A guerra na Ucrânia é um evento global. Valores universais como os direitos humanos e a livre determinação dos povos sofrem, as cadeias intercontinentais de comércio rompem-se, a comunicação gira em tempo real por toda a terra, as armas nucleares ameaçam a vida humana como gênero. Em sua globalização a guerra aportou no Brasil e desencavou tristes peculiaridades nacionais.
Entre nós, parte dos que se manifestam apoiam de forma integral a posição da Ucrânia, baseados na primazia da autodeterminação dos povos e no valor da vida humana, entende que a Rússia preferiu as armas à diplomacia e avança sobre um país que não lhe hostilizou na medida proporcional ao ataque sofrido. Esse grupo, a eles me associo, julga que a guerra abole a vida, sem necessidade de mais nada para formar juízo contrário ao conflito.
Há também os que apoiam tout court a Rússia, dos quais pouco saberia dizer pela excentricidade que tal grupo transborda.
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Contudo, por aqui viceja um grupo que nos parece formado por “híbridos”, “condicionais”, curiosas criaturas. Estas apoiam “condicionalmente” a Ucrânia. Sua posição é o famoso “a guerra está errada, mas os EUA são imperialistas”, “a Otan avançou demais no leste europeu”, “a União Europeia quer levar sua própria forma de democracia para o mundo”, entre outras considerações adversativas.
A primeira camada argumentativa dos condicionalistas nutre-se do realismo das relações internacionais. A Rússia teria alguma justificativa para suas atitudes devido à invasão do seu espaço vital pelas forças do Ocidente. Um país, a seguir o argumento, deve tolerar o menos possível as ameaças à sua existência, e os potenciais inimigos fronteiriços ameaçam tanto mais. Desde a década de 1990 as potências ocidentais teriam avançado sobre o espaço vital russo, e agora um basta foi dado. Se não bastaram os avisos, agora recorreu-se às armas.
A segunda camada do argumento condicionalista lança EUA, União Europeia e Otan no cadinho das motivações político-ideológicas. O que pode ser considerado imperialismo russo na Ucrânia não poderia ser negado por praticantes do mesmo imperialismo, que são as potências ocidentais. Aqui resgatam-se a divisão da África, o antigo e o novo colonialismo na América e na Ásia. Entram também nesse frágil edifício argumentativo sentimentos de um passado em que o mal e o bem eram muito claros na guerra fria, e cartilhas marxistas ensinavam que as ditaduras soviéticas levavam a igualdade e o bem ao povo, enquanto as do ocidente apenas exploravam as classes subalternas. Com os tanques russos avançam ideias contra minorias e a liberdade política, mas os condicionalistas parecem se preocupar em não beber Coca-Cola.
Os condicionalistas chocam pelo rebolado deselegante, demodê e constrangedor que tentam para manter as aparências de modernos e democráticos.
Defender a posição da Ucrânia neste conflito é em primeiro lugar colocar a paz e o valor da vida humana em posição absoluta. Rebaixá-las ao nível de instrumentos e efeitos colaterais de qualquer outra lógica é submeter o humanismo a imperativos menores. Há uma pobreza moral e uma tacanhez intelectual nessa visão de mundo.
Para terminar, talvez não haja nada melhor do que rememorar a frase de um gênio que previu do século 19 o avanço da sociedade moderna, Tocqueville.
Quanto a mim, duvido que o homem possa suportar ao mesmo tempo uma completa independência religiosa e uma inteira liberdade política; e sou levado a pensar que, se ele não tem fé, tem de servir e, se for livre, tem de crer.
O credo no valor absoluto da vida humana nos liberta de julgar uma guerra a partir dos imperativos de ideologias políticas e interesses até mesmo partidários. Não há senão ou condição que nos impeça de repudiar cabalmente a guerra movida pela Rússia à Ucrânia.
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