Por mais injustificável que seja a invasão russa sobre a Ucrânia sob qualquer ponto de vista do Direito Internacional, o fato é que essa ação colocou os EUA e seus aliados na defensiva. O ocidente se compadece do drama dos ucranianos, mas não está disposto a colocar seus soldados nesse campo de batalha porque sabe que ali encontrará a segunda potência bélica do planeta. Assim, restaram as sanções econômicas (as mais severas aplicadas a um único país) que têm efeitos negativos sobre a economia global que, caso se estendam por muito tempo, podem minar a coesão ocidental sob a liderança dos EUA que são os menos vulneráveis a esses efeitos econômicos colaterais. Nesse contexto, a guerra na Ucrânia pode estar lançando as sementes para o surgimento de um mundo cada vez mais multipolar.
O receio de enfrentar os russos em um campo de batalha respalda-se no risco de uma escalada que pode elevar o confronto a uma dimensão nuclear. A título de comparação, é importante lembrar que a coalizão liderada pelos norte-americanos não titubeou em fazer-se presente no Kuwait diante da invasão iraquiana em 1990. Da mesma forma que a Ucrânia, o Kuwait não é membro da Otan. Mas, por razões óbvias envolvendo recursos de poder e geoestratégia, a coalizão saiu em defesa do Kuwait. A história recente está repleta de exemplos em que os EUA e seus aliados embrenharam-se confiantemente em intervenções estrangeiras onde a assimetria de forças beneficiava, sobremaneira, os norte-americanos.
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Assim, evidencia-se o fato de que até o presente momento a Rússia, nesta guerra, colocou-se, abertamente como o maior desafio à hegemonia bélica dos Estados Unidos desde, pelo menos, o colapso da União Soviética em 1991. É inegável que a Rússia está diante de enormes desafios impostos pelas sanções econômicas que visam minar o apoio político ao presidente russo no cenário doméstico e internacional. Contudo, ainda que seja impossível prever como a Rússia lidará diante de um futuro com grandes desafios, o fato é que os EUA e todo o sistema internacional que desenhou para o imediato pós-2ª Guerra Mundial está sendo contestado de forma a promover, diante de nossos olhos, um gradual ordenamento de um sistema internacional multipolar. Talvez este acontecimento seja a maior e mais explícita contestação à Pax Americana.
Neste momento, em que a aliança ocidental evita o confronto militar direto com a Rússia, os Estados Unidos buscam, de todas as formas, manter a estrutura petróleo/dólar como lastro das transações comerciais internacionais diante das reais alternativas que vinham paulatinamente consolidando-se como opção ao dólar e que ganharam relevância diante das incertezas da crise russo-ucraniana. Na periferia global, já se fala na emergência deum novo movimento de países “não-alinhados” na África, América Latina e Ásia (algo do tipo, não tenho nada a ver com isso!).
Caso tenhamos um acordo de paz que contemple as principais demandas russas, acredita-se que a Rússia, e talvez Putin, possam sair relativamente fortalecidos no médio e longo prazo. É importante lembrar que a Rússia mantém intacta toda a sua infraestrutura e a “segurança” dos civis! Adicionalmente, como é sabido, estudos atestam que as sanções econômicas, em geral, têm pouco efeito sobre o comportamento do governante do país alvo e, na maioria das vezes, as sanções acabam tendo um efeito inverso ao desejado, pois em muitos casos são instrumentalizadas como forma de culpar os países que promovem as sanções pelo sofrimento pelo qual passa o país alvo dessas mesmas sanções. Assim, alcançado um acordo de paz entre russos e ucranianos, espera-se que alguma negociação entre Rússia, Estados Unidos, Europa e China estabeleça os caminhos para a retirada das sanções econômicas à Rússia como forma de distensionar as relações econômicas globais e reincorporar os russos aos fluxos econômicos e comerciais.
Observa-se, assim, que a guerra russo-ucraniana impõe uma nova dinâmica na periferia global, liderada de forma articulada pelos Brics ou individualmente pelos seus integrantes em suas respectivas áreas de influência, e que há tempos busca a construção do mundo multipolar com alternativas multilaterais independentes e fora da influência hegemônica dos Estados Unidos e seus principais aliados. A construção desse novo ordenamento dependerá, também, de uma política de “ambiguidade estratégica” que deverá pautar cada vez mais as relações internacionais entre os países do Sul-Global e as potências tradicionais do ocidente que se darão, muito provavelmente, em um ambiente de crescente complexidade.
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