resultaram da observação do mundo e das pessoas há muitos séculos antes de Cristo.
Se torna necessário entender que existe uma outra lógica na nossa relação com o mundo e que a lógica de nos olharmos como sendo o produto do que comemos e o produto da nossa memória ancestral, vem de uma experiência anterior, que chega para nós, através das histórias, através dos espíritos. As imagens, os nossos contos, as palavras e cânticos dos nossos orixás, nos mostram o que? Não é apenas , vamos dizer assim, uma forma de receber determinados tratamentos. Eles implicam no envolvimento total do seu corpo! Por isso, nós nos curamos comendo, bebendo, cantando, dançando, usando todos os meios e modos de movimentação do nosso corpo e da nossa mente, no sentido da alegria, no sentido do encontro, no sentido do coletivo.
Estudar as nossas ervas, estudar as folhas, que são boas para a nossa alimentação, é básico e fundamental. Quando você vai ao nutricionista para fazer um tratamento básico de saúde, por estar com problema renal ou problema estomacal, eles vão aconselhar imediatamente que antes de você se alimentar com a carne, você coma uma salada. Você primeiro use as folhas, porque as folhas ajudam a preparar o organismo para o seu funcionamento pleno. E precisamos lembrar que a comunidade negra não tem atendimento médico suficiente, não tem uma moradia adequada, não tem uma disponibilidade de água potável. Resolvemos nossos problemas de saúde, porque estamos profundamente ligados a essa preservação do nosso corpo pela integração com a natureza. Não é à toa que em cada comunidade terreiro, você tem um espaço social, onde as pessoas se aglutinam, se aconselham, se alimentam e se alegram!!!
Neste espaço a gente preserva todas as ações relacionadas aos orixás e necessárias para a nossa alimentação e para a nossa cura. Comer não é apenas um prazer para o corpo, é também uma preservação desse corpo. O reconhecimento de que os chás nos ajudam a ter o melhor funcionamento dos rins, do estômago, da movimentação do corpo e do pensamento, que se torna mais claro e mais nítido, é muito importante. Neste espaço se lida com a diferença e se entende o outro como enriquecimento do nosso ser e estar no mundo. Não é à toa que ao cobrir o chão de flores e folhas dentro de uma comunidade, faz a gente ter todo o envolvimento dos nossos sentidos: é o olfato, o cheiro das flores, o cheiro das folhas, que nos levam a estar num sentido de alegria, felicidade, de convívio, de bem-estar, de encontro. Saber o poder das folhas é indispensável.
Eu quero dizer a vocês que, infelizmente, a gente sabe que tem um país com uma riqueza imensa de flora e de fauna, mas não tem o reconhecimento do nosso conhecimento ancestral africano e da utilização dessas folhas e desses animais de forma adequada, o que não permite a sobrevida da comunidade brasileira. O corpo humano pode chegar até os 100 anos, pois tem estrutura para isso e esta terra tem condições de alimentar e manter saudável sua população, mas falta vontade política e uma educação antirracista!!!
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