Há duas semanas 165 personalidades mundiais (incluindo 92 ex-presidentes e primeiros-ministros) lançaram um apelo para a criação de uma força-tarefa executiva a fim de coordenar esforços globais no combate ao covid-19. O apelo reconhecia que o combate à crise de saúde não se revolverá com ações nacionais isoladas, nem com a criação de uma vacina ou tratamento em alguma nação qualquer. Serão necessárias ações coordenadas globais de curto e médio prazos em saúde, saneamento básico, combate à pobreza, etc. No momento que as nações se isolam e fecham fronteiras, e que 2.5 bilhões de pessoas estão confinadas em casa, paradoxalmente personalidades internacionais reconhecem a necessidade de uma ação conjunta e humanitária em escala mundial. Em outras palavras, os lideres indicaram a necessidade de se pensar uma governança mundial. Como disse alguém, o combate ao vírus está provocando uma antecipação do futuro.
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A proposta de criação de uma governança mundial não surgiu com o covid-19, evidentemente. O vírus apenas recolocou em cena uma antiga reivindicação de personalidades como o filósofo Bertrand Russel, o físico Albert Einstein, o sábio indiano Sri Aurobindo, entre outros. Nas últimas décadas a ideia ressurgiu devido aos processos de globalização do comércio, indústria, transportes, telecomunicações e fluxos de dados. O argumento principal é que o planeta se transformou em uma grande comunidade, uma aldeia global cujos problemas transbordam as fronteiras nacionais. As crises econômicas, o desarmamento, as mudanças climáticas, a erradicação da pobreza, as migrações, o crime organizado e outras questões urgentes ultrapassam os limites de cada país, exigem encaminhamentos transnacionais
Não há uma proposta única nem consenso sobre o que virá a ser um executivo global. Muito debate será necessário. Há inúmeros obstáculos políticos, desde o nacionalismo exacerbado até as diferenças étnicas e religiosas. Reações à atual crise na saúde indicam tomadas de posição contrárias à cooperação global, e elas não partem de fundamentalistas do terceiro mundo. A recente decisão de Donald Trump de cortar as doações norte-americanas para a OMS é exemplo de um nacionalismo egoísta. Primeiro a América (America First), era o slogan de campanha de Trump. A internet está povoada de manifestações raivosas de setores conservadores que acusam a governança mundial de ameaçar as liberdades. Será também difícil governantes abrirem mão da soberania absoluta em prol da soberania mundial.
A proposta terá de ser necessariamente de um governo mundial democrático, ou não será: um órgão representativo do conjunto das nações do mundo, democraticamente constituído, que equilibre as forças políticas e econômicas do planeta, sem impositivos, fluindo do local para o global, de baixo para cima. Neste momento de exacerbados nacionalismos, a proposta pode parecer utópica. Não há um modelo prévio, debates serão necessários. Há, entretanto, experimentos que fornecem pistas de encaminhamentos futuros. Como se estruturará um uma governança global democrática? Que molde seguirá?
A Comunidade Econômica Européia (UE) criada em 1992 administra hoje interesses comuns de 27 nações independentes da região, que abriga mais de 500 milhões de cidadãos. Há 24 idiomas oficiais e outras 150 línguas são faladas. Não é fácil levar adiante um empreendimento dessa dimensão e diversidade levando-se em conta que a Europa é um continente conturbado, de históricas rivalidades. Apesar das discórdias, é bom recordar que a iniciativa da UE ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2012, demonstração inequívoca de uma iniciativa transnacional para fins pacíficos e o bem estar social. Os cidadãos de cada país membro tornaram-se cidadãos de uma comunidade sem fronteiras. A UE criou o Parlamento Europeu que tem 750 representantes da comunidade eleitos por sufrágio universal direto. O poder executivo é a Comissão Européia, cujos 27 comissários elegem um presidente executivo. É um exemplo de sucesso de um governo transnacional com representação da sociedade civil que não fere a soberania de cada país. Nações independentes abriram voluntariamente mão de pequenas individualidades a fim de consolidar a soberania continental. Por isso, no momento que a Inglaterra sai do bloco, outras dez nações esperam na fila para serem admitidas.
Outras organizações voluntárias transacionais podem servir de inspiração. A própria ONU é uma organização voluntária supra-nacional. Embora a Carta das Nações fale na promoção do progresso humanitário e as agencias especializadas se dediquem a atividades sociais, a ONU é uma coleção de estados nacionais que defendem os interesses de cada país mais que o bem estar do planeta. A ONU não é uma comunidade com poder deliberativo nem executivo, suas decisões são apenas recomendações ou metas propostas. Nada impede que a ONU se transforme no futuro em um órgão de poder político e competência executiva, embora muita água terá de passar por baixo da ponte antes de um redirecionamento neste rumo.
O que se propõe como um governo mundial – independente do formato que vier a tomar – terá de ser uma organização democrática com uma estrutura representativa civil, e um órgão executivo que a ONU não tem. Uma organização onde não apenas os governos, mas os cidadãos do mundo se sintam representados. Será necessário preservar a soberania das nações, mas é imperativo conciliar a autodeterminação com as necessidades maiores do planeta.
Por enquanto, como diz o ambientalista Maurício Andrés, a governança global é um exercício de imaginação visto com entusiasmo por uns, mas com suspeitas e criticas de idealista e utópico por outros. A tensão por que passa o mundo neste momento de disseminação do covid-19 trouxe desafios para os quais as nações não estavam preparadas para enfrentar isoladamente. Ao mesmo tempo, gerou uma conjuntura singular para pensar um governo mundial. Uma propícia oportunidade de se dar um passo além rumo a um governo transnacional democrático, humanista e justo. Para salvar a humanidade e o planeta.
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